Há dois dias, lancei uma provocação nesses grupos, perguntando o que cada um verdadeiramente sentia em relação a tudo que estamos vivendo, para além do que cada grupo representava em termos de informação, conhecimento, humor e solidariedade. Não era nenhum experimento sociológico. Mas, estando eu vivendo de maneira tão intensa todos os tipos de sentimentos – medo, raiva, preocupação, esperança, tristeza, desânimo – eu tinha vontade de saber como cada um estava lidando com a tragédia, naquilo que sente lá no fundo da alma, porque isso normalmente não aparece nos grupos.
O resultado foi interessante. Vários ignoraram a provocação. Alguns responderam de maneira bastante sintética, com uma única palavra para descrever o que sentem. Outros expressaram o que pensam sobre tudo que tem acontecido, mas não exatamente o que sentem. E outros ofereceram um lindo mosaico de sentimentos de todos os tipos, positivos e negativos, otimistas e pessimistas, que não apareciam de forma alguma na interação proporcionada por cada um dos grupos. Havia o medo da própria morte ou sofrimento, o medo da morte e do sofrimento de entes queridos, a preocupação com o impacto econômico tanto sobre familiares quanto sobre a legião de brasileiros miseráveis, a tristeza de não poder estar perto de seres amados, a preocupação com os seus cachorros que eventualmente podem ficar abandonados, até um tocante depoimento de uma amiga que perdeu seu filho de menos de um ano poucos dias antes do isolamento se iniciar, para quem o olhar sobre tudo isso se torna tão relativo diante de sua dor mas que, mesmo assim, consegue ter um enorme sentimento de empatia e conexão com o que os outros vivem e sentem.
Independentemente da vontade ou da capacidade de traduzir sentimentos em palavras, parece natural que todos sintam muito tudo isso que temos vivido e percebam que os impactos do que acontece agora serão certamente duradouros, ainda que de forma e intensidade incerta (o que causa outros tipos de sentimentos, a incerteza e insegurança sobre o futuro). Obviamente, todos esses grupos pertencem à chamada “minha bolha”, de forma que era esperado encontrar sentimentos comuns entre pessoas que, de alguma maneira, no contexto geral do que está acontecendo, ainda se podem chamar de privilegiados.
Embora buscando permanentemente conhecer e entrar em contato com meus próprios sentimentos, ainda consigo me surpreender. Ontem meu irmão veio de Alto Paraíso, onde mora, apenas para trazer a filha e voltar no mesmo dia. Na bagagem, trouxe, para o pai e irmãos, valiosos reforços do cerrado para aumento da imunidade e da capacidade de enfrentar o vírus. Quando o porteiro interfonou anunciando sua chegada, eu não queria que ele subisse – por mim e por ele – mas eu queria descer para vê-lo, levar-lhe um café ou chá, alguma comida para enfrentar a estrada de volta e presenteá-lo com um vinho para acompanhá-lo na solitude em sua casa. Por um desses mal-entendidos que uma situação louca como a que vivemos pode causar, ele julgou que eu não queria descer e eu julguei que ele não queria que eu descesse. Ele deixou o pacote na portaria e foi embora. Fiquei com um sentimento muito ruim sobre o episódio, o que compartilhei com ele mais tarde. Foi então que ambos descobrimos que experimentamos as mesmas sensações, que cada um enxergou no outro a rejeição, o repúdio ao encontro, o medo de estar juntos. Eu, que já venho experimentando a tristeza de não visitar meu pai, que mora a cinco minutos de mim, senti novamente a tristeza do distanciamento e do afastamento dos seres amados que pode trazer essa pandemia se não estivermos atentos ao que cada um sente de verdade.
Enquanto eu lido com meus sentimentos bem mundanos, quase envergonhado de tê-los, porque em sua maioria são mesquinhos e egoístas e, naquilo que não são, estão desacompanhados de atitudes e respostas à altura, acompanho as primeiras consequências da política de isolamento nas comunidades mais pobres, antes mesmo que o vírus tenha nelas chegado. As medidas de apoio emergencial do governo não se materializaram, ainda, em uma grande mostra de incompetência e descaso. Assim, o que temos, até agora, é uma legião de desvalidos, à margem da sociedade, que, de uma hora para outra, deixaram de contar com a sua renda: o pedinte, o vendedor de balinhas, de salgadinho, de churrasquinho, o guardador de carro, a diarista, o pedreiro e tantos outros profissionais cuja informalidade de suas ocupações não lhes dá o direito de pararem.
Parece criminoso, assim, que o presidente da república (assim, em minúsculas mesmo), ao invés de tomar as medidas que se espera do poder público em uma situação como essa, empurre o país para um desastre, estimulando essas pessoas para voltarem ao trabalho, à vida normal, ao contrário de tudo que é prescrito pelas autoridades de saúde e de tudo que tem sido feito em outros países. Esse discurso, ao invés de oferecer amparo, encontra cidadãos divididos entre o medo da fome certa e o medo da doença ainda incerta, e minimiza o impacto que o vírus possa – e virá a – ter na vida dessas pessoas. E aí, a despeito de tudo que eu sinta e acredite que deva ser o comportamento da sociedade neste momento, como condenar esses que não querem ficar em casa, na maior parte ignorantes, e para os quais falta dinheiro e comida?
Leio reportagem sobre favelas em São Paulo. Barracos cheios de adultos e crianças, aglomerados. Crianças com fome porque deixaram de receber a sua principal refeição do dia, a merenda escolar. Famílias oneradas com essa despesa extra exatamente quando a renda é reduzida. Isso para não falar da falta de itens de higiene como papel higiênico, fraldas, sabão e detergente. Álcool em gel? Piada de mal gosto. Em muitas casas, a porta de entrada é o único meio de ventilação. Na rua, crianças limpam pés e mãos em poças d’água. Quem sou eu para condenar aqueles que, nessa situação, saem de casa para buscar alimentos, buscar ajuda ou fazer um bico, ainda mais quando encorajados pelo presidente que insiste em se referir ao vírus como “uma gripezinha”?
Casualmente, leio outra matéria, agora sobre as favelas do Rio de Janeiro que são dominadas pelo crime organizado. Ali, o tráfico e as milícias ordenaram toque de recolher por causa do coronavírus. Em uma delas, o recado dado por um carro de som é bem claro: ““A partir das oito horas da noite, eu disse oito horas da noite, quem estiver na rua de sacanagem ou batendo perna vai receber um corretivo”. O comando, que é anterior às medidas restritivas estabelecidas pelos governos estadual e municipal, não se fundamenta em causas exatamente nobres, de saúde pública. Segundo os relatos, os próprios traficantes estão com medo da doença. Primeiro porque a propagação do vírus nas favelas afetaria os seus negócios; segundo, porque eles próprios não poderiam procurar hospitais se fossem contaminados. Seja qual for a motivação, ali o cidadão obedece e o comércio obedece a critérios e horários bastante restritivos de funcionamento. E ninguém sai de casa sem autorização do poder ali constituído.
Mas há mais acontecendo nas favelas e nas comunidades de baixa renda do que a desobediência movida pela fome ou a obediência devida ao medo. Na ausência do estado, e à margem dele, há um grande conjunto de iniciativas de todos os tipos que buscam ajudar economicamente dessas áreas e para evitar que o vírus nelas se propague. Várias dessas iniciativas são tímidas, de pequena escala, bem localizadas. Outras conseguiram engajar personalidades com responsabilidade social, incluindo empresários, artistas e políticos, que conferem a elas maior escala e visibilidade. No geral, parecem descoordenadas entre si. Muitas são resultado de ações de voluntários, de gente que não consegue apenas assistir à tragédia. Trabalham essencialmente em rede, envolvendo lideranças comunitárias, que conhecem, melhor do que o poder público, as necessidades e fragilidades daquelas populações.
Essas iniciativas fazem o que o Estado não faz. Elas fazem o que não fazem aqueles grandes empresários que reclamam que a economia não pode parar. Elas fazem o que um bando de gente privilegiada como eu não tem feito, além de se compadecer. Elas tentam, simplesmente, amenizar um pouco o sofrimento de algumas vidas que, antes mesmo do corona, já eram muito sofridas. E é com essas histórias que eu quero ficar, que eu quero me inspirar, e que eu quero agir, respondendo: o que, além do pouquinho que eu já tenho feito, posso ainda fazer para amenizar a dor e o sofrimento que já veio e que ainda virá para essa gente?