23 de janeiro de 2015

Detalhes tão pequenos da Chapada...

Parque Nacional Chapada dos Veadeiros
Na primeira vez em que fui à Chapada dos Veadeiros, voltei com uma casa alugada em São Jorge. Era o ano de 1997, eu recém-separado, e os recém-amigos Renata e João me convidaram. João já era frequentador e organizou a viagem para um grupo de amigos. Era o feriado de 7 de setembro, todas as pousadas cheias, e sobrou-nos a alternativa de nos hospedarmos num hotelzinho quase de caminhoneiro em Colinas, uma cidadezinha sem graça a 30 km de terra de São Jorge. No caminho para Colinas, uma parada no Vale da Lua, cartão postal mais famoso da região, e em seguida uma parada para um suco em São Jorge. Foi o suficiente para eu "sentir o clima". 

João queria ver uma casa que estava anunciada para alugar e fui vê-la com ele, apenas para passear. João olhou a casa, conversou com o proprietário, perguntou o preço e ficou de pensar. Voltamos para encontrar o grupo e, no caminho, ele comentou que estava interessado mas achou um pouco caro. Custava R$ 150,00, pouco mais que um salário-mínimo. Eu disse a ele, do nada, sem pensar no que falava , que topava dividir o aluguel com ele. João, que mal me conhecia, me perguntou se eu era maluco de alugar uma casa num lugar que eu havia acabado de conhecer, em sociedade com um sujeito que eu igualmente havia acabado de conhecer. Respondi a ele que não era nada difícil pra quem havia acabado de se separar. Na pior das hipóteses, não daria certo. Uma separação é bem pior...

Demos meia volta para fechar o negócio. Perguntei ao proprietário, Antenário, como faríamos o contrato e ele respondeu "moço, eu tinha um contrato com o inquilino antigo... Mas com vocês, tô olhando nos olhos e vejo que não precisa de contrato não... Só se vocês quiserem". Se eu tinha dúvidas sobre o negócio, elas terminaram ali.

A casinha e o Valentino
As próximas semanas foram de montar a casa. Eu e João parecíamos um casal montando a primeira casa, de loja em loja buscando cama, lençóis, colchonetes para os hóspedes, louças e talheres, fogão, geladeira, prateleiras, tudo do mais simples e mais barato. E aos poucos íamos ocupando a casa. João era DJ, sempre trabalhava nos fins de semana, de forma que a casa era toda minha quando eu queria ir. 

Aos poucos fui conhecendo a vila, as pessoas, os nativos e os forasteiros, os personagens. Sim, São Jorge não tinha habitantes, tinha personagens. Antenário, sua esposa Zeza, Téia, dona Rosa, Waltinho, seu Wilson, seu Claro e tantos outros nativos, cada um com a riqueza de suas estórias e vidas. Havia muitos outros, anônimos, que compunham esse quadro de estórias e vidas com quem eu aprendia um pouco a cada dia. Seu Wilson, por exemplo, como tantos outros nativos, havia sido garimpeiro e agora era guia. Os passeios com ele eram verdadeiras aulas da região, da história, da vida. Muitos anos depois, em um desses passeios em que ele me guiava com meu irmão Ronald à deslumbrante Janela do Abismo, havíamos vencido uma passagem particularmente difícil quando seu Wilson voltou e começou a arrumar a passagem com pedras. Perguntamos a ele se voltaríamos pela mesma trilha e ele respondeu candidamente, como se não houvesse outra resposta: "não... é para os que virão depois de nós".

A Janela do Abismo
Ao mesmo tempo em que conhecia e aprendia com os personagens de São Jorge, eu ia descobrindo as cachoeiras e as paisagens da região. Cada uma mais linda do que a outra, todo dia uma nova descoberta, um cenário de belezas pouco tocadas e exploradas, algumas em estado bruto. Além disso, sempre as ricas conversas com os donos das propriedades. Como o simpático senhorzinho dono da minha favorita Morada do Sol, que explicava por que recusava as muitas ofertas para vender sua propriedade por muito dinheiro: "eu sempre morei aqui, este é meu lugar, o que vou fazer com essa dinheirama?". Parece elementar né?

Algumas pessoas falavam muito do São Jorge de antigamente, bem antes de eu chegar. Para mim, porém, o São Jorge de 1997 ainda era suficientemente isolado, puro, intocado. Eu me sentia adaptado e incluído, mas eu sabia que eu não pertencia ao lugar... Ainda que eu quisesse. Lembro-me do dia em que eu não quis assinar um abaixo-assinado a favor do asfaltamento da estrada até a vila. Para mim, era apenas o desejo de "poupar" são Jorge do turismo de massa. Mas fui confrontado por um local que apontou o óbvio egoísmo dessa postura. São Jorge não tinha - até hoje não tem - escolas, hospitais, bancos e outros serviços básicos, e por isso era assustadora a quantidade de acidentes nos 30 km da perigosa estrada de terra até Alto Paraíso. Minha ótica supostamente bem intencionada era furada. Ouvi então relatos de que, há muitos anos, outros forasteiros como eu também resistiram à chegada da luz elétrica à vila, em defesa dos charmosos e românticos lampiões na rua. A luz veio, como queriam os nativos, e possibilitou-lhes ter acesso às novelas, aos eletro-eletrônicos e às lâmpadas que lhes permitiam ler, estudar ou costurar à noite. É preciso sempre nos desprendermos de nós mesmos antes de opinar sobre o que é bom para alguém.

Minha casa era no epicentro da vila, em frente ao popular bar do Pelé, ao lado da pracinha, o que, naquele tempo, não era grave, a não ser nos grandes feriados. Mesmo assim, o máximo de desconforto que eu enfrentava, além da cachoeira cheia, era aguentar os malucos-beleza cantando e tocando Raul Seixas a noite toda. Passei a evitar os feriados e ir a São Jorge com frequência cada vez maior. Sozinho, com a namorada, com as filhas da namorada, com amigos. Monica e suas filhas, Priscila e Vanessa, fizeram parte e embelezaram esse período de deslumbramento com a simplicidade e a beleza da Chapada.  Vanessa batizou de Valentino o carro que comprei à época e que simbolizava essa possibilidade de navegar mares por mim ainda não navegados. (A despedida de Valentino).

Foi um período que me marcou muito, que mudou minha forma de ver e sentir a natureza e transformou para sempre a minha forma de viajar e conhecer o mundo. Mas como todos os ciclos da vida, esse se transformou. Fui fazer o mestrado, entreguei a casa, vendi o carro... Mas não me desfiz da Chapada. Ela continua fazendo parte da minha vida, embora com frequência muito menor do que eu gostaria, precise ou mereça. 

Eu mudei, são Jorge mudou, mas, 18 anos depois, a vila ainda tem muito do que me encantou. O asfalto chegou e, com ele, os ônibus de turistas. Minha casa virou restaurante "serve serve". Os campings  proliferaram. Os problemas estruturais - água, luz, lixo, telefonia, segurança - se agravaram. O conceito de "capacidade de carga", que antes era desnecessário, é hoje ignorado quando mais se precisa dele. Não há limites, não há regras, não há padrões. Quem chegar é bem-vindo. Nos grandes feriados, as cachoeiras estão ainda mais cheias, as ruas sujas e barulhentas, há desproporção total entre o que as hordas demandam e o que a Vila oferece. 

Almécegas
Resisto à tentação de ficar dizendo que "naquele tempo é que era bom". É diferente, mas ainda é bom. Dezoito anos depois, estou hospedado na mesma Trilha Violeta, pousada onde tomava meu café da manhã quando tinha a minha casinha. É período de férias, mas não de feriadão. Vila calma, silenciosa, aconchegante. Visitei as velhas e conhecidas cachoeiras. Continuam encantadoras. Eu e a Vila de São Jorge não somos mais os mesmos, mas a relação de encantamento permanece. Pelo menos de mim para ela...