31 de março de 2005

Marrocos, março de 2005

Casablanca, Marrakesh. A gente cresce ouvindo coisas do tipo "prá lá de Marrakesh" sem saber exatamente o que quer dizer nem onde fica a tal da Marrakesh. Cresce vendo - ou ouvindo falar - de Casablanca, o filme, com Humphrey Bogart, ouvindo "As Time Goes By" e fazendo brincadeirinhas de "Play it Again Sam". Mas na hora que chega aqui nada disso parece fazer sentido. Primeiro porque Casablanca não tem nada que, ainda que remotamente, lembre o filme (descobri aqui que o filme Casablanca foi inteiramente rodado na Califórnia, que decepção!). Segundo porque "prá lá de Marrakesh" só faz sentido quando você tá muito longe e, agora, estando aqui do lado, o que é mesmo que quer dizer isso?

Mas a chegada em Casablanca traz todos os tipos de emoções que essas viagens exóticas trazem consigo: expectativa, curiosidade, ansiedade e, claro, também certa insegurança. Tem que aprender os códigos locais, saber como se vai de um lugar pro outro, saber o que pedir pra comer, aprender a sobreviver com outra língua, outra cultura, tudo outro.

Tenho, naturalmente, que me despir dos preconceitos contra os franceses e contra a língua francesa. Isso não é exatamente fácil neste exato momento, em que me engalfinho com um irritante teclado francês (por que é que os franceses têm que ser diferentes até nisso?). Já no embarque, num vôo da Air France, começou a irritação ao ver que uma menina carregava no colo uma jaulinha de cachorro, que latia sem parar. Não acreditei que ela ia viajar todo o vôo com aquele cachorro e pensei "só podia ser coisa de francês, num vôo da Air France". Paguei a língua. Os comissários, em bloco, impuseram que a menina deixasse a gaiolinha no porão do avião, mas ela não aceitou. Depois de muita negociação, minha surpresa: a menina preferiu sair do avião, e assim saiu cheia de dignidade, carregando sua jaulinha. E a maior surpresa: era uma brasileira. Ou seja, essa babaquice francesa com os cães se acha no Brasil também.

Bom, gostando ou não de francês, é com as poucas palavras que conheço que vou ter que me virar aqui (o que é mais fácil do que me virar com árabe ;-). Não tem muita gente falando inglês por aqui, o que é perdoável; afinal eles não têm culpa de terem sido colonizados pelos franceses. Com meu parco francês, já consegui até tomar um chá de menta, o que me lembrou do delicioso e açucarado chá de menta que eu tomava num boteco libanês quando eu morava em Londres. Com toda essa falta de habilidade lingüística, até agora não me perdi, não morri de fome, nem deixei de perguntar a ninguém 'onde é', 'quanto custa' e coisas do gênero. Com meu francês de primeiro grau e com a boa vontade dos marroquinos, eu vou chegando lá.

O melhor num começo de viagem é se perder. Chegar ao hotel, tomar banho, andar pela rua, tomar um chá de menta num café a beira da calçada. Esse primeiro dia, então, é apenas pra relaxar da longa jornada, sentir os primeiros sons, cheiros, cores, sabores do lugar. Amanhã começa a exploração pra valer.

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É bom não perder a capacidade de me deslumbrar, de me fascinar. Lembro-me de quando comecei uma longa viagem, que duraria seis meses, logo após o meu mestrado, e Sereen me disse que, depois de viajar um pouco, perde-se a capacidade de se deslumbrar, de se fascinar com as coisas, os lugares começam a ficar todos iguais. Fiquei com aquilo encucado, pensando se seria assim mesmo, até que, semanas depois, me encontrei mergulhando no Mar Vermelho e, ao ver aqueles recifes de corais, com vegetação e fauna multicolorida, uma visão deslumbrante, chorei no fundo do mar, emocionado com aquela beleza única, e percebi, fascinado e deslumbrado, que não tinha perdido a capacidade de me fascinar e de me deslumbrar.

E agora, no Marrocos, bom ver isso de novo. Depois de passar por alguns países árabes, outros muçulmanos, outros africanos, vejo que o Marrocos é tão árabe, tão muçulmano ou tão africano quanto os outros, mas é também tão único que me deslumbra em cada curva de estrada, em cada ruela de suas cidadezinhas imperiais (as medinas), e até mesmo em suas ruínas romanas (esses caras estão em todas, né?). É bom também descobrir que a novela brasileira que tornou o Marrocos tão próximo do imaginário coletivo brasileiro quanto Cancun e Aruba não é tão real assim. O Marrocos verdadeiro é bem diferente.

Dos franceses, os marroquinos herdaram muita coisa, entre o que há de melhor, destaca-se o prazer de comer, incluindo os charmosos cafés nas calçadas das ruas e os pães, deliciosos comparados com o que se encontra nessas viagens. Como nem tudo é perfeito, os marroquinos herdaram, também, dos franceses, aqueles insuportáveis chuveiros, compostos de uma mangueirinha pendurada na banheira, onde você tem que tomar banho, se ensaboar, se equilibrar e segurar a ducha com apenas duas mãos.

A comida, seja numa birosquinha bem simples ou num restaurante mais sofisticado, é sempre ótima. Bom, sou suspeito para falar isso, porque o carro-chefe aqui é o carneiro, e carneiro é comigo mesmo. Então, é tagine de carneiro, couscous de carneiro, kafta de carneiro... Para beber, arrisquei, com resultados abaixo da crítica, o vinho marroquino. A cerveja local não é, também, nada de excepcional. Acabo, então, ficando mesmo no delicioso chá de menta, refrescante mesmo quente.

Os cafés nas calçadas constituem uma verdadeira instituição nacional. Como na França, curto o delicioso prazer de simplesmente sentar-me, olhar o povo passar e tomar chá de menta. Peço um bule, abro um livro, meu caderno de anotações, e duas horas se passam sem que eu sequer perceba. Não há mulheres nesses cafés, apenas homens, ou, no máximo, alguma turista, mas sempre acompanhada por um homem. As mesas têm as cadeiras todas voltadas para frente, de forma que ninguém se senta de costas para a rua. Há dezenas desses cafés, e todos servem apenas chá e café, nada de comida; não consigo acreditar que sobrevivam apenas vendendo chá e café.

A recomendação aqui é não expor os joelhos e os ombros - ou seja, nada de bermudas ou de camiseta regata. Sofro mais pelas bermudas, mas nada que me incomode muito. Na verdade, estamos saindo do inverno aqui, está calor, mas um calor absolutamente suportável, em torno de 24 graus. O povo usa muita roupa aqui, os homens estão sempre vestindo uma camisa, um sweater e um casaco, faça a temperatura que fizer. Coisa de doido.

No grupo com que estou viajando, o destaque fica para uma babá inglesa e um marceneiro australiano, ambos bem jovens.. Fiquei imaginando quando que uma babá ou um marceneiro no Brasil poderiam fazer uma viagem dessas. São pessoas cultas, não ricas, moram decentemente no subúrbio, mas ganham dignamente para economizar e fazer uma viagem dessas. Fantástico.

Impressionante, quando viajo, minha capacidade de me desligar do mundo. Ao contrário do normal, tenho sonhado muito aqui. Quer dizer, sonhar eu sonho sempre, mas aqui tenho me lembrado muito dos meus sonhos. E são sempre sonhos legais, de gente querida, de coisas boas, algumas nostalgias, nada ruim. Bom dormir assim, dá prá relaxar pelo menos até as 5 horas da manhã, quando as mesquitas da cidade, com seus potentes alto-falantes, começam a chamar para as primeiras orações do dia. É assim cinco vezes por dia, como em qualquer país muçulmano. A prece das 5 da manhã é mais marcante por me tirar de um delicioso sono ao qual nem sempre consigo retornar.

Hoje passei o dia explorando a medina (cidade velha) de Fes, um lugar labiríntico, onde você parece voltar à idade média, um comércio onde o sujeito faz os produtos e vende ao mesmo tempo, onde a barganha é o segredo das compras. Ali, as ruelas têm apenas um metro de largura e freqüentemente você tem que se espremer na parede para deixar passar os jumentos que são o principal meio de carga. Há muitos turistas mas, mais do que eles, há um fluxo infernal de gente local que vai ali comprar de tudo. Uma experiência fascinante, com especial destaque para os tanques de tingimento de couros, onde se preparam as pecas de couro que são vendidas para os artesãos locais. Como se vê na foto anexa, do alto de um terraço vizinho, dá pra ver as dezenas de tanques de todas as cores, em que as peles de animais são mergulhadas para serem tingidas e depois transformadas nas belíssimas peças de couro que são vendidas nos mercados.

Por falar em mercados, o Marrocos é uma tentação para quem gosta de coisas diferentes. O problema é que tudo de que gosto é pesado e volumoso. E viajando por várias cidades, de trem ou de ônibus, com uma mochila nas costas, não dá para pensar em comprar nada. Meu prazer, então, é olhar (se é que alguém consegue ter muito prazer ao olhar alguma coisa num mercado sem ser imediatamente assediado pelos comerciantes). E passeio pelas ruas dos mercados, resistindo heroicamente à tentação de comprar um tampo de mesa em mosaico, uma luminária de ferro ou uma peça de porcelana.

Saio dessa onda de consumo e parto para alguma coisa menos urbana, um trekking de dois dias no deserto do Alto Delta. O lado mais legal dessa experiência foi simplesmente ter dado conta dela. Com a vida sedentária que ando levando, esse era o meu maior receio. Por isso, ter encerrado os três dias de caminhada sem fazer feio foi motivo de grande celebração. A caminhada era menor do que outras que já fiz, mas muito mais do que qualquer tipo de exercício que ando fazendo recentemente (cerca de três a cinco horas por dia de caminhada, subindo e descendo). Os visuais eram absolutamente fascinantes para que eu sequer pensasse em fraquejar.

Passei por vilarejos bem pequenos, desses onde não passa turista, e as pessoas te olham com um ar meio esquisito, como se você fosse um ET por conta das roupas, botas, sandálias, chapéu, seja lá o que você estiver usando. E a gente ainda acha que estranhos são eles com aquelas roupas compridas, algumas cobrindo até a cabeça, naquela calor de rachar. Nesses lugares, andei ficando em acomodações bastante precárias, algumas camas e colchões não exatamente confortáveis, alguns lençóis já sem condições de uso e, provavelmente, sem serem lavados já há alguns meses. Em outros lugares, a falta de conforto continuava, mas eram lugares simpáticos, limpos, charmosos, as vezes velhas construções reformadas.

No meio do caminho, parávamos em casas de nômades, de berbers (uma das raças locais), e sempre rolava aquele ritual de sentar num tapete empoeirado e ser servido de um chá de menta onde a cor da água só era disfarçada pela cor da própria menta. Quando dava para entornar disfarçadamente, tudo bem, mas de vez em quando tinha que engolir e rezar para o organismo digerir seja lá o que fosse que entrasse. O mesmo valia para o pão que distribuíam, que passava de mão em mão, e era depois pousado sobre o tapete empoeirado.

Com toda minha birra da língua francesa, senti falta dela para interagir mais com as pessoas que encontrei pelo caminho. As vezes me via em diálogos surreais com pessoas que não me entendiam e a quem eu não entendia. De alguma forma, nos fazíamos compreender. Isso valia para essas paradas esporádicas - embora nesses casos nem francês adiantasse muito -, para as compras, para pedir informações, para escolher a comida no restaurante ou simplesmente para bater papo com algum curioso - em geral crianças.

Por alguma razão que ainda não consegui plenamente compreender, o deserto realmente exerce um fascínio grande sobre mim (deve ser efeito das inúmeras releituras do Pequeno Príncipe na infância ;-). No deserto, tenho a deliciosa sensação de não ver nada, não ouvir nada, apenas ver e sentir o vazio. Um lugar que me faz sentir pleno, consciente da minha pequenez, em que me conecto comigo mesmo ou com uma entidade superior, e me desconecto do mundo, da vida, das pessoas, do resto. Tive várias dessas oportunidades durante a viagem, e cada uma era uma boa chance desse encontro.

Foram dias gostosos no deserto, caminhadas, trens, jumentos, passeando por desertos que foram surpreendentemente diferentes de outros desertos por onde já passei. São desertos montanhosos, repletos de vales férteis, picos cobertos de neve (não esperava ver neve no Marrocos), além de vilarejos pendurados nas montanhas, como se favelas do Rio fossem.

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De volta do deserto, um inglês comentou “de volta à civilização!”. Eu, que estava adorando estar no deserto, não gostei do comentário, mas adorei me encontrar em um lugar “civilizado”, onde eu tivesse acesso à internet. De qualquer maneira, foi bom, depois, ter uma conversa descontraída com o inglês sobre o que é ou não ser civilizado, especialmente quando se visita um pais tão rico em cultura, em arte, em conhecimentos tradicionais, e fazemos as inevitáveis comparações com os nossos próprios padrões culturais e de desenvolvimento.

Embora eu e o inglês comentássemos sobre as diferenças culturais entre o nosso ocidente e o Marrocos, não eram menores as diferenças entre mim e ele. Senti isso quando falei que tinha uma empregada em casa. Foi interessante observar a sua exaltada reação, que parecia tentar entender se eu era um rico oficial do governo, provavelmente vivendo à custa da corrupção típica dos países em desenvolvimento, se eu tinha trabalho escravo em casa ou se, afinal, o Brasil era um símbolo de civilização, com excelente qualidade de vida. Depois de muita conversa, ele começa a entender que ter uma empregada não é necessariamente um sinal de civilização; pelo contrário, é apenas um sinal de riqueza perversamente distribuída e que não é necessário ser rico para ter uma. Depois, conversando sobre o mesmo assunto num jantar com mais pessoas, confesso que não pude esconder um risinho de satisfação ao ver aqueles ingleses todos morrendo de inveja de mim, dos meu almoços em casa, do meu café da manha pronto quando acordo, da roupa lavada e passada, enquanto eles tem que encarar um terceiro expediente para ter tudo isso, sem a mesma qualidade.

O Marrocos surpreende na diversidade à medida que se anda de uma cidade para outra, e andei por muitas. Mudam as cores e o estilo das roupas, mudam as músicas, mudam os dialetos, mudam as cores das casas, mudam os cheiros. Um verdadeiro espetáculo para os sentidos. Não dá para ficar indiferente, não dá para não ficar virando os olhos de um lado para o outro à procura da próxima pessoa, do próximo traje, da próxima cor, do próximo cheiro, da próxima porta ou janela, da próxima ruela.

Só não mudou muito a comida que, apesar de saborosa, no fim se mostra absurdamente repetitiva: todos os cardápios, de norte a sul, são variações em torno dos mesmos temas: tagine, couscous, omelete. Sobremesa, que é bom, nem pensar. Ou melhor, existe, mas é igualmente repetitiva e composta de frutas da estação (quem foi que algum dia inventou que frutas da estação podem ser classificadas como sobremesa?) ou iogurte (Danone, sempre! E iogurte, é sobremesa?). Nos lugares mais sofisticados, a fruta da estação é substituída por uma salada de laranja fatiada polvilhada com canela, uma combinação interessante, ou por iogurte caseiro, em geral bem gostoso, mas que caberia melhor numa mesa de café da manhã.

O país é bastante explorado turisticamente, o que quer dizer que, mesmo em lugares remotos, acabo cruzando com um ou outro gringo, em geral franceses.. Há também espanhóis que cruzam, de carro, o Estreito de Gibraltar, e vêm passear por aqui. Não vi um brasileiro até agora, mas é interessante ver as reações dos marroquinos às minhas camisetas com cores ou bandeiras do Brasil. São reações simpáticas, naturalmente com referências a Ronaldo, Ronaldinho, Romário. Uma reação divertida foi a de um motorista de táxi que, passando em frente ao melhor hotel de Casablanca, e já sabendo que eu era brasileiro, apontou e disse "isso é para americanos e europeus". Só faltou dizer "isso não é pro seu bico!". Recebi aquele comentário como quem diz "você, brasileiro, é um dos nossos"... mais um gesto de carinho do que a minha automática exclusão do rol dos seres dignos de se hospedarem naquele hotel.

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Depois de muito andar pelo deserto, foi interessante chegar ao mar, em Essaouira, uma cidadezinha de origens portuguesas que não tem nada a haver com o resto do país que visitei. À beira mar, casas todas pintadas de branco, ruelas estreitas mas organizadas, sem circulação de carros, ótimos restaurantes - com inclusão, agora, de peixes nos cardápios - visuais interessantíssimos, povo ainda mais acolhedor. Hoje, fui ver o pôr do sol nas muralhas da cidade, um cenário lindíssimo que, embora distantes das minhas imagens do Marrocos, não posso deixar de registrar como uma das mais emocionantes surpresas da viagem. Por isso, ali fiquei, primeiro olhando, depois tirando fotos e mais fotos, depois só olhando de novo. Não eram exatamente fotos típicas do Marrocos, mas sem dúvida foi muito bom e gostoso estar ali.

Pensei, enquanto via o sol desaparecendo, em comprar uma garrafa de vinho e me sentar nas muralhas da cidade para acompanhar o fim do dia. Mas aqui, além de vinho não ser um produto particularmente agradável, são raríssimos os lugares que vendem álcool ou os restaurantes e bares que o servem. Nesse aspecto, o pais é extremamente conservador. Aliás, também nas roupas. As recomendações que li foram todas no sentido de não usar shorts ou bermudas e assim me comportei durante todos esses dias, foi só calça comprida o tempo todo. Para as mulheres, vale a mesma recomendação e a orientação de, no máximo, usar camisetas, mas preferencialmente usar mangas compridas. Desrespeitar essas orientações equivale a estar totalmente inadaptado à realidade local e, conseqüentemente, ser objeto de todos os tipos de olhares. No caso das mulheres, em particular, vestir-se de maneira diferente as expunha a olhares gulosos e palavras e atitudes que beiravam a agressividade, embora sem violência.

As compras constituem um capitulo à parte no Marrocos. Nisso, países árabes se parecem todos. São tantas horas e habilidades necessárias para a negociação e a barganha que eu desisto antes de entrar. O conceito de preço fixo, com uma etiquetinha pendurada, simplesmente não existe. Então, pra começar a conversa, você tem que ter, no mínimo, uma noção rudimentar de quanto vale o produto. Às vezes, você consegue isso por meio de conversas com outros viajantes, moradores locais ou em leituras. Mesmo assim, trata-se de produtos nos quais você não sabe a diferença entre um muito bom e um mal feito. Então, prá começar a conversa, você tem que pensar simplesmente se gosta ou não daquilo e quanto está disposto a pagar, no máximo. Se comprar, esqueça o preço:você só se sentirá enganado se comprar algo que não queria.

Como a minha mochila não comporta nada além do que já veio com ela, o consumismo tem passado longe de mim. Além disso, como sou mesmo muito ruim na arte da barganha, desisto de empreitadas que, antecipadamente, correm o risco de ser mal sucedidas. Mesmo assim, vez por outra dava uma esticada de olhos nos belos tapetes marroquinos. Como sei que esses são os piores artigos para comprar, sem que fossem necessárias algumas boas horas de negociação, eu desistia até de olhar pra dentro das lojas. Mas isso foi até o dia em que não resisti ao bater os olhos num tapete e, quando vi, já estava sentado no chão, tomando chá de menta, ouvindo do simpático dono da loja a estória de cada tapete, como é feito, de que região vem, as técnicas, etc. Pronto, fui fisgado. Sair dali de mãos vazias me parecia impossível. Como não sei pechinchar, e me sinto mal oferecendo preços que podem parecer insultantes ao vendedor (embora, na maioria das vezes, não seja), faço o jogo do indeciso, fico olhando, olhando, sem falar nada, e o cara vai baixando o preço. Quando senti que tava perto de algo razoável, inventei uma esposa que não ia gostar de me ver gastando tanto dinheiro num tapete e que, provavelmente, não ia gostar do tapete. Simulei uma saída para pensar e consultar a esposa, para depois voltar, mas esse golpe não pareceu convencer o vendedor que veio com uma oferta final, que me pareceu razoável e lá saí eu com um tapete em baixo do braço. O processo todo, quando feito com um cara gente boa como o que encontrei, é muito legal, e não quis saber se fui ou não enganado. Você sempre encontrará alguém com estórias do que comprou, do preço que conseguiu, depois de horas de barganha numa outra lojinha, embora os produtos nem sempre sejam comparáveis, então o melhor é curtir sua compra e esquecer-se do preço.

Em Essaouira, ao menos, há algumas lojas no centro com os preços afixados nos produtos, e não há barganha, o que já é um avanço considerável para quem está acostumado ao padrão ‘shopping center’. Infelizmente, não dá para carregar tudo que eu gostaria. Em Fes, me apaixonei pelas lindas mesas de mosaico de cerâmica, que vi sendo fabricadas, uma a uma, peça por peça, os pedacinhos de cerâmicas cortados a mão. Mas cada mesa custava uma fortuna e, naturalmente, não acreditei o suficiente no vendedor que prometia entregar a mesa na minha casa, sem que eu precisasse me preocupar com frete, alfândega ou qualquer outro aborrecimento burocrático.

Essaouira mereceria mais do que os dois dias em que fiquei. Além do surpreendente por do sol, a cidade tem muito charme, sem hordas de turistas, tranqüila, gostosa, boa comida, boa música, e o mar, sempre o mar. Ficaria aqui, facilmente, uns 3 ou 4 dias, relaxando, comendo bem, ouvindo boa musica africana, andando pelas ruas e sentando nos cafés na praça para tomar chá de menta. Mas a vida continua e há mais o que conhecer.

Finalmente, Marrakesh, a ultima parada da viagem. Por tudo que se lê, vê e ouve falar, é inevitável chegar a Marrakesh com altas expectativas, o que é sempre uma chance de desapontamento. Ao contrário de Casablanca, que cumpriu todas minhas expectativas – eu não tinha nenhuma - Marrakesh pode ser o contrário. Mas com o espírito aberto como estou, Marrakesh é tão síntese de tudo que o Marrocos pode oferecer que não creio que eu saia daqui desapontado, agora, já em direção ao Brasil, para retomar a minha vida normal, não exatamente civilizada.
Fotos em http://janelaseportas.shutterfly.com/action/pictures?a=67b0de21b3400509e451