Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 19 de março. Dia 2.
Eu vinha me perguntando quando seria o meu “primeiro caso”. Quem, nos grupos com que convivo, seria o primeiro? Hoje tive a confirmação do teste positivo em uma das minhas mais próximas e queridas amigas, com quem encontro com frequência. Antes era o presidente da empresa onde trabalho, uma autoridade, uma colega de trabalho com quem tenho contato longínquo... mas agora não, é da “minha cozinha”. Uma sensação estranha, a de que o inimigo está se aproximando. Será essa a sensação na guerra?
A ironia do destino é que amiga contraiu o vírus em São Paulo, onde foi fazer consultas e exames médicos, encorajada por todos os amigos que diziam “vai pra São Paulo, em termos de saúde não há igual”. Voltou com o corona. Felizmente, em versão branda, com sintomas desconfortáveis, mas que não requerem sua internação. Que continue assim.
Depois que enviei o texto de ontem a alguns amigos, recebi retornos que refletem essa perdição geral em que estamos todos. Relações pessoais, relações sociais, trabalho, tudo parece dar uma reviravolta. O melhor e o pior do ser humano aparecem em cada esquina. E cada faceta da vida tem que ser repensada, pensada, avaliada. Mudam os comportamentos, as reações, os medos. E tudo muda o tempo todo. Tudo que pensava, sentia e fazia ontem parece diferente hoje. Sinto-me a própria metamorfose ambulante.
Ontem eu me questionava sobre as compras que fiz. Cheguei ao fim do dia com a sensação de ter exagerado. Hoje, recebo de uma amiga fotografias de mercados da cidade com as prateleiras vazias. Ontem parecia tudo normal, a ponto de eu me sentir culpado por ter comprado muito. Meu raciocínio é “não quero ficar paranoico, mas se todos ficarem, eu vou ficar sem comida”. O desabastecimento é a profecia que se auto realiza.
As compras de mercado que fiz pela internet no sábado somente hoje chegaram, depois de três adiamentos. Chegaram direitinho, sem o racionamento que o próprio mercado onde comprei está impondo agora. E quando olhei as compras que fiz no sábado pensei: “se fosse hoje, seria outra compra, outros produtos, outras quantidades”. Pra começar, as compras foram feitas no cenário da presença da minha secretária em casa, que acabei dispensando na terça-feira sem data para voltar. Não sei cozinhar e fiquei olhando aquele bando de produtos que vieram sem manual de instruções. Aos quase 60 anos, será que finalmente vou ter que aprender a cozinhar? Mas sequer tenho quem me ensine. Ainda bem que as compras de ontem já foram mais apropriadas para um imbecil na cozinha.
As compras chegaram quase às 21h00. O rapaz parecia cansado. Disse que os dias estão puxados. Imagino, respondi. Ele pediu um copo d’água. Felizmente, hoje eu havia comprado copos e pratos descartáveis, pensando na contaminação minha ou de alguém próximo. Ofereci-lhe o copo e menti: “aqui em casa estamos todos tomando água em copos descartáveis”. Claro que isso não fazia a menor diferença para ele, ele tomaria em qualquer copo que eu oferecesse. Mas me senti mal. Piorei quando pensei: “e se ele me pede para usar o banheiro?”. Outro dia, antes do corona, li uma reportagem sobre o que passam esses entregadores que passam o dia na rua sem oportunidade sequer de irem a um banheiro decente. Ele não pediu, e foi embora sem que eu soubesse o que eu responderia se ele pedisse. O inimigo está próximo. Senti-me mesquinho. Sou mesquinho.
Pela manhã, fui levar meu pai para tomar vacina. Novamente, a sensação de que, não importa o que eu faça, no máximo minimizo riscos. Impedir contaminação, não há meios. Da hora que o peguei em casa, no carro, na clínica, em todos os momentos, eu pensava “aqui, um de nós se contaminou”. São escolhas diárias: cada uma tem seus prós e contras. Optei por imunizar meu pai contra a gripe. O tempo dirá – ou não – se essa foi uma escolha acertada.
Fui à mercearia comprar as saladas orgânicas higienizadas. Sempre as comi sem preocupação, abria o saquinho, acrescentava alguns penduricalhos, um molho, e estava pronta. Tive medo hoje. Mas comi.
Quando voltei para casa, o porteiro interfonou “tem encomenda para você aqui”. Desci, recebi a caixinha e o fatídico caderninho e a caneta para assinar o recebimento. Peguei a caneta e assinei. Fiquei sem graça de dizer “não vou pegar nessa caneta que todos meus vizinhos pegaram o dia inteiro”. Estava com álcool gel no bolso, saí purificando as mãos.
Por falar em porteiro, recebo uma notícia de que bandidos disfarçados de fiscais da vigilância sanitária entraram num condomínio, a pretexto de verificar a saúde de possíveis infectados, e fizeram a limpa. A maldade não tem limites, não tem escrúpulos, não tem ética. A orientação é alertar os porteiros. Mas até quando teremos porteiros? Eles não precisarão ficar em casa? E se forem infectados, quem os substituirá?
O cenário todo me lembra o livro Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago, uma obra prima, angustiante e dolorida de ler. Há muitas semelhanças entre o que o vírus nos impõe e o livro de Saramago, no qual uma cidade inteira fica cega e as pessoas enclausuradas, mostrando o pior – com frequência – e o melhor de si. Uma sociedade que, nos momentos de perigo e angústia, pensa apenas em si mesmo. Porque nos tornamos presos, reféns. Quando o vírus nos encerra em nossas casas e limita nossos movimentos, estamos privados do que temos de mais simples no nosso dia-a-dia, sentimo-nos escravos, privados da liberdade de ir e vir que sempre tivemos. Descobrimos, naquilo de que somos privados, que éramos cegos, incapazes de apreciar a beleza do natural, os gestos cotidianos que tecem nossa existência e dão sentido à vida. Nesses dias, são tantas coisinhas que deixamos de fazer, ver, sentir... Pensava nisso tudo ontem e hoje descubro que Ensaio sobre a Cegueira está batendo recordes de vendas. Faz sentido. Acho que vou relê-lo.
É guerra e me dou conta de que estou montando o meu bunker, a minha trincheira. Lembro-me daquelas histórias de pessoas malucas, de quem já ri muito, que se preparavam para o fim do mundo, estocavam víveres e se escondiam numa casa no alto de um morro em uma cidade onde o fim do mundo não chegaria. Fiz tantas compras pela internet nos últimos dias que, quando fui avisado sobre a encomenda de hoje que havia chegado, nem sabia do que se tratava. Somente quando abri a embalagem é que fui ver, eram as máscaras N95 que comprei por preço absurdo, me preparando para minha contaminação. Estão ali guardadinhas. Falta chegar o galão de 5 lts de álcool gel e o dispenser (três). Faltam ainda os equipamentos para malhar em casa, com a orientação remota de meu vigilante e zeloso treinador. Faltam as comidinhas que comprei. A cada hora descubro que falta alguma coisa.
A partir de amanhã, fico sozinho. Filho sai de casa. Ficarei sozinho, sem ele, sem a secretária. Preciso estabelecer uma rotina diária, de falar com alguém todo dia, para conversar sobre sintomas. Eu não tenho expectativas de não pegar o vírus. É questão de tempo. Apenas quero que seja brando comigo, até mesmo para poder cuidar de mim. Assusta-me não ter como ser cuidado.
A internet tem sido grande aliada. Por meio dela, tenho trabalhado remotamente, tenho me informado, tenho me conectado com amigos queridos, tenho me sustentado emocionalmente, tenho feito compras, tenho visto filmes, tenho ouvido músicas, tenho lido livros. Até quando? Leio hoje que o aumento de consumo da internet já é de 40% em apenas 3 dias de quarentena. Se esse aumento continuar, haverá um colapso nesse serviço. Como viveremos sem ele?
Há o excesso também. São centenas de áudios repetidos daquele médico famoso, centenas de PDFs de órgãos públicos, de sociedades médicas, de informações nem sempre claras quanto à veracidade. Há também as fake news. Algumas, bem-intencionadas, com receitas milagrosas de como evitar, como diagnosticar e como curar o vírus. Bem-intencionadas, mas criminosas. Crime culposo. E há as maldosas, aquelas que na origem já contêm veneno, maldade, mentira, difamação. Igualmente criminosas. Dolosas. Sem falar naquele cara que resolve escrever suas impressões sobre a crise e partilha com seus amigos... meu celular nunca esteve tão ativo.
Sou um privilegiado. Tenho internet fixa em casa. Tenho um celular com franquia de dados suficiente para usar o ano inteiro sem estourar. Mas não é assim para todo mundo, para o andar de baixo, que tem os seus planos de dados com limites estritos mesmo para as suas baixas necessidades do serviço. Quando acabam os dados, acaba a comunicação. Mesmo antes do corona, quem de nós já não viu isso acontecer com alguém do nosso convívio?
Sou privilegiado também por poder dizer à minha secretária “fique em casa, a gente se vira por aqui”. E fico feliz por poder fazer isso e por manter o salário dela nessas condições. Fico triste pelos que podem fazer assim, mas não o fazem. Ou o fazem descontando dias de salário. Ou impondo férias forçadas. E aí penso na secretária de meu pai. Pelo bem dela, pelo bem do meu pai, não é bom que ela venha todos os dias de sua casa, enfrentando transporte público. É ruim para os dois, mas como faço com meu pai? Ele não pode prescindir dela. Proponho um esquema intermediário, que seja bom para os dois. Parecem felizes com a proposta. Até quando?
Tudo isso me faz pensar no quão divisivo esse vírus é para nossa sociedade. Na verdade, apenas reforça e perpetua nossas cruéis desigualdades. O vírus, apesar de ter começado no andar de cima, com aqueles que podem viajar para o exterior e com aqueles que foram nos almoços e jantares com os primeiros para ouvir os relatos sobre a viagem, as compras, os restaurantes, os shows, aos poucos vai chegar nas camadas mais pobres da população, aquelas que vivem em situações insalubres e miseráveis, sem acesso sequer à água tratada, sem esgoto em suas residências, morando em casebres onde famílias inteiras dividem um único cômodo, com renda essencialmente composta pela informalidade.
É para esses que as campanhas se dirigem? Fiquem em casa. Não saiam de casa. Façam rômi ófici. Usem álcool gel. Lavem as mãos o tempo todo com sabonete. Troquem a roupa quando chegarem em casa. Mantenham-se a uma distância de pelo menos dois metros de qualquer outra pessoa. Não usem transporte público... Tenho muita vontade de saber o que esses seres pensam quando ouvem essas recomendações. Os milhões de trabalhadores empurrados para a informalidade, os motoristas e entregadores de aplicativos (responsáveis pelo aumentinho do índice de empregados do país), os motoristas de ônibus, a população de rua, a população carcerária. Cancelam-se congressos, apresentações, cinemas, teatros, aulas, comércio, restaurantes, mas a exploração da mão-de obra, não. O tratamento dado à pobreza não... Como seria a reação mundial a essa crise se o andar de cima não tivesse sido atingido? Se fosse apenas uma tragédia a mais como essas tantas que atingem apenas os miseráveis (a fome, por exemplo), haveria a mesma mobilização?
Não, o vírus não é democrático, nem na prevenção, nem no contágio, nem no tratamento. Mesmo assim, é interessante observar como o serviço privado de saúde é despreparado para lidar com uma crise dessa, enquanto a maior parte do ônus, da expertise, do conhecimento, está no serviço público. Esse mesmo serviço público que agora está em xeque, em nome de um estado mínimo. O que o estado mínimo faria numa situação dessa? O primeiro caso de infecção em Brasília foi de uma moradora no bairro mais abastado da cidade, que se internou em um hospital desse mesmo bairro. A primeira coisa que o hospital fez foi pedir socorro para a Secretaria de Saúde do DF e informar que não tinha condições de lidar com a situação.
Foi mais um dia difícil. Dizem que o pior, muito pior, ainda está por vir. Acho que dá tempo de reler o Ensaio sobre a Cegueira.
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