Tenho tentado manter uma rotina, mínima que seja, para que eu não enxergue esse período como “férias na praia”, sem hora para comer ou dormir, sem atividades pré-estabelecidas, tempo em que se deixa tudo apenas acontecer. O fato de estar escrevendo agora de madrugada (são 3h30 da manhã) mostra que o sucesso da rotina tem sido relativo. Tenho tentado também não mudar os hábitos alimentares, embora, na medida em que a paranoia aumenta, renovar o estoque de verduras e legumes me parece uma opção mais distante. Até mesmo porque, ainda que eu os comprasse, penso que eu iria destruir seu potencial nutritivo de tanto esfregá-los em álcool, água sanitária, vinagre, soda cáustica e o que mais aparecesse com cara de matar coronas.
As brincadeiras em torno dos resultados da quarentena – obesidade, alcoolismo, depressão, divórcios – podem não ser exatamente uma brincadeira. Em um momento como esse é natural buscar refúgio em comida, bebida, assim como é natural que as defesas emocionais se abalem e as relações se estressem como decorrência do convívio forçado não habitual. Por isso é importante cada um criar suas estratégias de sobrevivência, suas rotinas, seus hábitos, para a quarentena, dentro do que é possível, dentro do que faz bem a cada um. Hoje meu dia foi para pensar nisso.
Por aqui estou montando uma agenda que envolve horários estabelecidos para videoconferências com o pai, duas vezes por dia, para exercícios físicos diários, com alguns horários agendados com o treinador, para evitar sabotagem, bem como horas para alimentação e sono. Tomar banho, trocar de roupa, pentear o cabelo, lavar louças e roupas, tudo isso faz parte da rotina. Tento estabelecer limites para consumo de doces e de vinho. Busco leituras alternativas ao inevitável noticiário diário que, como não poderia deixar de ser, é negativo, pessimista, assustador mesmo. Há que se encontrar um pouco de leveza nisso tudo. Estou retomando um hábito perdido, telefonar para as pessoas. Agora que todos têm mais tempo e que não me sinto mais tão constrangido com a perspectiva de “atrapalhar” alguém, tenho arriscado esse primitivo método de comunicação e a experiência tem sido rica. Da mesma forma que têm sido as reuniões virtuais, em que tenho visto e conversado com pessoas de uma forma que não vinha acontecendo antes do meu recolhimento.
Quando se fala de rotina, algo que se perdeu para mim foi a noção de dia da semana. Domingo ou 3ª feira são absolutamente iguais, tanto para mim quanto para o que resta de comércio aberto. É possível imaginar, remotamente, o que sentem os prisioneiros ao riscarem na parede os dias que passam enclausurados. Ontem, por exemplo, eu havia me esquecido de verificar o novo episódio de Porta dos Fundos, que acompanho com regularidade toda 2ª, 5ª e sábado. Também só me lembrei bem mais tarde de verificar a lista de sugestões da semana do Spotify. Como se alguma dessas coisas tivesse alguma importância agora.
Por falar em Spotify, ontem verifiquei que a ideia de criar a trilha sonora do corona não foi só minha. Há dezenas de listas criadas por usuários de todo o mundo que buscam o apropriado acompanhamento musical para o momento. Dando uma olhada por alto em algumas dessas listas, me detendo apenas nos títulos de cada música, o tom geral é o apocalíptico, que é talvez como a maior parte das pessoas enxerga a distopia que estamos vivendo. Uma lista aleatória que encontrei contém músicas com nomes curiosos como “Los Enfermos”, “Salvame La Vida”, “Ya Si Há Muerto Mi Abuelo”, “Si Te Mueres Mañana” e “Te Hacen Falta Vitaminas”. Há também as listas religiosas, as de meditação, as otimistas. Há uma cuja descrição, em português, é “não deixe que as más vibrações tomem conta de você”, que escuto agora enquanto escrevo.
Na busca de mais positividade para enfrentar esse processo, deparei-me com um vídeo da Diretora Executiva do UNICEF, em que apresenta sugestões da organização para um plano de bem-estar, individual, familiar ou corporativo. O vídeo, que é de uma leveza absoluta em tempos tão pesados, fala de permanecer conectado e verificar como estão indo os seus seres amados, especialmente os que estão isolados; de compartilhar seus sentimentos; de envolver-se em práticas que te façam bem; e, até, de criar uma “janela de preocupação”, o momento do dia em que você se permite entrar em contato com o que te aflige neste momento. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bb0uoJHNcNY.
Uma sugestão do vídeo de que gostei muito foi a de criar uma espécie de “diário da gratidão”, que consiste em registrar diariamente as pessoas ou coisas às quais somos gratos. Pensei muito nisso durante o dia e me surpreendi com a quantidade de razões para ser grato neste momento difícil. Me fez muito bem e a sensação que tenho é que pode fazer bem a cada um.
Um caminho natural neste momento é usarmos o tempo livre para fazermos coisas de que gostamos, seja ler, costurar, ver filmes, cozinhar. É bom, deve ser feito. Mas li também um artigo sobre como pode ser bom e edificante engajar-se em um projeto, algo que exija foco, atenção, dedicação. Pode ser aquele projeto engavetado de escrever um livro, blog ou diário, fazer um curso (há milhões de opções online), organizar aquelas 17.578 fotos digitais das viagens dos últimos 20 anos, qualquer coisa que exija de você mais do que simplesmente fazer o que gosta, mas não tinha tempo.
Escrever tem sido bom para mim, me permite conectar-me com o que tenho pensado e sentido neste isolamento solitário, entrar em contato com novas formas de ver, sentir e pensar coisas antigas, repensar valores e prioridades, reconectar-me com pessoas amadas, partilhar o que escrevo com gente querida, ler e processar comentários. Foram esses comentários que me chamaram atenção para o excesso de negatividade com que estavam recheadas minhas linhas. E que me deram a motivação para escrever hoje, sem perder a noção e a gravidade do momento, mas com uma leveza que eu não vinha encontrando em mim.
Um comentário:
Por que parou? Parou por que?
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