31 de agosto de 2004

Mexico - Agosto de 2004

México, agosto de 2004

Por mais que eu evite, impossível fazer qualquer viagem sem que as idéias e imagens que sempre tive, ouvi ou li sobre aquele lugar me venham à cabeça. São idéias pré-concebidas, eu sei. Preconceitos, talvez. No caso do México, em particular, país tão conhecido e falado, que sempre esperei um dia conhecer, no momento em que me decidi pela viagem eu já tinha um conjunto grande de imagens na mente, as quais foram aumentando à medida que eu ia lendo e conversando com as pessoas. Foi assim que cheguei ao México. Cheio de idéias, expectativas, imagens e, ao chegar aqui, foi também inevitável comparar minhas idéias pré-concebidas com as que encontrei na realidade... só para constatar que nem toda idéia pré-concebida é, necessariamente, falsa ou verdadeira.

Minhas primeiras imagens do México vêm de alguns desenhos animados e filmes da infância. Esses desenhos e filmes sempre retrataram o povo mexicano com carinho, aqueles povoados no meio do nada, empoeirados, com umas dez casas, torrando sob o sol, com aqueles mexicanos sonolentos sentados sob um sombrero, vendo a vida passar. Esses povoados talvez existem, mas não os encontrei na minha viagem (devem estar próximos à fronteira norte, onde são filmadas a maior parte das produções americanas na região). Até encontrei cidadezinhas pequenas, charmosas, simpáticas, mas nada dos tais povoados desertos e empoeirados, objetos das minhas fantasias de infância.

Outra idéia pré-concebida, essa preconceituosa mesmo, é que o país era meio brega. Reforçada principalmente, agora, pelos filmes, novelas e programas infantis modernos. Trata-se, naturalmente, de uma avaliação nada politicamente correta, até mesmo porque o conceito de brega envolve uma avaliação subjetiva de culturas. No caso do México, uma cultura rica e diferenciada é vista - pelas suas roupas, músicas, decoração - como brega. Contudo, da mesma maneira que eventualmente gosto de visitar a cultura brega brasileira, adorei estar em contato com esse lado da cultura mexicana. Uma delícia sentar-me em um bar ou café, observar as pessoas, escutar estórias, ouvir as músicas em seus tons desesperadamente dramáticos, observar as roupas e combinações coloridas de homens e mulheres, assistir às famosas novelas mexicanas (algumas retransmitidas pelas emissoras brasileiras). Isso é o México.

À medida que escrevo, me dou conta de como o México é presente no imaginário dos brasileiros, bem mais do que outros países latinos vizinhos. Outra idéia pré-concebida é a de um país de machões. Parece um pouco mesmo, do que vejo, do que converso com motoristas de taxi, do que leio nos jornais. Há aqui um tipo de bar muito comum, as cantinas. Até poucos anos atrás, a maioria das cantinas proibia mulheres e crianças. Hoje mudou um pouco, mas muitas mantêm o hábito. Entrei numa delas outro dia. Só havia homens, todos com cara de mau, do tipo que vemos nos filmes, enchendo a cara e, pasme, jogando dominós. Não é fantástico? Pedi uma cerveja Corona e o garçom me olhou com uma cara meio estranha, mas trouxe. Depois vim a descobrir que Corona é cerveja pra turista, fraquinha. Não é coisa de macho. Acho que eu teria feito mais sucesso se tivesse pedido um mezcal, um tipo de tequila pra macho.

Ao mesmo tempo em que cultua uma imagem de paíse de machões, tem um outro lado da cultura mexicana, que conheci por leituras, relatos e conversas com amigos (mexicanos e brasileiros casados com mexicanos), que falam de uma sociedade altamente matriarcal, onde a “madrecita” tem um papel fundamental na estrutura familiar, conduzindo a ferro e fogo os destinos de cada membro da família. Essa parte, naturalmente, não é visível aos olhos do turista, mas me recordo bem de alguns relatos hilários e dramáticos, especialmente de amigas que se aventuraram em relações com homens mexicanos.


Sobre a comida, vim imaginando encontrar apenas coisas muito apimentadas. Sem dúvida, há muito disso, e o tal do chili abunda em qualquer restaurante ou cantina. Mas basta perguntar, buscar, e se encontram opções bem interessantes sem precisar sair cuspindo fogo. As opções também coincidem com um pouco do imaginário construído nos restaurantes e bares mexicanos visitados pelo mundo: tortillas, quesadillas, tacos, guacamole, etc. O tal do mole é um molho que pode ser feito de varias maneiras, o mais famoso em Oaxaca é o mole negro, que inclui, entre 32 especiarias, o chocolate. E jogam isso tudo por cima de um peito de frango com resultado acima da expectativa (não, nem tem gosto acentuado de chocolate). Em Oaxaca, o prato mais delicioso foi a botana oaxaquena, uma mistura de tudo que se faz na região: tem tortilla, taco, carne de boi, de porco e de galinha, mole, quesillo (um queijo parecido com queijo coalho, comum na região), guacamole, frijoles (tutu de feijão). Fantástico... e ninguém vai poder dizer que comer aquilo tudo não é coisa pra macho!

Mas diferente mesmo, foram os Caracoles al Mole, pedido feito pela minha amiga Dora e pelo seu filho José Ricardo, na Cidade do México. No meu espírito aventureiro, que só veta, em princípio, crustáceos (pela alergia) e berinjelas (pelo odioso gosto), nem perguntei o que era, ela pediu, deixei vir. Os tais caracoles são lesmas, amigáveis lesmas, banhadas num indecifrável molho escuro. Lesmas dentro de suas casquinhas duras. Você pega as lesmas, uma a uma, nas suas conchinhas e, com um palito, retira o bichinho lá de dentro e come. Eu sei, a descrição não ajuda e a aparência ajuda menos ainda. Mas é gostoso. O ruim é que cada vez que eu enfiava o palito lá dentro e puxava o bicho ficava com medo de que o bicho viesse se mexendo. Mas é gostoso. No fim, não devem ser muito diferentes dos chiquérrimos escargots da culinária francesa.

Um dos aspectos mais fascinantes da cultura mexicana é a forma como as civilizações Maya e Azteca ainda se fazem presentes. Contrariamente ao que eu acreditava, a civilização Maya, com uma rica história de quase 3000 anos, nunca "desapareceu", pois ainda há remanescentes que vivem na região (não só no México) e muitos deles ainda falam dialetos da língua original. De maneira geral, porém, essas duas civilizações antigas foram praticamente dizimadas em pouco mais de dois anos por um pequeno grupo de invasores espanhóis. Eles destruíram o império Azteca, trouxeram uma nova religião sob as bênçãos do Papa e reduziram os povos nativos a cidadãos de segunda classe e escravos. Não muito diferente do que tivemos no Brasil em nosso processo de colonização.

Hà muitos turistas no México, a maioria europeus –em geral mochileiros – e americanos - geralmente famílias de meia idade. Sem surpresa, soube que a grande maioria dos brasileiros que visitam o México se concentra em Cancun, cidade da qual passei longe. O turismo é uma grande fonte de renda do México e, com exceção do desapontador aeroporto da cidade do México, a estrutura turística é bem decente e o México está muito mais preparado para receber os turistas do que o Brasil.

Fiz algumas viagens de ônibus, inclusive algumas bem longas (12 horas). Os ônibus executivos são super confortáveis, reclinam a cadeira quase que totalmente, têm serviço de bordo e praticamente não param. Compram-se as passagens pela internet, por telefone ou na agência, sempre com a visualização de um mapa na tela, que mostra os assentos ocupados e a posição em relação aos banheiros (um para homens, outro para mulheres, sempre limpos) e em relação aos 4 ou 5 aparelhos de televisão que ficam distribuídos pelo ônibus, em alto volume, passando filems de terceira categoria, em alto volume. Ainda bem que, já sabendo disso com antecedência, tinha comigo meus providenciais tampões de ouvido.

A surpresa em um desses ônibus foi acordar com uma voz que me parecia português e constatar, emocionado, que passava o belíssimo filme brasileiro Abril Despedaçado (retiro o comentário acima sobre os filmes de 'terceira categoria'. Quase me levantei para acordar os passageiros e alertá-los sobre o fantástico filme que estavam perdendo, mas me contive e voltei a dormir, assistindo entre um cochilo e outro alguns trechos das belíssimas cenas do filme.

Viajar nos confortáveis ônibus mexicanos, embora mais lento, é sempre mais interessante do que de avião, dá para ver o cenário, conversar com as pessoas, ver como as coisas funcionam. Afinal, de que outra forma eu poderia ver, no meio da estrada, uma 'peregrinação ciclística', centenas de ciclistas, a maioria homens, carregando crucifixos nas costas, seguindo carros com imagem de uma santa, numa rodovia principal entre a Cidade do México e Oaxaca?

Para me locomover para alguns povoados menores, como os que visitei perto de Oaxaca, simplesmente arranjei um motorista de taxi para ficar comigo durante o dia. Essa opção, embora mais cara, me permitiu não só visitar os povoados como ter a chance de bater um bom papo com o motorista, um jovem de 27 anos que se queixava de que a namorada insiste em se casar após 4 anos de namoro. Desconsolado, ele me dizia: 'mira, há tantas mulheres por aí, o que vou fazer casado?'.

Para me hospedar, procurei ficar em hotéis e pousadas menores, de poucos quartos, onde é mais fácil encontrar e conhecer gente. Para muitos mochileiros radicais, eu devo ser visto como o mochileiro "mauricinho", por estar sempre em hotéis com banheiro privativo, viajar de ônibus executivo e eventualmente alugar um táxi para passear. O principal problema desse tipo de hotéis em que procuro me hospedar é que, sempre, preciso confirmar se tem banheiro privativo ou não - a maioria não tem - e se tem água quente. Você sabe em que tipo de hotel está quando a recepcionista anuncia, orgulhosa, que há água quente 24 horas por dia. Apesar disso, escolho sempre hotéis charmosos, limpos e bem localizados, embora pessoas de senso estético apurado possam não se sentir muito felizes dentro dos quartos, alguns pintados a mão com alegorias de gosto duvidoso.

Viajar sem planos e resolvendo e decidindo tudo em cima da hora é ótimo, mas de vez em quando surgem uns contratempos. Quando cheguei em San Cristobal de las Casas, eu tinha uma recomendação de um hotel super maneiro, baratinho, mas que, descobri, só tinha vaga para o dia da minha chegada. Arrisquei ficar na esperança de que, no dia seguinte, rolasse uma desistência. Não rolou. Tive que sair às pressas, pelas ruas da cidade, procurando um hotel, visto que às 9 da manhã eu saí para um passeio de dia inteiro. Poucas opções, os melhores todos ocupados, acabei achando um que me pareceu legal, a mulher me mostrou rapidamente o quarto, que estava uma zorra porque hóspedes tinham acabado de sair, mas ela me assegurou que até a hora em que eu voltasse, no fim do dia, estaria "una beleza". Deixei minha bagagem na recepção e saí, só voltando quase 8 da noite, louco por um banho, uma comidinha e minha caminha.

Foi então que conheci, verdadeiramente, o quarto que tinha alugado. Ele estava arrumado, como prometido, mas o problema não era esse. O quarto era feio, muito feio. Os lençóis e fronhas deviam ser de três gerações anteriores, feios, encardidos, puídos. O colchão era um pedaço de espuma amassada, a cama rangia o tempo todo. O quarto tinha cheiro de mofo. O banheiro, era feio e mal cuidado. Do chuveiro, caíam 5 filetes de água, um para cada lado, encharcando todo o banheiro, e até parte do quarto, já que não havia cortina no que supostamente seria o boxe do chuveiro. Minha primeira vontade foi sair dali para um outro hotel, mas àquela hora da noite, depois de um dia inteiro exaustivo, e já sabendo que não havia fartura de acomodações na cidade, fiquei com preguiça. Deitei-me, dormi imediatamente, e felizmente a noite passou rápido, até mesmo porque às 5 da manhã eu já estava de pé pra ver se acabava logo com essa tortura. Como recompensa, no dia seguinte dei um significativo upgrade e me mudei, sem me preocupar com o preço, para um dos mais charmosos e diferenciados hotéis da região, uma lindíssima e confortável casa histórica restaurada.

O roteiro da viagem foi sendo feito a cada dia. Minha idéia inicial era me concentrar só em Oaxaca, e explorar a região. Mas aos poucos fui sentindo que teria muito tempo para isso, então comecei a pensar, a ler e a conversar sobre outras opções. Além do mais, Oaxaca vivia um clima de forte tensão pós-eleitoral. Cenas conhecidas. Um partido dominante há muitos anos, uma coligação formada para derrubá-lo. Durante todo o período pré-eleitoral, o governador em exercício foi acusado de usar a máquina administrativa a favor de seu candidato. Campanha eleitoral agitada, cheia de acusações, brigas, protestos. Os resultados mostraram uma diferença de menos de 0,5% a favor do candidato governista. Acusações de fraude, mais protestos. Brigas nas ruas, protestos nada amistosos, manifestações em frente ao palácio do governo, ao tribunal eleitoral. Ninguém se conforma, parece que vem mais agito por aí. Dizem que pode rolar um toque de recolher. Então, melhor mesmo que eu fosse vazando dali. Foi assim que me vi na fila para comprar uma passagem de Ônibus para San Cristobal de las Casas, já na região dos Chiapas, quase na selva onde o movimento zapatista se esconde, que sequer fazia parte dos meus planos originais de viagem.

Nessa região, dos Chiapas, surgiu e está localizado o Movimento Zapatista, um interessante movimento popular, que conta com simpatia da população e certa 'boa vontade' do poder público, que defende uma gestão democrática do território, a participação direta da população, a partilha da terra e da colheita. O movimento, embora ilegal, é "tolerado" pelas autoridades, especialmente por se localizarem numa região montanhosa e de selvas nas quais ninguém se arrisca muito. A região, por sinal, é belíssima, e a viagem culminou com uma visita a Palenque, umas impressionantes ruínas Mayas localizada no meio da selva).

Não importa quantas imagens e idéias pré-concebidas eu tivesse anteriormente do México - e todas elas, verdadeiras ou falsas, contribuem para o encantamento com esse país - a visita aqui, se realizada fora do circuito essencialmente turístico, revela muitas surpresas. Surpresas gastronônomicas, artísticas, culturais, pessoais... sem falar nas belíssimas riquezas naturais do país. É, definitivamente, um país que merece ser explorado e observado... com tempo, sem pressa... de preferência, sentado sob um sombrero, observando o mundo passar.