27 de julho de 2001

Jalapão, 15 a 20 de julho de 2001

Por sugestão da Maristela, minha primeira viagem pelo Brasil, logo após minha temporada de um ano e meio fora do País, foi no Jalapão, um nome que, até então, eu jamais havia ouvido falar. Mesmo para quem conhece bastante o Brasil, o Jalapão não se parece com nada que eu já tivesse visto anteriormente. Localiza-se ao leste do Estado de Tocantins, na transição entre o cerrado e a caatinga, uma região formada por rios de águas translúcidas, cachoeiras, oásis, veredas e dunas de areia (as únicas no Brasil fora do litoral), e que tem atraído crescente número de amantes da natureza e de esportes radicais. Também conhecida como deserto do Jalapão, pelo seu solo predominantemente arenoso, tem uma densidade populacional de apenas 0,8 hab/km² (contra uma média nacional de mais de 20), sérias deficiências de infra-estrutura – energia, telecomunicações, saúde, educação e se aproxima bastante do Brasil de verdade, esse que a maior parte de nós desconhece.

Roda-se muito até chegar no Jalapão – 650 km de Brasília até Ponte Alta, a porta de entrada da região – mas roda-se mais ainda na região, onde tudo é muito distante, numa extensa área ainda pouco tocada pelo homem. Tivemos durante todos os dias a região inteira praticamente a nossa disposição. Nos poucos dias que ali ficamos, rodamos quase 1000 km de areia, terra e mato, só percorríveis a bordo de um carro apropriado, o que terminou sendo um ótimo teste de estréia para o meu recém-comprado jipinho.

Andamos por lugares tão remotos e isolados que desejei, várias vezes, estar fazendo a viagem acompanhado de pelo menos mais um carro. Qualquer pane ali no meio do nada seria fatal, isolados que estávamos de qualquer traço humano e, naturalmente, sem rastro de sinal no celular. O consolo é que ficaríamos perdidos rindo muito, uma vez que bom humor foi a tônica da viagem. Maristela é uma grande companheira de viagem, eficiente navegadora, apesar de, como mulher que se preze, ter viajado com a nécessaire, cheia de cremes Lancôme para cada parte do corpo, com o seu inseparável travesseirinho de macela, e ter-se esquecido do sabonete, dos óculos de leitura, do carregador do celular, ter-me feito desviar por uns 40 km depois de confundir no mapa Dianópolis com outra ´pólis´ qualquer e, na hora do pneu furado, ter atribuído a um erro de tradução no manual do japonês para o português sua incapacidade de distinguir entre uma saliência e uma reentrância. Seu bom humor, sua presença de espírito, sua disponibilidade e flexibilidade para uma viagem pouco confortável e previsível, sua língua afiada, nossas conversas, tudo tornou a viagem ainda mais agradável. Definitivamente, o Jalapão não é uma viagem para carregar ´malas sem alça´.

Nossa base de entrada no Jalapão foi a cidade de Ponte Alta, à qual se chega depois de uns 120 km de estrada de terra em precárias condições (vimos depois que a cidade de Mateiros, um pouco adiante, poderia constituir-se numa base mais adequada para explorar a região). A estada no Hotel Planalto, da dona Lázara, porém, torna a estada em Ponte Alta extremamente prazerosa. D. Lázara e seu marido saíram de São Paulo por causa da violência urbana, manifestada numa série de eventos contra seus familiares e seus negócios. Ela, uma goiana do interior, que impressiona pela simpatia, pelo dinamismo com que gerencia o hotel, pela liderança que exerce sobre a população local, pelo conhecimento e pela consciência sócio-ambiental, pela lúcida visão dos negócios, do turismo na região, da política local e, é claro, pela deliciosa comida que faz (incluído, aí, o inesquecível ‘pingo’, doce de leite com açúcar queimado).

D. Lázara não foi, porém, a única figura interessante que encontramos pelo caminho nesses dias. Tatiana, a simpática e sedutora garçonete, dona e hostess do quiosque à beira-rio onde tivemos nossa primeira refeição no Jalapão – vestida num minúsculo biquíni escondido (escondido ?!) por um vestido de rede de pescador, serviu-nos lauto jantar – arroz, feijão, macarrão, frango, bife acebolado, batata frita, salada –, precedido de fatias de caju e laranja da terra. Seu Bonifácio, o guia que se perdia porque, segundo ele, ´andam construindo muitas estradas por aí´ e a quem eu, num momento de distração, pedi que tirasse uma foto nossa, logo ele que não tinha nenhuma das mãos.

Nossos dias começavam bem cedo, o que não era problema para quem dormia sempre tão cedo, dada a absoluta inexistência de opções que nos mantivessem acordados até mais tarde. Apenas no primeiro dia, foram 250 km de estradas que incluíram passeios à Lagoa Azul, linda com os buritis à sua volta, mas imprópria para banho; a praia do Rio Novo, com extensão de areia que fazia lembrar o mar, suas águas límpidas e tranqüilas, ótimas para banho; a impressionante Cachoeira da Velha, na verdade duas cachoeiras em forma de ferradura, oferecendo um espetáculo e um volume de água inacreditáveis para uma época de estiagem; o Brejo da Cama, outra bonita cachoeira; uma tentativa frustrada de alcançar a Cachoeira do Lajeado – seu Bonifácio se perdeu; e, por último, Sussuapara, um magnífico cânion de 60 metros de comprimento, 15 m de altura, por onde corre um fio d´água, e sobre cujas paredes forma-se um impressionante mosaico de samambaias. Belezas demais para descrever em algumas linhas ou para conseguir retratar numa fotografia.

O fim do primeiro dia acabou marcado pelo divertido episódio do pneu furado, em que ficamos por algum tempo no meio daquela estrada empoeirada tentando achar a tal da saliência onde encaixar o macaco (que Maristela julgava ser uma reentrância), buscando respostas no manual do carro. Apesar de nossas óbvias dificuldades, recusamos com muita dignidade, para não pagar mico, as ofertas de ajuda dos jipeiros que paravam – afinal de contas, se não déssemos conta de trocar um pneu, o que estávamos fazendo ali? Mas depois de tudo resolvido, já no hotel, o mico maior acabou sendo quando um outro jipeiro veio me perguntar se eu tinha rádio no carro e eu, muito animadinho, respondi que sim, que tinha um rádio AM/FM com CD, enquanto o companheiro, muito desconsolado, me lembrava que o que ele queria era um rádio de comunicações.

Se o Jalapão é remoto é inexplorado, nosso segundo dia contemplou lugares ainda mais remotos e inexplorados dentro do próprio Jalapão, fora do circuito convencional – a região entre Pindorama e Ponte Alta. Para isso, utilizamos como guia o Aldo, um rapaz que conhece muito bem toda aquela região mas que, por conta de sua timidez, quase perde a função de nosso guia para um outro que, no início do dia, alardeava seu próprio saber e conhecimento da região. Fiquei tão impressionado com a habilidade e o potencial de Aldo para atuar como guia que, lembrando-me do episódio da manhã, disse-lhe “Aldo, você tem que ser mais ousado para trabalhar como guia, tem que dar o seu currículo”. Eu, que normalmente sou cuidadoso no uso da linguagem com pessoas mais simples, dessa vez extrapolei e o coitado do rapaz ficou bastante acabrunhado com minha sugestão, como quem diz ´sou pobre, mas se tiver que dar o currículo eu deixo de ser guia´.

Esse segundo dia incluiu a Lagoa do Caldeirão – enorme, cercada de florestas e buritis, águas de absoluta transparência, que nos propiciou um longo e revigorante banho; a belíssima Cachoeira do Rio Soninho; um ponto do Rio Soninho ótimo para banhos e hidromassagem; o Brejo do Boi, um estupendo e imponente cânion, que se abre para receber as águas de uma queda d´água e abrigar uma floresta fechada, um local onde chegamos por meio de uma trilha que, de tão antiga e sem movimento, praticamente não existe mais, apenas mato, galhos, árvores; finalmente, o Morro da Pedra Furada, com suas belas formas e janelas desenhadas pela ação do vento e da chuva.

Ao fim do dia, no hotel, cansados e sem pressa, nos deliciávamos com as estórias e as conversas de Dona Lázara, enquanto ela cozinhava, sem desconfiar que ela não estava à toa na vida como nós. Sem muita sutileza, ela nos sugeriu que fôssemos passear no rio, ver a cidade, comprar artesanato, qualquer coisa que a deixasse livre para preparar o jantar que iríamos comer mais tarde. Parecia mãe mandando filho brincar para não atrapalhar o serviço de casa. Valeu a pena sermos enxotados – a comida de D. Lázara é deliciosa, uma mistura do tempero mineiro e do goiano, um ensopadinho de carne com batata, macarrão, feijão, arroz, salada, frango ensopado, e uma cerveja geladinha para acompanhar. Não faltou, ainda, por uma sutil sugestão minha, um delicioso docinho caseiro. Depois de tudo isso, só nos restava purgar nossas culpas andando à noite pela cidade para digerir os excessos.

Ponte Alta é a típica cidade do interior, com seus 6000 habitantes, infra-estrutura mínima, dois hotéis simples, poucos restaurantes, nenhum banco, ausência de médicos, poucos meios de transporte coletivo para ligação às cidades maiores. Nesta época do ano, o rio é o ´point´ da cidade, um jeito simples e barato de viver a vida – músicas, barraquinhas de comidas e bebidas, karaokê (terrível!), moleques pulando no rio do alto da ponte.

A despeito das maravilhas que encontramos no primeiro e segundo dias de nossa viagem, foi no terceiro dia que viemos encontrar as atrações que deram fama ao Jalapão. Já mais confiantes, dessa vez saímos sem guia em direção à cidade de Mateiros. As estradas pareciam só piorar, não havia qualquer tipo de sinalização, o tráfego de veículos era quase nulo, não havia viva alma a quem pedir informações, nada de casas ou fazendas no meio do caminho. Não consegui evitar alguns pensamentos do tipo ‘e se o carro quebra aqui?’, mas essas idéias não resistem muito, tamanha a beleza do cenário durante todo o trajeto. Dirigimos ao longo dos chapadões da Serra Geral – uma grandeza de tirar o fôlego – até alcançarmos a entrada da estradinha que nos levaria às dunas. A partir dali, foram 5 quilômetros de areia fofa, o que requereu uso de tração reduzida (força plena no carro), e o jipinho resistiu bem ao desafio. Difícil concentrar-me na dificuldade da estrada se o que vai aos poucos se revelando é cada vez mais deslumbrante: as dunas vão-se aproximando, passamos por mais uma linda vereda – uma lagoa azul orlada de buritis e finalmente, com algum esforço do carro, chegamos ao pé das dunas.

Impossível não nos emocionarmos aqui. Saímos do carro, em silêncio quase sagrado. A nossa direita, um grande chapadão; um charmoso fio de água contorna toda a extensão das dunas; diversas veredas de buritis por perto; e, bem a nossa frente, as impressionantes dunas, as únicas dunas brasileiras fora do litoral, nos convidam a subi-las. Ainda em silêncio, caminhamos por algum tempo ao longo do fio d´água, desfrutando a sensação única de sermos seletos e privilegiados espectadores daquele espetáculo. Não há outros turistas, não há moradores locais, não há casas, não há alma viva num raio de muitos quilômetros.

Subimos as dunas e por lá ficamos muito tempo, andando sem rumo, nos fascinando com as vistas lá de cima, usufruindo a sensação de pisar um chão tão pouco pisado, de contemplar paisagens tão imponentes, grandiosas, misteriosas, uma sensação que nos faz pequenos e, ao mesmo tempo, nos torna únicos, diferentes, especiais. Em alguns pontos da duna, nos sentamos para apreciar, para escutar, para falar, para, sem pressa, deixar aquela paisagem, naquele momento, passar a fazer parte de nós.

Olhei de cima das dunas o meu carrinho, minúsculo lá embaixo, e me senti feliz porque, apesar das outras prioridades, me decidi a comprar um carro que, mais que um simples meio de locomoção, significava para mim a liberdade e a possibilidade de estar ali em cima daquelas dunas, e que me convidava a explorar o novo, o desconhecido, o distante.

Saímos em direção a Mateiros em transe. Transe tal que Maristela incorporou sua criança perdida em alguma curva da história e começou a imaginar, no alto das montanhas que margeavam a estrada, ao invés de pedras e árvores, índios em posição de ataque, fortalezas medievais, torres, soldados. No estado em que estávamos, não era preciso nenhuma droga nem muita imaginação ver soldadinhos escondidos atrás das pedras.

Mateiros é um minúsculo município com 1000 habitantes, mas provido de uma opção razoável de hospedagem, o Hotel da Cristina. Mal nos instalamos e começamos a explorar a região ao redor de Mateiros, novamente sem guia, mas forçados a parar com freqüência para solicitar informações, dada a absoluta ausência de placas de sinalização nas pequenas estradas que levam às principais atrações.

O Fervedouro é um verdadeiro oásis, bastante semelhante aos oásis que visitei no deserto do Egito. Um poço de cerca de 15 metros quadrados, apenas um olho d´água, bastante profundo. A água sai do fundo misturada com a areia com pressão tal que te impede de afundar, por mais que se tente, uma sensação deliciosa, infantil, num lugar calmo, cercado por bananeiras, água translúcida, areia fina e pura, um verdadeiro spa natural no cerrado.

Do Fervedouro fomos a Mumbuca, um povoado de menos de 100 pessoas, de estrutura matriarcal, habitado há anos por remanescentes de quilombos da Bahia, e agora famoso por um refinado trabalho de artesanato em capim-dourado. Fomos recebidos por D. Noemi, a matriarca maior, que nos narrou a saga das mulheres de Mumbuca e falou-nos de sua opção por não se casar, muito complicado segundo ela.

Já era fim de tarde e, por mim, já podíamos voltar para o hotel, pulando a última etapa da agenda do dia, a Cachoeira da Formiga, que, no meu julgamento, seria apenas uma cachoeira, sem nada mais de especial além das outras que já havíamos conhecido. Por sutil insistência de Maristela, acabamos indo lá e me dei conta, então, de como é fácil cair na tentação de minimizar as possibilidade da natureza após um dia inteiro de tanta fascinação. Acostumado com rios e cachoeiras em vários lugares do Brasil e do mundo, jamais havia visto águas tão transparentes como as que vi na Cachoeira da Formiga. Apesar do adiantado da hora, a beleza e a temperatura do lugar fez-nos ali ficar por bastante tempo fechando um dia que foi perfeito do início ao fim.

Não creio que o Jalapão permaneça esse deserto por muito tempo. Já há sinais aqui e ali de grandes empreendimentos turísticos em construção. A grande indústria do turismo não deixará passar a oportunidade de explorar uma região tão única e fascinante, encantadora mesmo para quem, como eu, já viajou por diversas regiões que, igualmente,continham dunas, cachoeiras, rios, chapadas. Apenas espero não ser surpreendido, num dia de transe, no alto das dunas, por gritos de “olha o mate gelado” ou “olhaê o picolé!”.

31 de janeiro de 2001

O Terremoto de Bhuj, India - Janeiro de 2001


Quando cheguei a Mumbai, na Índia, para encontrar o meu amigo Steve e iniciarmos nossa viagem de quase 30 dias pela Índia, ele já estava lá e me disse que havia comprado passagens de trem para irmos a Bhuj. Eu, que havia acabado de chegar do Egito, e mal tinha tido tempo de me informar sobre o que me aguardava na Índia, perguntei a ele "e o que tem em Bhuj de interessante?". A resposta dele foi fantástica: "nada, nenhuma atração turística, apenas uma cidade comum da Índia". E para lá fomos. A cidade era tão comum que sair dela não era muito trivial. Nem todos os dias havia trem para o nosso próximos destino. E foi assim que ficamos em Bhuj por longos 5 dias, ao invés de 2 dias como inicialmente planejado. Foi uma experiencia interessante andar tanto tempo sem destino por uma cidadezinha sem maiores atrações, conhecer os lugares, conversar com as pessoas, brincar com as crianças, experimentar a comida, perceber os cheiros, respeitar as vacas, sentir a Índia. Foi um belo estágio para a viagem que se iniciava. Depois da Índia, ainda passei pela Jordânia, pelo Nepal, pela Tailândia, por Bali, por Paris e, em janeiro de 2001, viajava sozinho pela Itália. Ali fui surpreendido, no dia 26 de janeiro, data nacional da Índia, pela notícia de um grande terremoto que teve como epicentro exatamente a remota e desconhecida Bhuj. A cidade foi completamente devastada. Sua população quase totalmente destruída. O filme da estada em Bhuj começou a rodar na minha cabeça e devastado fiquei eu ao lembrar de cada pessoa, criança, vaca, rickshaw, restaurante, templo, rua, esquina de Bhuj, que tão bem me receberam na minha introdução à Índia e que, agora, já não existiam mais. Mais do que o fatalismo de pensar "puxa, eu podia estar lá agora!", o que me pegou foi lembrar das criancinhas, filhos dos donos da pousada em que nos hospedávamos, que todos os dias nos brindavam com um delicioso questionário, tão típico das crianças que lidam com o novo, o desconhecido, o estrangeiro. Elas também não existem mais...