21 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 20 de março. Dia 3.


(meus planos de usar o fim da noite dos dias de quarentena para minhas reflexões foram ontem abruptamente interrompidos por uma garrafa de vinho desgovernada que entrou em meu caminho!)


Quando fiz meu mestrado na Inglaterra, há 20 anos, descobri e conheci muitas coisas importantes além do mundo acadêmico. Uma das mais impressionantes e reveladoras descobertas que fiz à época foi o longo caminho que as roupas percorrem da hora que em que eu as depositava no cesto de roupas sujas até o momento em que chegavam, limpas, passadas e penduradas, no meu armário. Mesmo tendo sido criado em ambiente apelidado de “classe média baixa”, fui privilegiado pelos resquícios escravocratas que me permitiram não precisar lidar com esse tipo de preocupação mundana. A descoberta em Londres foi acompanhada de perto pelo meu desgosto ao ver roupas queridas encolherem na máquina com água quente, roupas com fibras especiais se desmancharem na secadora de roupas nas quais nunca haviam sido usadas e pela constatação do nível de técnica e experiência que requer uma roupa bem passada. Evoluí nesse período, embora não a ponto de aprender a passar roupas. Aprendi a ser feliz usando-as sem passar.

Ontem eu comentava as dificuldades da sobrevivência de quem não sabe cozinhar e celebrava as virtudes das comidas prontas. Eu sempre me orgulhei de fazer a economia girar e fazer a minha parte pela distribuição de renda para justificar que, melhor do que saber cozinhar, é ter uma boa agenda de telefones e endereços. Nem isso basta agora. Restaurantes estão fechados, apenas fazem entregas. Mas o que já vinha lendo e ouvindo sobre a realidade desse exército de entregadores que tomou conta do Brasil me faz ter sérias dúvidas sobre a capacidade de eles obedecerem aos mínimos comandos tecnocratas de higiene, assepsia, isolamento social, afastamento. Essa não é mais uma opção tão simples como era no passado.

Tenho recebido dezenas, centenas, de telefones e endereços de pequenos produtores que entregam em casa todos os tipos de produtos de que eu possa precisar durante a quarentena. Eles chegam de forma sintética, nome, contato e produto, de forma que, se eu não os conhecer previamente, não saberei sua procedência, qualidade do produto ou confiabilidade do serviço de entrega. Em particular nas condições atuais. É uma iniciativa saudável para viabilizar a sobrevivência desses pequenos comerciantes nesse período de crise, mas ainda estou pensando que é mais seguro esgotar, antes, o meu estoque de comidas prontas.

Mas como fazer com as saladas e frutas? Comprá-las no mercado ou na mercearia é, essencialmente, um ato de fé. Não há nenhuma forma segura de fazer essas compras sem passar por enormes riscos de contágio. Nesse caso, talvez comprar diretamente dos pequenos produtores seja uma boa opção. No mínimo, reduz-se o número de mãos que tocaram em cada produto até a chegada a minha casa.

No meio da mediocridade e do egoísmo que afloram em momentos como este, afloram também algumas iniciativas bacanas, pelo menos na minha “bolha”. Uma rede de solidariedade tem se formado para proteger pequenos comerciantes e aqueles prestadores de serviços que usamos regularmente, que já estavam contabilizados nas nossas despesas, como o barbeiro, a manicure, a faxineira, a massagista, entre tantos outros que estarão agora trancados em casa, sem renda, por não serem serviços sem os quais não conseguimos viver.

Ontem descobri ainda que comer é apenas uma das dificuldades domésticas com que terei que lidar na quarentena. Há as roupas, pessoais, cama e banho. Cuidar delas não é mais apenas uma questão de higiene básica, mas de sobrevivência, de redução de riscos. E há a higiene da casa. Sim, porque agora não há que se falar em limpeza da casa, algo que sempre poderia ser relativizado até a chegada do dia da empregada ou da faxineira. Agora, não apenas ela não virá tão cedo como não funciona a opção “dá pra deixar assim até 2ª feira”. E foi assim, nesse processo exploratório, que tenho começado a fazer descobertas dentro da minha própria casa. Descobri quase 30 potinhos de comidinhas congeladas que jamais imaginei existirem no meu freezer, restinhos de comida que foram se acumulando com o tempo pela minha zelosa (ou não) secretária parte dessa legião de seres importante a quem nos acostumamos a delegar crescentes poderes sobre nossas vidas. Descobri ainda diversos produtos de limpeza, também sem manuais de instruções, para usos tão distintos como piso da casa, piso do banheiro, vaso sanitário, piso da cozinha, bancadas, vidros, móveis, metais... muitos já existiam anteriormente mas receberam o reforço de uma grande quantidade de produtos que fizeram parte do meu último surto de compras no mercado. Eu já os descobri, falta agora começar a usá-los. Vai ser divertido.

Por já estar vivendo há cerca de um ano em regime de “semi rômi ófici”, em que aperfeiçoei a disciplina e a rotina necessárias para essa opção ser boa para mim e não se transformar em um pesadelo de prazos de tarefas não cumpridos, imaginei que lidaria bem com os requisitos de uma quarentena. Não é tão simples assim. Como a própria demanda do serviço reduziu-se abruptamente, começo e termino o dia com uma grande quantidade de tempo que ainda não aprendi a usar adequadamente. Não à toa, surgem as brincadeiras de que a quarentena pode minimizar o risco do vírus, mas aumenta muito o risco de ideias e iniciativas que beiram o auge da criatividade idiota, obesidade, alcoolismo e divórcios. Há que se ter uma rotina, uma disciplina. Não são férias, não se sabe por quanto tempo vai durar, e há que se cuidar para não enlouquecer. Para mim, funciona escrever, ouvir música (já estou montando The Corona Soundtrack), ler, fazer exercícios na varanda... mas tenho feito pouco disso tudo e não saberia responder exatamente o que tenho feito nas 16 horas que passo acordado dentro de casa.

Uma parte importante do meu tempo tem sido me informando sobre o inimigo. Há muitas fontes de informação, nem todas confiáveis. Descobri, ontem, sem surpresa, que o presidente da maior potência mundial não é nada confiável, ao anunciar, sem evidências científicas suficientes, que a cloroquina, medicamento usado para combater a malária e de uso habitual para combater doenças como lúpus, pode ser um eficiente agente contra o coronavírus. Pode até ser, estudos estão sendo feitos, há indícios, mas há ainda muitas incertezas, suficientes para usar cautela. Mas o impulsivo anúncio do presidente americano – tão hábil na crise quanto seu amigo, outro presidente ao sul do equador – foi o suficiente para que, ontem mesmo, todos os estoques do medicamento no Brasil se esgotassem e que, só depois disso, o governo brasileiro declarasse a exigência de prescrição médica para comprá-lo. Tarde demais, aqueles que precisam do medicamento já não o têm. E o medicamento estocado provavelmente será apenas mais um mico, além dos 120 rolos de papel higiênico, na mão dos que o compraram (confissão envergonhada: cheguei consultar a disponibilidade e o preço do medicamento na internet, mas ainda estou mentalmente saudável e não fui adiante na empreitada).

Outra importante descoberta foi que, às vésperas de completar 60 anos, eu já sou considerado grupo de risco para o vírus. Tenho lidado bem com a idade, sinto-me disposto e saudável, íntegro física e mentalmente, e me preparo para aposentadoria em breve com a consciência de que ainda tenho capacidade produtiva. Tenho, é claro, sentido o famoso “peso da idade”, mas ver os quadros que indicam um aumento de quase 200 % na letalidade do vírus a partir dos 60 anos foi um bem-vindo choque de realidade. E lidar com a realidade é uma qualidade essencial para enfrentar o inimigo. 

O enfrentamento do inimigo tem sido um capítulo à parte nesse processo. O inimigo é desconhecido, não se sabe como ele ataca, por onde ataca, suas estratégias, suas defesas, e o mundo inteiro mostra-se desconcertado sem saber por onde ir. Mesmo assim, o desafio do coronavírus tem mostrado a diferença entre líderes e governantes de plantão. Observar a forma como o presidente do meu país sistematicamente tem negado a gravidade do problema (ontem o chamou de “gripezinha que não vai me me derrubar”) tem sido uma das mais deprimentes partes do processo. Por absoluta falta de coordenação e iniciativa do presidente, governadores de todos os estados têm buscado se articular no sentido de adotarem estratégias comuns, enquanto o governo federal os fustiga com acusações de adoção de iniciativas muito rigorosas e cria conflitos diplomáticos absolutamente desnecessários neste momento. Nunca tive alguma dúvida sobre a absoluta incapacidade do presidente para o cargo que ocupa, mas neste momento de crise, em que algumas pessoas conseguem se elevar, ele tem conseguido se diminuir dia após dia. Felizmente, há alguns adultos na sala tomando as providências que precisam ser tomadas enquanto o menino fica brincando de ser adulto.

Encerrei o dia com pensamentos hipotéticos: e se meu celular ou a máquina de lavar roupa ou o freezer ou a geladeira pararem? e se a internet de casa der pane? e se o encanamento entupir, se o chuveiro queimar, se eu precisar ir ao médico ou hospital por qualquer coisa diferente do vírus? São pensamentos que seriam simples há duas semanas, mas que agora se revestem de inimaginável gravidade. O isolamento social, com o qual lido bem emocionalmente, tem um elevado custo por nos apartar do mundo, do exército de visíveis e invisíveis que fazem a nossa vida funcionar mesmo quando não nos damos conta disso.

PS. No momento em que encerrava o texto, recebo uma mensagem de uma amiga que, diante de uma geladeira quebrada de um parente, comentava o contato que fez com o técnico que há anos conserta para ela e família fogões, geladeiras e máquinas de lavar. Ela pergunta se ele está trabalhando ou está em quarentena. Ele apenas responde: “e tem jeito de não estar trabalhando?”.

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