Escrever sobre o que sinto e penso é uma forma de me manter saudável, mas não tem sido fácil. Andei travando. No mundo inteiro, o vírus tem sido um elemento de forte e desconhecido impacto em todas as dimensões da vida humana, saúde, economia, relações sociais e familiares, trabalho, estudos. Além do que significa para a coletividade, cada indivíduo tem sido pessoalmente afetado, em maior ou menor escala, e não é difícil perceber o quanto de medo, ansiedade, incerteza e insegurança cada um de nós carrega hoje.
Essa é a realidade do mundo inteiro, mas, no Brasil, a coisa precisava ser um pouquinho mais complicada: o vírus se tornou mais um elemento do idiotizante grau de polarização vivido pelo País nos últimos anos. Aqui, a divisão quanto às estratégias de enfrentamento do problema não é entre grupos de médicos e infectologistas, com a necessária participação de outros atores para discutir medidas para minimizar os impactos sociais e econômicos. A discussão se tornou basicamente entre opositores e apoiadores do presidente, e o país dos técnicos de futebol se transformou no país dos infectologistas, com todo mundo dando palpites, cheios de razão, sobre coisas como isolamento vertical ou isolamento horizontal.
O principal palpiteiro do momento é o próprio presidente, que, na contramão do que autoridades médicas de todo o mundo dizem e do que líderes de todo os países estão fazendo, diz que o Brasil não pode parar. Defende, assim, que a vida continue, insiste em que o vírus é uma “gripezinha” e afirma com orgulho que a crise no Brasil não será grave porque “o brasileiro não pega nada... ele mergulha no esgoto e não acontece nada”. Aposta na estratégia de combater o isolamento recomendado pelos organismos internacionais e órgãos nacionais da área de saúde. Em oposição a todos os governadores estaduais, lançou a campanha #obrasilnãopodeparar e estimula seus apoiadores a saírem às ruas em defesa dessa ideia. A ver no que dá. Há sempre a chance de que nosso presidente esteja certo e que todo o resto do mundo esteja errado.
Completei uma semana sem sair de casa. Minto... ontem fui ao mercado comprar frutas e verduras, o que representou um angustiante exercício de paranoia. Desci e subi pelas escadas, com máscara e luvas, para evitar elevadores (ainda que subir com as compras seja mais difícil). Da hora em que entrei no carro, até estacionar, ir ao mercado, fazer as compras, trazer de volta, entrar em casa, a sensação que eu tinha o tempo todo era de estar me contaminando a cada movimento. Às vezes eu até conseguia enxergar os coroninhas passando da fruta pra minha mão, do carrinho para a fruta ou para a embalagem, da minha mão para o celular, do balcão do caixa para as embalagens, enquanto eu me atrapalhava em movimentos pouco sincronizados que envolviam o uso constante de gel, de luvas e de uma troca constante de mãos, de bolsos, de chaves. Em casa, cheguei com várias sacolas sem saber o que fazer com elas, com os sapatos, com as roupas, com as chaves, com a carteira. Quer dizer, eu até sabia, mas a cada movimento com um item eu sentia estar contaminando o outro. E como fazer com bananas, brócolis, mamão, passar álcool gel em todos? Desisto. Se você sai de casa, contaminar-se é praticamente certo se você der o azar de passar por onde o vírus passou. A única forma de não me contaminar é não sair de casa... mas será que o vírus já está por aqui?
Uma semana sem sair de casa. No começo tudo era novidade. Não que fosse bom, mas havia muita ironia, humor, criatividade, a descoberta do prazer do ócio, da falta de pressa, a aprendizagem do teletrabalho, as videoconferências com amigos, a redescoberta do prazer de telefonar, as atividades físicas na varanda. Havia desafios, como a constatação e as tentativas de superação da minha incompetência nos afazeres domésticos. Havia tempo livre para fazer aquelas coisas que a gente sempre deixa para depois, a arrumação do armário, ver aquele filme, ler aquele livro, testar aquela receita... tanta coisa que não era feita por falta de tempo. Foi um período de descobertas, aprendizagem, novidades.
Mas o tempo passou e ficar uma semana inteira em casa, confinado, aos poucos vai se transformando em castigo, punição, trazendo consigo os sentimentos associados: tristeza, depressão, desânimo, impaciência, irritação, tudo junto e misturado, em maior ou menor escala. Tenho me dado conta desse movimento e busco minhas próprias estratégias de sobrevivência, de organização pessoal, mental e emocional. Algumas funcionam, outras nem tanto. Vou aprendendo.
Gostei da ideia do “diário de gratidão” que encontrei há poucos dias: registrar diariamente as pessoas, situações, condições ou coisas às quais sou grato. Fiz um pouco disso nos últimos dois dias. Muitas vezes mentalmente, uma vez numa carta, outra vez num telefonema. E me surpreendi com o bem-estar que isso me propiciou, reconhecer a quantidade de razões para ser grato em um momento difícil como esse. Meu próximo passo vai ser imaginar como ser solidário e ajudar pessoas que estão sofrendo muito mais do que eu e que têm muito menos motivos para agradecer do que eu. Algo que vá além da solidariedade escrita ou da manutenção do apoio financeiro àqueles que me servem no dia-a-dia. É justo, é necessário, é importante.
O confinamento doméstico tem me feito (re)descobrir minha casa. Há tantas coisas que foram sendo deixadas de lado ou simplesmente terceirizadas. Estou (re)conhecendo cantinhos, encontrando coisas perdidas. Na geladeira, no freezer, encontro comidas e sobras de comidas que não me lembrava de terem ali entrado um dia. Observo com mais cuidado o que está limpo e o que não está limpo na casa. E, naturalmente, preciso assumir as tarefas que nunca desempenhei na casa, aquelas que foram terceirizadas e para as quais não há, agora, um terceiro para fazê-las.
Descubro que essas tarefas são mais complexas e demoradas do que eu imaginava, o que me dá um novo padrão de referência para as avaliações que delas eu fazia. Percebo minha displicência na administração e no cuidado do meu espaço mais precioso, minha casa. É tão simples imaginar que alguém poderá fazer o que eu não gosto ou não tenho tempo de fazer, e agora eu descubro que, gostando ou não, eu tenho que fazer. E não sei como fazer. Não sei como manter limpa a casa, como lavar os banheiros, como lavar e passar roupas, como cozinhar. A casa tem um enorme conjunto de aparelhos e de produtos que não sei para que servem ou como se usam. E agora?
Sei que não vou conseguir uma revolução pessoal nessa quarentena. Há que se priorizar. Passar roupas, por exemplo, requer um nível de conhecimento, habilidade e prática que eu jamais terei no pouco tempo que me resta de vida. Não há por que insistir nisso. Aliás, quando estudei na Inglaterra, há 20 anos, eu já havia entendido que esse negócio de passar roupas era um privilégio de sociedades desiguais, onde há quem faça esse serviço. Descobri isso na marra, ao perceber que aquelas camisas de delicioso algodão que eu adorava se transformavam, depois de lavadas, em pedaços de pano amarrotados que jamais viriam a ser como eu as conhecia no Brasil. E comecei então a usar apenas camisetas, camisas e calças que, dispensadas do ferro elétrico, não me fizessem sentir um mendigo ao usá-las. Toalhas, lençóis, passar pra que? Claro, ficam lindos, cheirosos, macios... mas, sejamos honestos, dá pra viver sem isso. E tenho sobrevivido sem passar nada... lavo, seco, dobro e guardo. Apenas não consigo dobrar um lençol de elástico, mas acho que isso ninguém consegue mesmo, né?
Mas a pior parte mesmo tem sido cozinhar. Que pesadelo! Na minha irônica forma de me defender dessa falha de caráter, eu sempre dizia que, por não saber cozinhar, me bastava uma boa agenda de telefones e endereços. Eu sempre brincava dizendo que, ao prestigiar quem sabe fazer o que eu não sei, eu estimulava a economia e distribuía renda. E, assim, jamais consegui, nessa área, ir além de um bom omelete. Nem foi falta de tentar. Matriculei-me em um curso de culinária e, já na primeira aula, tive uma discussão com a professora na instrução “pegue um punhado de arroz”. Ora, punhado não é medida. Medida é peso, número, quantidade. E no curso não existia nada disso, tudo era vago, tempos, porções, quantidades... Um pouco demais para um engenheiro.
Levei a vida assim, me virando bem todas as vezes em que não dispunha de alguém para fazer o que eu não sabia. Quando estudei fora, havia muitas opções de pratos prontos, de boa qualidade, a custos razoáveis. Era minha (boa) opção, quando não comia na rua. Aqui em casa, em dias especiais, um bom prato encomendado era complementado por uma mesa bem arrumada (essa parte eu gosto e faço bem), e o jantar se tornava especial. Mas o vírus mudou tudo isso... não há de quem comprar ou, quando há, eu não quero sair para comprar, ou, quando há entrega, minha paranoia não me permite confiar. Quando essa quarentena se iniciou, fiz uma grande compra de alimentos, produtos não perecíveis, carnes congeladas, que, obviamente, pressupunha a existência de alguém para prepará-los. Quando ficou claro que não haveria esse alguém, mudei a estratégia, e me preparei para a quarentena com alimentos preparados. Como a combinação carne e salada sempre foi perfeita para mim, não precisava de mais do que isso. Mas na medida em que até o que eu mais gosto se torna insuportável quando repetido o tempo todo, comecei a ter ideias para variar, fazer experiências. E foi aí que as coisas começaram a se degringolar completamente. Andei comendo cada coisa horrível...
Decidi que, se passar roupas era uma tarefa impossível de eu dominar até o fim da vida, cozinhar para a sobrevivência de maneira minimamente suportável era uma meta mais factível. Resolvi começar pelas sopas, que sempre foram minha refeição noturna. Comprei quinoa, adoro sopa de quinoa. Dei um google “sopa de quinoa”, vieram centenas de receitas. Pensei, vou escolher a mais simples. Acabei descobrindo que, para fazer uma sopa de quinoa, eram necessários, em todas as receitas, muito mais ingredientes do que a própria quinoa, e ninguém nunca me havia contado isso. Não havia receita com menos de 5 ou 6 ingredientes, o que tornava a minha empreitada assustadoramente complexa e praticamente inviável, porque eu não dispunha de nenhum desses ingredientes em casa, cebola, alho, salsão, salsinha, cebolinha... afinal, para que eu precisaria disso tudo na minha quarentena?
Em crise com minhas constatações, compartilhei meus infortúnios com amigos e fui brindado com generosos apoios, listas de endereços com delivery, sites de receitas para idiotas, oferta de vídeo aula de culinária, palavras de coragem e risos incrédulos.
No lado mais prático, fui brindado com um roteiro para uma sopa básica de quinoa, exatamente o que eu precisava, ainda que o roteiro tenha se esquecido de mencionar a água. Quando fiz o questionamento sobre a falta desse ingrediente, recebi de volta “uai... claro que tem que ter água... você só pode estar brincando”. Eu não estava. Outra valiosa e carinhosa ajuda veio de um casal querido que soube que aqui em casa havia uma couve-flor que provavelmente apodreceria sem uso. Prepararam então uma sopa de couve-flor, e me enviaram um elaborado e detalhado tutorial que incluiu filmagem, áudio e texto, de uma forma que me fez quase acreditar que “essa até eu consigo”.
Em meio a essa loucura em que estamos vivendo, meus problemas são tão banais, tão simples, tão irrelevantes...há perguntas sem respostas: o que vai acontecer quando tudo terminar? vai terminar? como vai terminar? São dúvidas existenciais, angústias, são problemas econômicos, relações abaladas, danos físicos e emocionais... não tenho controle sobre nada e tenho buscado me fortalecer para o que vem pela frente. Aprender a fazer uma sopa é parte disso, mas há coisas muito mais importantes que me fazem querer sair desse processo como um homem melhor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário