18 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 18 de março. Dia 1.

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 18 de março. Dia 1.

A ideia deste espaço, que anda bem parado, era escrever sobre minhas viagens, essencialmente sobre o que elas me fazem sentir, pensar... sobre o que descubro, aprendo... sobre novos olhares sobre as mesmas coisas... E eis que me vejo diante da maior viagem da minha vida: a pandemia do coronavírus, decretada em março de 2019. Ela tem todos os componentes de uma viagem inesquecível. Me desperta sensações como nunca antes senti na vida. Me permite, a cada momento, descobrir e aprender coisas novas. Principalmente, me permite olhares novos sobre coisas antigas. Uma viagem sem planejamento prévio, daquelas que a gente deixa acontecer. A principal diferença é que essa eu não sei quando acaba, se acaba, e como acaba. Por isso achei que cabem aqui minhas reflexões sobre esse período.

Neste momento, como grande parte dos brasileiros, estou quase confinado. A orientação é sair pouco, ter pouco contato com as pessoas, mas isso é ainda impossível. Imagina-se que, em algum momento, haverá proibição de sair de casa, como outros países fizeram. Então, começo aqui meu exercício para a quarentena que, apesar do nome, pode ser mais do que meros quarenta dias. Mas foi hoje que comecei a pensar seriamente no que tudo isso significa.

Eu sabia que estava vindo. Desde janeiro a gente ouvia falar, mas tava longe ainda. Era numa cidade na China. Depois, chegou na Itália, na Europa. Mas tava longe ainda. Foi chegando aqui aos pouquinhos, mas sem alarmismo. 

Há alguns dias, marquei férias, ia passar uma semaninha na praia. Paguei o hotel, comprei a passagem. Até a semana passada, fiz exercícios no estúdio, fui ao cinema, a restaurantes. Já se ouvia de um ou outro caso aqui e ali. Até mesmo em Brasília.

Na 5a feira, o DF endurece o jogo, mas ainda fui ao estúdio fazer exercícios no dia seguinte. À noite, saí com um amigo para o Daniel Briand, um café que está sempre lotado na 6a feira à noite. Havia umas 3 ou 4 mesas ocupadas. Me senti quase culpado por estar lá. E saí de lá, ao fim da noite, com uma sensação estranha.

No fim de semana, a coisa foi escalando. Chegava mais perto. Histórias comparando o Brasil com a Itália ou Espanha há alguns dias. Desinformação, insegurança, medo… apesar de o nosso Presidente assegurar que era coisa da mídia, pura fantasia, uma histeria.

No domingo à noite, o dono do estúdio avisou que daria aulas ao ar livre. Todos aplaudimos. Meia hora depois, um novo decreto do GDF proíbe todas as atividades dos estúdios e academias. A coisa fica séria e chega cada vez mais perto de mim.

No meu trabalho, aos poucos aumentam os incentivos para ficar em casa. Começam a aparecer os casos próximos. Antes, era aquele cara de São Paulo. Hoje, é a minha amiga… ou o amigo daquele cara está infectado.

Começam as incertezas, dúvidas, inseguranças. Ninguém sabe exatamente o que fazer, como se comportar, como reagir. Há os que acham tudo exagerado, condenam as primeiras medidas de isolamento, reclamam de crianças fora da escola. O festival de fake news que assola o País mostra a sua cara. Mentiras, boatos, receitas falsas e milagrosas, tudo aparece.

Em menos de uma semana após as primeiras medidas restritivas, o clima é de terror. Nas ruas, nos olhares das pessoas. Procuro não me alarmar. Me recolho. Faço compras pela internet. Corro no parque na 2a feira, mas o parque já não é o mesmo. Volto pra casa meio desconfiado.

A essa altura, meu pai, com seus 90 anos, já está isolado pelos filhos. Trancado em casa, não sai para nada. Esquemas especiais de assepsia e higiene na casa dele. A verdade assustadora é que não apenas ele é o mais vulnerável mas que, na hora da dúvida, se o médico tiver que escolher quem morre, ele ou um cara da minha idade, meu pai vai morrer. Simples assim.

Me isolo mas me pergunto: quão isolado devo ficar? Onde posso ir? Posso ir ao terapeuta? Posso ir ali na padaria? Posso ir ali no mercado? Dou pequenas saídas. Vou diariamente visitar meu pai, que mora do lado.

Os cuidados prescritos já são complexos de serem atendidos. Não há mais álcool gel no comércio. Máscaras acabaram. As notícias do mundo chegam. Desabastecimento em vários países do mundo. Preços de itens essenciais disparam.

As reações das pessoas variam. Do egoísmo à solidariedade, do descaso ao cuidado, se vê de tudo. Do estúdio, recebo um vídeo com programa de treinos para fazer em casa nesses dias. Um raro cuidado. Na rua, fico sabendo de uma senhora expulsa da farmácia por outros clientes, por conta de uma tosse alérgica. Egoísmo na veia.

Começo a me preocupar por não ter máscaras, álcool gel, os itens da moda. Não se acha em local algum da cidade. Procuro na internet. Encontro a preços absurdamente superiores aos praticados até poucas semanas atrás. Jogo no cartão, depois eu penso nisso.

Teletrabalho é a palavra da moda agora. Só se fala nisso. Alguns poucos são privilegiados para desfrutar dessa possibilidade. Outros são forçados a trabalhar sob pena de ficarem sem o salário ou perder o emprego. Mas muitos, muitos mesmo, não têm alternativa. São informais, são pequenos comerciantes, são profissionais liberais, são restaurantes, hotéis, empresas aéreas. A vida parou para essas pessoas. Para os mais pobres, a miséria. Para os remediados, a pobreza. Para os pequenos negócios, a falência. Para as grandes empresas, prejuízos… demissões. É matemática pura, não há alternativa.

Minha secretária deu sinais de gripe na 3a feira. Mandei-a para casa e pedi que não aparecesse tão cedo. Disse a ela que eu e filho nos virávamos.

Hoje fiquei recolhido em casa. Pensando nisso tudo. Em como afeta minha vida, em como afeta a vida de pessoas queridas, em como afeta de maneira dramática a vida de pessoas que conheço e que vão sofrer muito mais do que eu com essa tragédia.

Enquanto pensava, lembrei da conversa com o filhote ontem à noite. Ele me perguntou “e aí, o que vamos comer? você não sabe cozinhar, não quer ir em restaurante nem quer pedir entrega em casa”. Foi uma pergunta perspicaz, como só os adolescentes sabem fazer ;-)

As compras de mercado que fiz pela internet no sábado, previstas para chegarem na 2a feira, até hoje não chegaram. Chegarão? Resolvi então sair para comprar algumas “coisinhas”. E foi aí que me enterrei nas minhas próprias promessas de não me desesperar, de não entrar m pânico.

Comecei numa casa de carnes preparadas. Solução perfeita para não cozinheiros. Saí da loja carregado com sacos suficientes para os próximos dois meses, não sem antes me assegurar de que aquelas carnes poderiam ser congeladas por quatro meses.

Passei no mercado para outras comprinhas, coisas que Luca pudesse comer por conta própria. Quando me dei conta de que no meu carrinho havia caixas de pizza e de lasanha congeladas, bem como pacotes de miojo, itens que abomino, percebi que estava indo longe demais. Mas nisso eu já estava no caixa, pagando.

Passei na loja de pães. Saí carregado com vários sacos, também para congelar. Passei na farmácia com uma listinha de tudo que  eu pudesse precisar nos próximos dois meses.

Até agora não sei se exagerei, se fiz bem, se fui razoável ou não. Mas fiz. A casa está abastecida. Vem um bode depois, uma ressaca moral, dúvidas éticas e humanitárias, remorsos, contas para pagar.

Mas vem também o medo. Apesar de todos os cuidados, apesar do vidrinho de álcool gel no bolso, entrei e saí de várias lojas, conversei com várias pessoas, meus produtos passaram pelos balcões de vários caixas, estiveram depositados em carrinhos de compras. E todo o cuidado que tive me parece então tão sem sentido, tão inútil. E penso, não há como escapar, já me contaminei. E foi com esse sentimento que fui visitar meu pai no fim da tarde, a uma distância regulamentar de três metros de distância.

Fico mais tranquilo ao pensar que, em todas as compras que fiz, os eventuais vírus nelas depositados morrerão rapidamente. Mas não… descubro que não. Entre as milhares de informações que recebo diariamente, sobre as quais tento freneticamente identificar a veracidade, recebo uma que fala sobre o tempo de permanência do vírus nas superfícies. E aí o medo vira pânico. Acabou. Fim de jogo. Não adianta cuidado algum…


Passo o dia em contato com os amigos pela internet. Coisas sérias, brincadeiras, comentários… concordâncias, discordâncias… A crise do coronavírus já é forte o suficiente mas para o Brasil não é o bastante. Precisamos lidar ao mesmo tempo com uma crise política, agravada por um presidente que minimizou e desprezou, desde o começo, a magnitude do problema.

Eu sempre dizia que a internet era inclusiva, democrática. Hoje me dei conta que não. Os pobres lidam com pacotes de dados que mal chegam ao fim do mês em condições normais. E agora, como farão? Seus dados se esgotarão… como vão se comunicar?

Num grupo, os amigos discutem o que fazer com suas diaristas ou empregadas domésticas, esse resquício escravagista sem o qual mal conseguimos tocar nossas vidas. É um grupo decente, humano, a dúvida era apenas sobre dispensar ou não os serviços. Não havia dúvidas sobre manter ou não os pagamentos, mesmo no caso de diaristas. Mas eu soube que não é assim para todos. Tenho ouvido histórias tristes de falta de empatia e de solidariedade. Tristeza com a humanidade.

O dia se encerra com mais dúvidas do que certezas. A ordem do dia é “isolamento social” mas ninguém sabe exatamente o que isso significa na prática. Ou, mesmo que saiba, não sabe exatamente como aplicar isso na sua vida diária, especialmente aqueles que, por qualquer motivo (e há muitos), não podem ficar trancados em casa.

Começa-se a falar em lições da pandemia. Qual o legado dessa pandemia para mim, para o meu entorno, para o meu país, para a humanidade? É muito cedo para falar nisso, mas não estou nem um pouco otimista. Acho que não aprenderemos muito.


E que venha o amanhã… com todas suas incertezas…


Um comentário:

Virginia Toscano disse...

Estamos todos ficando paranoicos com o tal do corona.
Mas, como sou Pollyana e acho que tudo tem sempre alguma coisa boa, valeu para nós, seus leitores, termos o privilégio de ver novos textos, após exatos 2 anos e 2 dias.
O corona trouxe você de volta!!!