22 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 22 de março. Dia 5.

Hoje, pela primeira vez, os filhos não visitaram o pai. Uma decisão que vinha sendo ensaiada foi hoje colocada em prática, não sem um pouco de tristeza e de culpa. Antes disso, remotamente, consegui fazê-lo instalar o Skype em seu computador para que os três filhos pudessem fazer uma videoconferência com ele. Os resultados foram médios: as imagens não estavam boas, tampouco a qualidade do áudio, todo mundo falava ao mesmo tempo e o pai, que já não ouve bem, ficou meio perdido, mas penso que cumpriu o objetivo de estarmos juntos com ele. Repetimos a dose de tarde. A ideia é fazê-lo entender que a maior prova de amor que podemos lhe dar é estarmos longe dele.

Fiquei com essa gratificante sensação de ter feito o melhor para meu pai até a noite, quando participei de outro encontro virtual com alguns amigos. Ali surgiu uma interessante reflexão sobre como lidar com nossos velhos, nossos pais, e de como é difícil ter empatia suficiente para nos colocarmos no lugar deles, entender suas vontades, desejos, necessidades. A vida, a nossa e a deles, para nós que ali conversávamos, é altamente valorizada, mas para eles tem muito menos valor, a ponto de acharem sem sentido muitas das decisões que tomamos em nome deles sem consultá-los. Não é à toa que a maior parte das coisas sérias e divertidas do isolamento social se refere à forma como muitos idosos têm reagido, de forma rebelde, às obrigações a eles impostas. Fiquei com esse sentimento o resto da noite e me perguntando o que realmente importa para um homem de 90 anos que não esconde a sensação de já ter cumprido sua missão na terra.

Ao longo do dia tive relatos de diversos encontros virtuais, aniversários, celebrações, reuniões de família. Já tem sido possível perceber que, em alguns momentos, a internet dá sinais de exaustão, o que era previsível. Definitivamente, o volume de dados desse serviço não foi dimensionado para uma situação em que a maior parcela da população brasileira se encontra em casa trabalhando à distância, se comunicando por diversos tipos de aplicativos, baixando filmes, músicas e livros, numa intensidade de uso muito maior do que jamais aconteceu. Isso me faz imaginar como será essa quarentena se ficarmos privados de acesso às informações providas pela internet, ao Whatsapp, Netflix, Skype, Spotify ou e-mail, para mencionar apenas uns poucos de meu uso contínuo. A trilha sonora do corona toca “como será o amanhã?”. 

É interessante observar como cada pessoa lida com o isolamento: comida, bebida, leitura, filmes, internet, jogos. São muitas formas de enfrentar o mesmo desafio. Penso que já estamos na segunda fase do processo de isolamento. Na primeira, tudo parecia confuso, as pessoas ainda mantinham boa parte de suas atividades, as que não mantinham começavam a sentir-se como em férias, iniciava-se um processo de planejamento para o isolamento, todos correram às compras, estocaram comida e produtos de limpeza. Naquele momento, havia um misto de preocupação com ironia, piadas, memes. Havia também os incrédulos ou céticos, que se recusavam a acreditar na necessidade de isolamento e que defendiam continuar suas atividades, “afinal não dá pra vida parar”.

Os casos aumentaram, as primeiras mortes aconteceram, a curva seguiu seu esperado padrão exponencial e as recomendações de isolamento cresceram e se tornaram mais imperativas. A brincadeira e o ceticismo estão aos poucos dando lugar à ansiedade e à expectativa, à necessidade de implementação de arranjos profissionais e familiares que nos permitam sobreviver a esse período de... quanto tempo mesmo? Ninguém sabe... pode demorar. Como sobreviver ao vírus? E se o vírus não nos pegar, como sobreviver às nossas próprias emoções e sensações desse período? As piadas e brincadeiras que hoje nos divertem vão perder a graça quando o contágio chegar aos nossos entes queridos, quando começarmos a perdê-los. O confinamento vai cobrar seu preço, tanto para os que moram sozinhos quanto em família.

Eu sempre disse que viajar é o grande desafio das relações humanas, sejam casais, amigos, familiares. Durante uma viagem, relações que sobrevivem com poucas horas diárias de convivência – no dia-a-dia, cada um com suas próprias demandas, trabalho, estudos, vida social, atividade física, cursos – passam por grande nível de tensão, onde a convivência, de maneira geral, dura as 24 horas do dia. No isolamento social que hoje vivemos, essa prolongada convivência que existe nas férias se repete, com o agravante de que, ao invés dos prazeres que normalmente uma viagem oferece, vivemos sob medo e apreensão. Receita perfeita para impactar a qualidade de qualquer relação.

É nessa fase que penso estarmos entrando. O tédio é compensado com atividades criativas, com interação social virtual, com novos arranjos familiares e profissionais. Pais inventam todos os tipos de atividades para entreter crianças. Há poucos que ainda questionam a importância de não sair de casa. Considerando o impacto, em todas as esferas da vida, que tem a obrigação de permanecermos em casa, é claro que o medo começa a predominar. Há – sempre há – os que acreditam que – com os devidos cuidados – podem ainda circular por aí. Não há proibições nesse sentido, mas não duvido que venhamos a tê-las em breve. E para os que ficam em casa, até onde netflix e joguinhos vão manter nossa sanidade e a de nossas crianças?

As impressionantes dimensões do impacto econômico dessa pandemia para um grande número de brasileiros parecem ficar cada vez mais evidentes e têm gerado uma polêmica sobre a intensidade do remédio. Representantes do setor econômico têm defendido doses mais leves do remédio. Os que defendem as medidas restritivas insistem que a escolha, aqui, implica aceitar ou não um número extraordinário de mortes decorrentes da epidemia. Na primeira linha está o Presidente da República que afirmou hoje que "brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus". E completou: “não interfiro no trabalho do nosso ministro da Saúde, mas eu vejo os números que partem de lá, dessas projeções, e tô achando que há um exagero nisso daí". Gostaria de acreditar nele, mas acho que nem mesmo ele acredita, caso contrário já teria demitido o Ministro que faz projeções exageradas numa questão de tamanha gravidade.

Eu comecei o dia hoje otimista e busquei não me contaminar com os números mais recentes. Não sei, no Brasil, quantos mortos tivemos hoje, quantos novos casos foram confirmados, não me atualizei sobre a situação da Espanha, da Itália, do Reino Unido, da França, dos EUA. Mas é difícil ficar alheio às informações, cada hora surge algo novo, uma nova descoberta, uma nova norma, uma nova recomendação, não tem como me desligar totalmente

Consegui evitar os números, mas teria sido mais fácil lidar com eles... os números são preocupantes, são angustiantes, mas são frios. As histórias que os números escondem, contudo, podem ser muito mais dolorosas. Os casos de infecções do coronavírus continuam, em sua grande maioria, no andar de cima. Mas uma reportagem que li ao fim do dia me deixou bastante impactado ao descrever – e prever – como tem sido – e será – a tragédia para os pobres.

A reportagem descreve a situação em uma favela da Rocinha, no Rio, em que um casal começava, de madrugada (quando o movimento nas ruas já não era tão grande), a subir e descer a ladeira entre sua casa e a única fonte de água disponível para eles. Carregavam os baldes com a água que seria usada para a higiene, o banho, a lavagem de roupas, a cozinha. O cuidado deles era redobrado: suas duas crianças, que não lavavam as mãos há três semanas, têm dermatite atópica e, consequentemente, baixa imunidade (penso que era necessária uma medida provisória que proíba pobres de terem esse tipo de doença... onde já se viu, pobres com dermatite atópica!).

A matéria continua descrevendo as condições da favela, com grande aglomeração de pessoas nas ruas e famílias inteiras dividindo um único cômodo. Uma mulher da comunidade gritava da janela, apavorada desde que começou a sentir febre alta, tosse, dores no corpo e dificuldade para respirar. A recomendação do posto de saúde, que naturalmente não dispunha de testes, foi apenas o isolamento. Mas isso não bastava. A empresa onde trabalha exige que ela vá pessoalmente levar o atestado médico, em um local onde dezenas de funcionários trabalham numa sala fechada, sem ventilação nem limpeza adequadas. Muito justo.

Termino a leitura do jornal triste, muito triste, imaginando como ecoam, nessa comunidade sem água, as recomendações das autoridades de lavar as mãos várias vezes ao dia, de manter as condições de higiene, de evitar aglomerações e de ficar a pelo menos dois metros de distância de outras pessoas. Como vai ser, nessa e em outras igualmente miseráveis comunidades Brasil afora, quando o vírus nelas chegar?

Hoje era para ter sido um dia de maior otimismo, acordei com esse propósito. Eu queria ter feito uma reflexão sobre os aspectos positivos de todo esse processo, especialmente daquilo que pode ser construtivo e edificante, no nível individual e coletivo. Mas fui atropelado pelas leituras do dia. Vou tentar novamente. “Amanhã será outro dia”, como escuto na trilha sonora do corona. E não será, ainda, o fim do mundo. No máximo, como diz a mesma trilha, "It's the End of the World as We Know It”


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