21 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 21 de março. Dia 4.

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 21 de março. Dia 4.

Está tudo apenas começando, mas as emoções diárias são fortes. Fico imaginando como era lidar com a gripe espanhola sem internet, sem whatsapp, sem comunicação. Estou confinado, sozinho em casa, e esses canais têm sido instrumentos para minha sustentação emocional, para minhas trocas intelectuais, filosóficas e ideológicas, minhas fontes de risos e de choros. E tem sido muito bom isso. Estou isolado fisicamente, mas não emocionalmente, não afetivamente. E isso faz diferença.

O momento mais impactante do dia de hoje foi um vídeo que recebi com uma palestra de Bill Gates. No vídeo, de cinco anos atrás, ele fala sobre o risco de uma epidemia global e de como a população não estava pronta para evitar a disseminação de um possível vírus mortal. Dizia, ainda, que estávamos investindo mais em armas do que em saúde, mas que, “se alguma coisa pode matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, é mais provável que seja um vírus altamente infeccioso do que uma guerra. Não mísseis, mas micróbios”. O vídeo é absolutamente impressionante pela similaridade com que descreve, cinco anos atrás, o que estamos vivendo hoje (tem até o desenhinho do corona). Imperdível programa para a quarentena. São apenas 8 minutos. Veja em https://www.youtube.com/watch?v=6Af6b_wyiwI&feature=youtu.be (tem legendas em português).

Minha secretária veio pela última vez na 3ª feira, 5 dias atrás. Passada a manutenção básica da casa, chegou a hora de uma limpeza mais profunda. Resolvi começar pelo banheiro, essa icônica parte da casa quando se fala em limpeza, higiene ou assepsia. Eu seria mentiroso se dissesse que nunca lavei um banheiro na vida. Mas foram lavagens básicas, “só até dar tempo de vir a moça para dar uma limpeza mais caprichada”. Ou, quando estudei na Inglaterra, e meu quarto tinha um banheiro de um metro quadrado, onde o chuveiro ficava praticamente sobre o vaso. Nesse espaço, cada banho já era quase uma lavagem completa do banheiro, e bastava fazer uma limpeza mais profunda uma vez por semana, e o banheiro ficava novo de novo.

Assim, quando olhei para o meu banheiro, com um box, uma banheira, uma bancada e mais um bando daqueles nichos pra encher de coisinhas, percebi que, em tempo de corona, precisava de algo mais profissional. Usar os produtos certos para o piso, para a parede, para o vaso, para os vidros e espelho. Não quis vacilar, resolvi estudar o assunto. Achei no Google: “Como limpar o banheiro de forma prática e rápida” (https://www.tuacasa.com.br/como-limpar-banheiro/). Em condições normais, eu diria que ficou bonzinho. Em tempos de corona, eu já não teria tanta certeza. Mas tive algumas conclusões importantes:

- minha secretária não lava bem o banheiro, mas eu lavo muito pior do que ela;
- lavar bem e lavar rápido um banheiro me parece uma contradição: ou você faz bem ou faz rápido... eu consegui fazer mal e demorado;
- hotéis, hospitais, motéis, banheiros públicos, no trabalho... vou lembrar cada vez que estiver em um desses banheiros... a probabilidade de ter sido mal lavado é grande;
- nunca mais irei reclamar de hotéis que impõem um intervalo de tempo muito grande entre o check out do hóspede anterior e o meu check in... tomem o tempo que quiserem para fazer o serviço bem feito.

Resumindo, não ficou ótimo, mas ficou bem cheiroso, com uma mistura de produtos e essências em variedade e quantidade jamais vistas naquele banheiro. E descobri que muitos amigos que acompanharam o evento gostaram do guia de como limpar um banheiro, que foi devidamente utilizado e distribuído, de maneira democrática, por muitos homens, mulheres, adultos e jovens (justiça seja feita, muito mais por homens do que por mulheres).

Mas a pior parte da experiência dessa limpeza, e que tem se refletido nas minhas diversas experiências diárias, é a certeza dos permanentes riscos de contaminação. O tempo todo eu sinto como se estivesse contaminando tudo. Eu limpo aqui, toco ali, vou para ali, volto aqui, pego no frasco do produto de limpeza, coloco o frasco no chão, pego outro produto, aí lembro que coloquei para fora do banheiro a balança, o banco, a lixeira, que a essa altura já infectaram o lado de fora (ou foram infectados do lado de fora). Não tem jeito... na prática, estou todos os dias a todo momento contaminando ou sendo contaminado por espaços na minha casa.

Em um cenário de absoluto confinamento, esse risco deve ser minimizado. Mas até que ponto dá pra falar em confinamento absoluto? No mínimo a comida tem que chegar em casa. Posso sair para comprar a comida – com todas as milhares de possibilidades de contaminação no processo. Ou posso pedir o serviço de entrega, sem qualquer garantia da qualidade do que estou comprando ou do serviço de entrega. Ainda que eu reduza bastante o número de intermediários, não os elimino. Muita gente vai tocar na minha comida até ela chegar na minha casa. E aí chega a comida, faço o que com ela? Passo álcool gel na banana, no abacaxi, na manga, na alface? Ainda que eu higienize cada um dos produtos, até eles chegarem na pia da cozinha já tocaram no chão, na bancada, em mim mesmo... não tem jeito... Hoje eu falava com uma amiga que me contava, desolada, que havia feito compras de frutas e verduras e estava com vários sacos fechados na entrada da casa, sem saber o que fazer com eles. Eu entendo...

A cada dia, surgem decisões para serem tomadas. A próxima decisão é mais delicada. Por tudo que estamos vivendo, o maior ato de amor que posso fazer pelo meu pai, com seus 90 aninhos, é não visitá-lo de forma alguma. Ele consegue entender a necessidade de ficar isolado, tem uma cuidadora com ele, mas ele tem dificuldade para entender que os filhos – mesmo morando perto dele – também devem ficar isolados e não visitá-lo. Hoje não fui, ele estranhou, fez aquela carinha conformada de quem está tentando entender mas no fundo está bem triste. Ele passa o dia em frente à televisão vendo noticiário – hábito arraigado, não tem interesse em mais nada – e, apesar de não entender tudo que vê e escuta, já entendeu que ele é o elo fraco da história. Ele já sabe que, no limite, na hora em que um médico só tiver um respirador para atender entre ele e um outro mais jovem, é ele que vai para o sacrifício. Decisão que faz todo sentido do ponto de vista coletivo mas, individualmente, revela-se para ele um fardo pesado para carregar neste momento.

É bastante interessante como a pandemia está declarada há bastante tempo, mas as medidas, tanto por parte dos governos quanto dos cidadãos, acontecem em ritmo lento: todo dia há novidades, todo dia há uma nova medida, todo dia surge uma nova informação. Parece compreensível que seja assim. Para começar, estamos falando de um inimigo novo e desconhecido. Não sabemos com que armas derrotá-lo. As medidas requeridas dos governantes são necessariamente amargas, impopulares. No caso brasileiro, para piorar, não há coordenação nem uma estratégia clara de condução da crise, o que cria permanentes choques e conflitos, que apenas aumentam o medo, a confusão e a desinformação. Além disso, todas as medidas vão em direção contrária a tudo em que acreditamos, social, econômica ou afetivamente. O que estamos vivendo agora vai contra o que sempre fizemos, pensamos e sentimos. Apesar disso, a realidade vai se tornando cada vez mais clara, especialmente a partir da observação do que aconteceu em outros países. O desastre e o caos parecem inevitáveis e se aproximam. Todos já entenderam e, dentro de suas capacidade, estão se preparando.

Dizem que estou pessimista. Não... apenas vejo com tristeza o país deixar de fazer o que poderia fazer; de outro lado, com conformismo, entendo a parte em que não há o que fazer... E espero. Estamos atrasados, essa é a verdade, e muito do que deveria ter sido feito já passou da hora. Olho para o que está acontecendo na Itália. Na Espanha. No Reino Unido. Nos EUA. As autoridades tentam nos fazer crer que a tragédia italiana é unicamente em face da população envelhecida. É verdade, mas isso não explica o que acontece nos outros países. E, em termos de condições para enfrentar o problema, nós somos piores que eles em tudo. População maior. País maior. Condições de saneamento muito piores. População muito mais pobre, alto índice de desempregados e de empregos informais. Distribuição de renda muito mais perversa. Sistema de saúde precário mesmo na ausência dessa calamidade. Um governo absolutamente despreparado para lidar com a crise. Os estados estão agindo, mas totalmente descoordenados. Uma economia em frangalhos antes da pandemia. E a certeza de que a crise no Brasil está começando, apenas começando... como ser otimista?

O que nos resta a não ser fazer a nossa parte? Parece que definitivamente a ficha caiu para a população. Infelizmente, para grande parcela dos brasileiros, o comando de ficar em casa não faz sentido algum e isso só acontecerá se for mandatório e forças policiais assegurarem o cumprimento da regra. Para quem não tem o privilégio de ficar em casa e receber o contracheque no fim do mês, fica tentador optar pelos riscos estatísticos do corona – onde há maior chance de sobrevivência do que se forem privados da renda informal que os sustenta e às suas famílias. É de sobrevivência que estamos falando e, nesse caso, como condená-los? O instinto de sobrevivência é o juiz supremo.

Isolamento social é o comando da vez. Só se fala nisso e, aparentemente, é mesmo o único, se não o melhor caminho. Para isso, a cidade foi aos poucos sendo asfixiada. Escolas, teatros, cinemas, parques, shows, eventos, restaurantes, bares, comércio... tudo fechado. Veem-se poucos carros e pessoas na rua, mas ainda existem muitos. Supermercados, mercearias, farmácias. Acostumado a fazer compras menores, toda hora me lembro de alguma coisa que ficou faltando, além das grande compras de mercado. Ontem foram os pães. Hoje foram as frutas. Penso que agora estou bem servido. Que venha o inimigo, estou na trincheira.

Andei lendo sobre isolamento social. Fora deste mundo da pandemia, isolamento social é o comportamento onde uma pessoa ou um grupo de pessoas, voluntária ou involuntariamente, se afastam de interações e atividades sociais. Quando não provocado por terceiros, o isolamento social é reconhecido como um distúrbio de comportamento que precisa ser tratado. No caso da pandemia, a causa é outra, mas muitos dos efeitos e consequências do fenômeno são semelhantes e afetam de maneira igualmente perversa uma grande parcela da população. Medo, ansiedade, pânico, insegurança... tudo tem aparecido.

Não é à toa que a maior parte das pessoas tem buscado “driblar” a ideia de isolamento social. E isso tem sido feito graças aos inúmeros recursos tecnológicos que se encontram à disposição de “quase” todos, de forma que o isolamento social se limite ao isolamento físico, para que ninguém se afaste das diversas formas disponíveis de interação social. A bateria de meu celular, que era mais do que suficiente para passar o dia inteiro sendo utilizado para o trabalho, para a família, para leitura e navegação, bem como para o uso dos mais esdrúxulos e impensáveis aplicativos, não tem chegado ao meio da tarde. Tenho conversado, por telefone, mensagem, e-mail, com muito mais frequência do que o habitual, com muitas pessoas que, no dia-a-dia, não consigo manter o contato com a intensidade e a qualidade que eu gostaria.

Além dos muitos contatos individuais, passei hoje por três interessantes e diferentes experiências de interação social que me fizeram bem e que fazem parte da sustentação emocional de que preciso neste momento. Na primeira delas, um grupo de amigos queridos iniciou a construção de uma trilha sonora do corona no Spotify. A lista é colaborativa, online, de forma que cada um pode inserir quaisquer músicas que, na sua percepção, no seu sentimento, reflitam o momento que estamos vivendo. Sem censura, sem moderação. Há músicas que falam de desesperança e há músicas que falam de otimismo. Há músicas nacionais e estrangeiras. Há músicas que refletem os comandos de ficar em casa e de se isolar. Há um pouco de todos os estilos musicais. De celebração do fim do mundo ao otimismo incondicional, há de tudo um pouco. Alguns títulos são autoexplicativos de sua presença na lista (“Hoje eu não saio não”, “O dia em que a Terra parou”, “Sonífera Ilha”, “It’s the end of the world as we know it”, “Don’t stand so close to me”, “O último dia”, “I will survive”, “Last Hope”, “E o mundo não se acabou”, entre outras). Outras músicas entraram e somente quem as escolheu poderia dizer o que motivou a sua inclusão na trilha sonora do corona. O processo foi (tem sido) muito gostoso e o resultado final, bastante heterogêneo, embalou boa parte do meu dia hoje.

Em outra experiência, quis encontrar uma forma de celebrar o aniversário de minha cunhada querida, casada com meu irmão. Ela mora no meu prédio, em outra prumada. Em condições normais, eu adoraria estar celebrando com ela e a família. Pensei em fazer-lhe uma homenagem, colocar umas caixas de som na varanda tocando Parabéns pra Você, mas lembrei-me que hoje havia um outro aniversariante no país, o próprio presidente, que seria objeto mais tarde de uma manifestação contrária a ele. Minha celebração poderia então ser mal interpretada pelos vizinhos. Resolvi então arrumar uma mesa na varanda em homenagem a ela, com comidinhas que imaginei ela fosse gostar, acendi uma vela e abri um vinho. Da minha varanda pude vê-la com meu irmão, brindar à sua vida e, dentro das limitações possíveis, estarmos juntos... era o que tínhamos para o dia, e foi bom poder celebrar dessa maneira.



Uma amiga passou nesta semana por experiência igualmente rica. Seu filho celebrava 18 anos e ela não queria deixar a simbólica data passar em branco. A família jantou e o bolo de aniversário foi acompanhado pelos tradicionais Parabéns pra Você. Eis que, do lado de fora da janela, ela ouviu os vizinhos se juntando à celebração, cantando e batendo palmas dos seus apartamentos para o aniversariante. Emocionada, ela agradeceu em voz alta pela janela e foi presenteada com mais palmas e gritos do bem, de gente do bem. Foi uma tocante forma de celebrar a vida e de dar boas vindas ao seu filho para o mundo adulto. Me emocionei ao ler o seu relato dessa vivência.

Encerrei a noite com um encontro virtual com amigos de adolescência e respectivos parceiros. Cada um em sua casa, taças erguidas, celebrando a amizade, a vida, o encontro, numa conversa leve, gostosa, repleta de acolhimento e da necessária empatia de um pelo outro em um momento que, sabemos, a carga está pesada para todos nós.

Encerrei a noite recolhido, quieto, ouvindo música e, pela primeira vez, tive medo do que estou vivendo. Medo de ficar doente, medo de pessoas queridas ficarem doentes, medo de meu pai morrer. Lembrei, com carinho e boas energias, de minha grande amiga que está infectada. Ao contrário de todas as dificuldades de saúde que eu e minhas pessoas queridas já viveram, agora o dinheiro e o bom plano de saúde não garantem nada. Na hora do caos, não se vai distinguir entre o rico e o pobre, no máximo entre o velho e o jovem. Nenhum país está preparado para uma pandemia, mas alguns estão muito pior preparados. Em um país onde o sistema de saúde é absolutamente insuficiente para as necessidades da população, o medo de como a pandemia vai nos atingir não é pessimismo. É apenas medo mesmo.

O medo vem, mas vai. Termino o dia me lembrando das diversas formas de amar e ser amado que encontrei no tal isolamento social. Ser acolhido, conversar, trocar, me aproximar, ouvir, rir, chorar... partilhar a vida com pessoas que fazem parte do meu mundo sempre foi uma forma de sustentação da vida. Agora, mais do que nunca. E o medo foi...
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