Numa rara combinação de fatores, uma viagem de trabalho à Sicília italiana me permitiu, antes e depois da reunião, desfrutar um pouco dessa região que freqüenta minha mente desde que me entendo por gente, associada a crimes, máfia, terror, mistério, guerras, comida, vinhos, cenários. A falta de tempo fez com que eu entrasse no avião sem noção sequer de onde dormiria a primeira noite. Algumas páginas do meu guia devoradas durante o vôo me fizeram optar por dormir em Catânia, ponto de chegada do vôo, e dali fazer uma base para explorar a região.
Escolhi pela internet o que parecia ser um simpático Bed&Breakfast, Gianni & Lucia, cujo dono, Gianni, sem pressa e minuciosamente, me apresentou a região e a cidade, me deu mapas, recomendações de passeio, sugestões de restaurantes. Nada como o atendimento prive que um grande hotel não te oferece.
Catânia é considerada uma cidade grande na Sicília (300.000 habitantes) e com poucos atrativos para o viajante, mas acabou se revelando uma interessante cidade, com boas opções culturais, históricas e, também, de gastronomia. Iniciei minha estada num simpático restaurante, Il Borgo de Federico, desses bem típicos, com televisão transmitindo futebol, famílias, jovens casais, crianças, no qual exerci o delicioso prazer de observar gente enquanto experimentava o honesto ‘vinho da casa’ e uma novidade gastronômica, a carne de cavalo, prato típico da cidade, e surpreendentemente suculenta, macia e saborosa. Voltei caminhando para o hotel, não sem antes parar numa das muitas e esteticamente atraentes confeitarias da cidade para experimentar outra especialidade local, o delicioso canolli de ricota, uma espécie de biscoito recheado de uma pasta de ricota com pistache.
Para mim, a principal razão de ficar em Catânia era explorar a região em volta, mas principalmente, fazer uma expedição ao vulcão Etna, o maior vulcão em atividade do planeta (3400m) e, em constante erupção, cenário de tantos eventos trágicos e visualmente impactantes nas muitas cidades construídas no seu entorno. No entanto, descobri, frustrado, que eu não havia combinado meus dias de folga com a natureza, de forma que por dois dias fiquei em Catânia esperando o sol abrir para que eu pudesse ver o Etna.
Por conta das nuvens, dediquei meu domingo a explorar Catânia. Catânia é uma cidade comum, e se torna interessante exatamente por isso. Gente ordinária, poucos turistas, o que torna mais agradável visitar seus restaurantes, mercados, ruas, lojas, brincando com uma língua da qual meus conhecimentos são rudimentares e, como em outras ocasiões, com outras línguas, descobrindo que consigo comer, sobreviver, locomover-me, hospedar-me. É fascinante, ainda que às vezes estressante, estar num lugar sem falar nada da língua local, ainda que o italiano pareça muito semelhante, e às vezes dependendo da generosa ajuda de algum anjo da guarda que chega num momento de apuro, e que arranha o inglês ou outra língua qualquer mais conhecida. Mesmo com anjos da guarda, porém, freqüentemente se perde uma informação, uma sugestão, uma direção, uma piada, uma dica.
Catânia no domingo é uma cidade morta. Ruas vazias, comércio fechado, pouca gente circulando, o que torna a cidade propícia para explorar com calma suas muitas praças e construções históricas. Vez por outra me sentava num banco de praça e, enquanto observava o povo, lia e aprendia mais sobre o relevante papel que a Sicília teve em diversos momentos da história universal, inclusive na II Guerra Mundial. Aprendi, também, um pouco da fascinante e assustadora história da máfia na região, uma presença forte que, embora sofrendo baques recentes, continua se fazendo presente, ainda que não notada pelo viajante comum. Mas a parte mais interessante do dia foi mesmo passear pela feira de produtores orgânicos locais, onde fui tentado pela profusão de queijos, geléias, frios, vinhos, grãos e nozes ali expostos, numa degustação que acabou sendo o meu almoço.
No B&B, encontrei um simpático casal de velhinhos ingleses aposentados, que dedicam seu tempo livre a viajar pelo mundo. Estavam agora explorando a Sicília e trocamos sugestões e recomendações do que já tínhamos lido e visto. Nessas importantes trocas que acontecem numa viagem, o interessante é ouvir e captar todas as recomendações e sugestões, mas nunca deixar de fazer sua própria viagem, com seu próprio olhar e sentimento. Porque o que torna cada lugar interessante, ou não, é exatamente o olhar, o momento, a emoção que se vive naquela hora, e isso é sempre único para cada pessoa, razão por que não faz sentido querer repetir “aquela maravilhosa” viagem que alguém nos descreveu.
Mesmo com as pesadas nuvens, não resisti a fazer uma viagem ao Etna, optando pela CIRCUMETNEA, uma ferrovia que, ao longo de 110 km, vai contornando o Etna e parando em diversas cidadezinhas locais. Supostamente, o Etna seria vislumbrado e apreciado em cada um desses 110 km, mas o que vi mesmo em todo o trajeto foram nuvens, muitas nuvens. Embora o trem seja supostamente turístico, havia poucos turistas nele, que era mesmo ocupado pelos moradores locais que se deslocavam entre essas cidadezinhas, não cobertas pela rede ferroviária do estado. Numa delas, Randazzo, saltei do trem para descobrir resquícios bem vivos do período medieval, castelos, construções, pontes, igrejas. Na volta ao trem, uma parada numa lojinha de produtos típicos, onde, com muita mímica e boa vontade, consegui um delicioso sanduíche de mortadela e um copo descartável cheio do vinho local, e fui caminhando pelas ruas sob a chuva até chegar à estação de trem. Um banquete memorável.
O dia seguinte, à tarde, era o início de minha “vida oficial” na Sicília. Fui de ônibus de Catania a Siracusa, onde consegui chegar a tempo de deixar as coisas no hotel, resolver algumas pendências de trabalho e sair para passear na belíssima ilha de Ortigia, sem dúvida a parte mais interessante de Siracusa. Como costuma acontecer, lembro pouco dos detalhes que li e ouvi sobre Siracusa, mas me lembro que, pela sua localização, é uma cidade com decisivo papel em vários dos grandes momentos da história universal. Além disso, muitos filósofos dos tempos helênicos passaram por aqui.
Tudo isso era visível e perceptível nos charmosos monumentos e ruas da cidade, algumas delas felizmente fechadas por conta da nossa reunião, nas quais pude passear praticamente sozinho (que egoísta!). Pra melhorar, nosso trabalho se realizava no antigo e belíssimo Castelo de Maniace, totalmente adaptado para a reunião. Em Ortigia, as horas vagas do trabalho me proporcionaram excelentes e charmosos restaurantes, igualmente excelentes vinhos e uma vida noturna interessante, centrada na Praça do Duomo onde duas atrações se destacavam: uma “instalação” provisória, uma mega escultura que ocupava boa parte da praça e simbolizava um homem afundando (fazia parte da mensagem ecológica presente em várias manifestações de arte previstas para o período de nossa reunião) e a igreja onde, até tarde da noite, uma romaria de admiradores tinha a chance de visitar uma bela obra de Caravaggio.
Taormina seria apenas uma cidadezinha italiana qualquer não tivesse sido construída onde foi. Teatros gregos são comuns em todas as cidades por onde andaram esses povos (e não são poucos), mas duvido que algum tenha sido construído num penhasco com vistas tão espetaculares para o mar. Fiquei a imaginar o que deve ser um show num lugar desse, onde o palco disputa a atenção com as vistas do mar e do vulcão Etna ao fundo.
E por falar em Etna, saio da Sicília com a frustração de não vê-lo, quase com a certeza de que esse vulcão não existe. Depois de andar 110 km de trem para ver o Etna e de me hospedar em Taormina num dos mais privilegiados pontos de visualização do vulcão, não tive sequer esboço do grande vulcão.
Isso me faz lembrar das estórias que ouço e das viagens que já fiz, para as quais existe antecipadamente a expectativa de uma vista, de uma fotografia, de um monumento, de um cenário… A frustração é inevitável quando se depende da indomável e imprevisível natureza, ou dos dias de abertura de um museu, de uma doença no dia exato da visita. Qualquer dessas coisas pode ser a diferença entre ver ou não ver o Etna, deslumbrar-se ou não com a visão de Macchu Picchu a partir da Porta do Sol, enxergar ou não o por do sol nas dunas de areia da Índia, admirar ou não a arquitetura de Québec, só pra citar algumas frustrações já vividas. Isso tudo para não falar de como uma diarréia pôde me impedir de admirar o Taj Mahal com a grandeza que ele merece.
Como não ver o Etna não foi a primeira expectativa frustrada numa viagem, isso não me estragou o prazer de estar por ali, até mesmo porque descobri, depois, que a Sicília é muito mais do que o Etna. Numa viagem, nem sempre se encontra o que se foi buscar, e estar aberto e receptivo a isso é um dos grandes segredos de bem viajar. Até mesmo porque, com frequência, o que se encontra é mais fascinante do que aquilo que fomos buscar.