30 de outubro de 2005

China, Outubro de 2005

China, Um Relatório não Oficial!

Em minhas andanças pelo mundo, a China sempre esteve entre as prioridades dos lugares a visitar. Por diversas razões, essa viagem nunca aconteceu até o dia em que precisei ir à China, a trabalho. Apesar de nem todo mundo acreditar que essas viagens a trabalho raramente contêm componentes de prazer, frustrei-me antecipadamente por saber que a viagem não seria exatamente como eu havia imaginado um dia estar na China - um mochileiro solto pelo país, com minhas indefectíveis botas, bermudas e camiseta, andando a pé, de ônibus, trem, navio, bicicleta e tuc-tuc, e me hospedando em simpáticas pousadas pelo interior do país. Durante os preparativos para a viagem, eu conseguia antever os meus sentimentos ao visitar um país tão diverso, mas no qual eu estaria preso a formalidades institucionais, com seus devidos rituais, hospedado em hotéis ocidentalizados, alimentando-me exclusivamente em refeições de trabalho, vestido de terno e gravadade.

A diferença entre uma viagem de trabalho e uma de lazer já se inicia na fase do planejamento. Ao contrário de uma viagem de férias, em que me preocupo mais com o conteúdo do que com a forma (interessa-me mais saber o que vou ver e encontrar do que como vou fazer ou onde vou me hospedar), tive que me preocupar, na preparação dessa viagem, com aspectos e detalhes logísticos inerentes a uma viagem de trabalho e, no caso particular, com aqueles que expressam as diferenças culturais entre Brasil e China. Isso se traduziu, especialmente, no contato diário com a Embaixada da China no Brasil, em que as noções de 'timing' dos dois povos se mostraram bem aparentes. Os chineses, organizados e previdentes, queriam, com bastante antecedência, informações e detalhes de nossa visita que, simplesmente, não éramos capazes de fornecer com tamanha antecipação (horários de vôos, medidas das roupas que a Ministra usaria na cerimônia especial, minuta do acordo de cooperação, cópia do discurso que seria pronunciado pela Ministra, etc. Os chineses certamente se desesperaram com nossa falta de respostas tanto quanto nós nos desesperamos por, diariamente, não ter as respostas que nos eram solicitadas.
Da parte dos chineses, pelo menos um mês antes da viagem, já tínhamos detalhes completos da agenda que a Ministra cumpriria, com níveis de detalhe que nos pareciam exagerados, repetidos em diversos momentos para assegurar que havia plena compreensão de tudo que aconteceria por lá. Já sabíamos onde nos hospedaríamos, quem encontraríamos em cada hora de cada dia, que autoridades participariam de cada evento, o que e onde comeríamos, quem nos acompanharia, quem seria o intérprete, tudo já estava definido com antecedência.

De nossa parte, porém, o exemplo mais evidente dessa diferença cultural foi o discurso da Ministra. Eles precisavam, com antecedência, para tradução no dia da cerimônia, do discurso escrito da Ministra. De uma Ministra que, frequentemente, fala de improviso de acordo com o 'clima' do evento e que, quando faz um discurso lido, ele é finalizado no avião ou no hotel, quando não na manhã do dia do evento. Isso era incompreensível para os chineses, que ficavam perplexos e, às vezes, irritados com a falta de materialização do discurso. Essa cobrança por parte deles foi se tornando um elemento de tensão nos preparativos para a viagem e somente no dia da dita cuja, um pouco antes de irmos para o aeroporto, conseguimos apresentar-lhes uma minuta do discurso, o qual poderia ser traduzido nos dois longos dias que duraria a nossa viagem (tempo, aliás, que certamente seria utilizado para fazer modificações no discurso, o que geraria uma nova onda de desespero quando desembarcássemos com a nova versão).

Entre os preparativos incomuns para a viagem, tive que lidar com uma cerimônia de ‘troca de presentes’ entre os Ministros. A primeira limitação, aqui, era como contornar o obstáculo do hipócrito impedimento legal que tem um Ministro de Estado no Brasil para adquirir um presente para um seu contraparte numa situação como essa. Depois, há que se imaginar o que presentear, dadas as diferenças tão gritantes de valores estéticos e culturais entre os dois povos. Finalmente, é essencial que se tenha a noção de diferenças culturais importantes como não oferecer um presente com embrulho branco, cor que simboliza a morte, nem abrir o presente recebido na frente de quem o ofereceu.

Passada a fase dos preparativos, vem a viagem propriamente dita. Do embarque em Brasília até o desembarque em Beijing (mais conhecida na minha geração como Pequim), são mais de 30 horas, entre horas de aeroporto e horas de avião. E são também onze horas de diferença em relação ao Brasil, de forma que chegamos a Beijing praticamente dois dias depois de ter saído de Brasília. Um trajeto tão longo quanto esse é particularmente nocivo quando a duração da viagem é curta - seriam dois dias viajando, dois dias na China e dois dias viajando de volta. Não é preciso dize que, durante os dias na China, dormia fora de hora e acordava na hora de dormir (o que valeu comentários irônicos da Ministra sobre a dificuldade de encontrar os meus olhos abertos durante um jantar de trabalho em que necessitava de uma informação, num dia em que quase caí sobre a mesa de tanto sono). E quando eu já estava me acostumando ao horário, estava na hora de voltar. Por isso, bom mesmo é o sofisticado sistema de compensação contra o jet lag da Ministra: quando tá escuro ela dorme, quando tá claro ela acorda. E funciona!

Chegamos a Beijing por volta do horário do almoço e nossa agenda oficial se iniciava no dia seguinte. Tínhamos a opção de descansar da longa viagem, o que pareceria natural, mas não resistimos à opção que nos foi oferecida de aproveitar aquela tarde para visitar a Grande Muralha. A Grande Muralha habita minha imaginação desde minhas primeiras aulas de história. Naquela época, acreditava-se ainda no mito, hoje desmentido, de que, da lua, se podia ver a Muralha (mas a informação ainda está nos livros escolares chineses). Não havia como perder aquela oportunidade, mesmo não sendo um dia perfeito: tava nublado, o que nos impediu de ver aquela imagem clássica da Muralha serpenteando nas montanhas a perder de vista. Gostaria, também, de saber como são feitas as fotos, imagens e documentários que sempre me mostraram a Grande Muralha deserta e silenciosa: no dia em que fomos havia uma multidão de chineses que falavam e tiravam fotos ao mesmo tempo, praticamente nos impedindo de qualquer registro fotográfico em que não estivéssemos cercados de chineses por todos os lados. Mesmo assim foi emocionante ver uma pequena parte dos quase 6700 km de uma muralha que varre a China de leste a oeste, cobrindo desertos, montanhas, pastos e planaltos, com mais de 2000 anos de fascinantes histórias. No auge de seu papel de proteger a China de invasões estrangeiras, a muralha contou com mais de um milhão de soldados espalhados ao longo de sua extensão.

As outras atrações turísticas que tivemos a chance de visitar – a Cidade Proibida e o Palácio de Verão – igualmente impressionam pela imponência, mas igualmente irritam pelas multidões de visitantes. Nesse aspecto, a China não é especialmente diferente de outros lugares no mundo de grande atração turística, mas o problema se agravava em função de estarmos num país com uma população de mais de 1.300.000.000 habitantes que, finalmente, começam a descobrir os prazeres do consumo (incluindo viajar).
Na Grande Muralha, tivemos o primeiro de vários episódios engraçadíssimos relacionados à tradução, o que não é de surpreender consideradas as diferenças entre uma língua de origem latina e uma outra cuja estrutura é totalmente diferente, incluindo o fato de que, na sua versão escrita, é feita por mais de 40.000 caracteres diferentes (ainda que apenas 10.000 deles sejam comumente utilizados). Assim, mais do que traduzir palavras ou frases, a missão de nosso intérprete era traduzir idéias. Com o seu português aprendido em uma temporada em Moçambique, nosso intérprete, um educado e atencioso jovem, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, nem sempre conseguiu traduzir com perfeição as idéias.
Durante a visita à Grande Muralha, a Ministra, querendo estabelecer diálogo com o funcionário do Ministério de Florestas que nos acompanhava, tratava de diversos temas da área ambiental. Em certo momento, a Ministra perguntou se a China tinha problemas com espécies exóticas invasoras, um termo que qualquer pessoa da área ambiental conhece bem. O intérprete, que não era da área ambiental, traduziu a pergunta e a inesperada e cômica resposta foi uma detalhada reconstituição das diversas invasões sofridas pelos chineses e as razões que levaram à construção da Grande Muralha.

Em outro momento divertido, o intérprete traduziu as restrições alimentares da Ministra como 'tabus'. A dieta da Ministra é sempre um motivo de preocupação, mas, no caso dos chineses, com hábitos alimentares bem diferentes dos nossos, nossos cuidados se redobraram. Mesmo assim, não foi possível relaxar em relação a esse aspecto da viagem porque cada refeição era um banquete com mais de 10 pratos diferente servidos em sequência e, em virtude das dificuldades de tradução de termos bem específicos, nem sempre conseguíamos ter a noção exata dos componentes de cada prato, forçando a Ministra a recusar os pratos com os quais não se sentia segura. Da minha parte, diverti-me experimentando a interessante culinária chinesa, tão diferente dos restaurantes chineses a que me habituei no mundo ocidental, mas tive que encarar o insuportável conceito de "frutas frescas" como sobremesa. Tá bom, não precisava ser um profiteroles, um petit gateau ou um brownie, mas podia ser ao menos uma banana ou maçã caramelizada, como a gente se acostumou a ver nos restaurantes chineses no Brasil.

Obviamente, numa viagem de caráter oficial como essa, não se tem a oportunidade de conhecer detalhes da vida do país. A famosa questão dos direitos humanos na China passa, assim, ao largo da nossa capacidade de observação. Mesmo assim, tivemos um episódio fantástico com nosso intérprete, quando passávamos em frente à Praça Tianamen. Para quem não se lembra, foi nessa praça que, em 1989, houve um histórico massacre de estudantes que se reuniam em protesto. O número de mortos, na ocasião, varia de 300 a 6000, conforme a fonte. Minha vontade era conhecer a versão oficial do governo chinês e, por isso, perguntei ao nosso intérprete se poderia me falar um pouco sobre a revolta dos estudantes na praça. O diálogo que se seguiu foi surreal. Na maior cara de pau, ele me perguntou ‘revolta de quem?’. Eu respondi ‘dos estudantes’. E ele continuou, ‘quando?’. Eu disse ‘em 1989’. Ele não perdeu a pose: ‘onde?’. Diante da minha insistência, e das evidências de que o fato era inegável, ele me respondeu, torturado, com um jeitinho vaselina e filosófico: ‘isso é uma coisa muito complexa; mil palavras não poderiam explicar; melhor perguntar à sua Embaixada para receber uma explicação’.
Vim a saber, depois, que esse tópico desapareceu completamente de qualquer meio de comunicação na China (incluindo livros, revistas, jornais, internet). É um tópico proibido pelo Governo Chinês. É comum que jovens chineses sejam completamente ignorantes sobre o episódio. Dessa forma, não surpreende a reação do jovem diplomata chinês: para ele, o massacre de Tianamem não existiu!

A viagem se encerrou com uma breve passagem por um shopping center que, segundo nosso amigo intérprete, era o maior shopping center da Ásia. Um ícone do capitalismo no maior país comunista do mundo. Não demorou muito, no entanto, para descobrirmos que nenhuma loja do maior shopping center da Ásia no maior país comunista do mundo aceitava cartões de crédito internacionais. Esse não foi o único, mas foi o mais expressivo exemplo das contradições que o gigante comunista ainda enfrenta em sua lenta e gradual transição à economia de mercado.

A China impressiona por qualquer aspecto que se possa examiná-la. Seja a enorme população, seja a cultura milenar, sejam as imponentes construções, sejam as contradições entre o comunismo e o livre mercado, entre a suposta liberdade e o autoritarismo do regime, seja a asfixiante burocracia estatal. Não dá, contudo, para ser indiferente. Não dá para passar por aqui sem ser tocado por algum aspecto de um país que provavelmente será, em poucos anos, a maior economia do planeta. A dúvida que me fica é como eles vão fazer para continuar manobrando e controlando com autoritarismo mais de um bilhão de chineses, num mundo ao qual a China tão rapidamente se expõe. Mas isso fica pra outra viagem... de preferência, não oficial!
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Bem depois de minha viagem, li sobre os sofisticados mecanismos que o governo chinês utiliza para censurar a internet. Essa censura se faz por meio de uma ampla variedade de leis e regulamentos administrativos, vigorasamente implementados por organizações, empresas e provedores estatais de internet. Estima-se que a força tarefa da polícia da internet na China seja composta de mais de 30.000 pessoas, que atuam como censores e monitores. Comentários críticos em sítios da internet, foruns de discussão, blogs, etc, são usualmente apagados em segundos. Além da força tarefa especialmente designada para essa censura, e-mails, sites, blogs são censurados por pelos provedores de internet, que pertencem todos ao governo. O método é baseado na mesma tecnologia que bloqueia spams, por meio de palavras-chaves. A seguinte lista de palavras-chaves acionará o sistema de filtragem, bloqueando o acesso a qualquer conteúdo que as contenha: revolução, igualdade, liberdade, justiça, taiwan, tibet, falun gong, dissidente, dst (doenças sexualmente transmissíveis), democracia, direitos humanos.