30 de outubro de 2000

Índia, Outubro de 2000


“O gênero humano não pode suportar tanta realidade”. Com essa frase, de T.S.Eliot, citada por Octavio Paz no livro “Vislumbres da Índia”, consigo resumir a maioria dos sentimentos que me tomaram durante os quase 30 dias que passei naquele País. Ao término da viagem, me vi tomado por sentimentos muito variados que, infelizmente, não pude processar como gostaria, tendo apenas para mim alguns dias de digestão de tudo que vi, ouvi, senti. Sim, porque não há leitura alguma que seja capaz de me transmitir o que foi essa viagem fascinante. Foram momentos de deslumbramento, admiração, mas também de cansaço, confrontamento, desafio. Houve horas em que senti um desânimo profundo, tão difíceis eram as coisas mais simples, mas sempre dava tudo certo e eu continuava sendo seduzido pelo país. Ao fim, foi uma viagem sem quaisquer problemas mais sérios, exceto uma boa diarréia em Agra. Mas, o que é uma viagem à Índia sem uma boa diarréia? A Índia, definitivamente, não é para qualquer um.

Comecei minha viagem por aquela que viria a ser a parte mais pesada de toda a temporada: a cidade de Mumbai (ou, como ainda é conhecida, Bombaim) e algumas cidades no estado de Gujarat. Mumbai é sem dúvida alguma a cidade mais pobre que já visitei (e já visitei alguns lugares muito pobres no Brasil e em outros países). Uma grande aglomeração urbana, quase 20 milhões de habitantes, favelas em volta de toda a cidade. O trajeto de táxi do aeroporto até o hotel, no centro da cidade, durou quase duas horas, mas não por causa da distância. Não só o carro estava caindo aos pedaços (como, de resto, grande parte da frota indiana) mas, também, a velocidade máxima era prejudicada por um circuito que passava por dentro de algumas das inúmeras favelas da cidade. Um espetáculo degradante de ser assistido da janela do carro. Os olhares das crianças e adultos, pedintes nos sinais de trânsito, ultrapassam, em desespero, dor, fome e miséria todos os muitos olhares com os quais já cruzei. Algumas fotos no livro Êxodos, do Sebastião Salgado, ilustram algumas dessas de Mumbai cenas que não tive a coragem de fotografar.

Saímos de Mumbai e fomos, numa viagem que incluiu trem e ônibus, para a cidade de Bhuj, no estado de Gujarat. Um local tão sem interesse para o turista comum que nos vimos, divertidos, obrigados a tentar explicar a alguns companheiros de viagem por que mesmo é que estávamos visitando aquele estado. Não há infra-estrutura turística nenhuma e imaginamos que, exatamente por isso, poderíamos ter uma noção melhor do país, do povo, das cidades. Já deu para sentir um pouco disso na dupla jornada de trem e ônibus.

O estado de Gujarat é dominado pelo jainismo, uma religião indiana fundada no século VI aC, semelhante ao budismo e que surgiu como uma dissidência do hinduismo. Entre outras características, os jainistas são vegetarianos radicais (não comem nem ovos – a experiência de um omelete sem ovos é inesquecível, acredite sem tentar) . Não é proibido, mas encontrar um lugar que sirva qualquer tipo de carne ou um singelo ovo frito é quase impossível. De vez em quando, descobrimos um bar ou restaurante muçulmano que nos servia alguma dessas sonhadas iguarias, mas a alimentação foi prá lá de precária.

Em uma das incursões que fizemos pelo Gujarat, contratamos um motorista de táxi para nos levar a algumas vilas em torno de Bhuj. No caminho, o motorista, que mal falav inglês, insistiu em nos levar para conhecer um hospital do câncer. Não conseguíamos nos entender para saber a razão dessa insólita visita, até descobrirmos que, na verdade, estávamos visitando um hospital de animais. Moderno, novo, bem equipado, e lá dentro, ao invés de gente, vacas e camelos sendo muito bem tratados, mais bem tratados do que 95% dos indianos imaginaria ser um dia. Uma loucura. Tudo bancado com grana dos jainistas, que têm na proteção aos animais um dos fundamentos de sua religião. O hospital tem ainda um museu que, na verdade, é uma sequência de painéis com uma verdadeira lavagem cerebral em defesa do vegetarianismo, com argumentos sobre por que comer carne é uma violência contra a vida animal, contra a saúde humana e contra a economia do planeta.

No mesmo passeio, pousamos na cidade de Khuj. Em busca de alguma experiência exótica, resolvemos nos hospedar no palácio de um antigo marajá. Fizemos a reserva, sem olhar, e para lá nos dirigimos, para uma propriedade um pouco afastada da cidade. Fui, confesso, imaginando uma hospedagem no estilo dos famosos paradores portugueses e espanhóis. Imaginei cenários principescos, empregados em roupas tradicionais, coisas do gênero. Acabou sendo, de fato, uma estadia fantástica, mas pelo pitoresco da situação. Um marajá decadente, sem dinheiro para bancar as despesas da vida moderna, resolveu alugar uns quartos de seu palácio igualmente decadente, empoeirado, caindo aos pedaços. O jantar foi servido por um empregado descalço, vestido em roupas prá lá de simples, numa mesa velha que mal se equilibrava, coberta, acredite ou não, com uma folha de jornal. A comida foi devidamente servida em uma marmita que, segundo apuramos, é preparada pela esposa do empregado – o único do palácio. Foi hilário, morremos de rir com a nossa expectativa de que, finalmente, íamos ter uma refeição decente em Gujarat.

Sair de Bhuj foi uma outra aventura. As conexões de ônibus e de trens são bastante limitadas, o que nos obrigou a uma estada adicional de dois dias na cidade, simplesmente porque não tínhamos como sair de lá. Chegamos com uma sensação de alívio ao estado de Rajastão, o mais explorado turisticamente na Índia. Apesar dessa sensação, as peculiaridades dessa simpática região nos marcaram ao longo de toda a viagem e, apenas alguns meses após nossa viagem, fomos tomados de profunda tristeza ao ver a cidade de cerca de 100.000 habitantes ser completamente destruída pelo terremoto de janeiro de 2001, que teve em Bhuj seu epicentro. Impossível me conter comparando as fotos que tirei com aquelas que encontrei nos jornais apenas seis meses depois.

Udaipur, nossa primeira escala no Rajastão, é uma cidade bastante charmosa. Com um certo exagero, chamam-na de a Veneza Indiana, talvez em função do belo lago que pode ser avistado dos terraços de diversos hotéis e restaurantes da cidade (um belíssimo pôr-do-sol). Udaipur orgulha-se, ainda, de ter sido o cenário para as filmagens do filme Octopussy, com James Bond, o qual é exibido diariamente, em alto volume, em todos os bares da cidade. Nossa primeira refeição, logo à chegada, foi no nosso hotel, com vista, naturalmente, para o lago que domina a cidade. Ah, a indescritível sensação de comer bem depois dos dias passados em Gujarat. A cidade ostenta ainda suntuosos palácios, remanescentes dos tempos dos grandes marajás.

Alguns desses palácios foram convertidos em hotéis luxuosíssimos, para fazer frente aos gastos de famílias bastante acostumadas ao luxo e pouco afeitas à labuta. Jantei num desses. Esse sim, um verdadeiro palácio, bonito, bem mantido, enorme, lindos jardins, o interior finamente decorado com móveis e quadros da época. Um ambiente tirado das 1001 noites. Mesas espalhadas ao longo da pérgula da piscina, que fica em um pátio do palácio, garçons vestidos em trajes tradicionais, música clássica indiana ao vivo, uma iluminação do tipo ‘volta ao passado’, um serviço de primeira, sem formalidade, e uma comida divina, maravilhosa (ou será que eu é que ainda estava sob o efeito da gastronomia de Gujarat?). O preço do banquete foi um absurdo para os padrões indianos, cerca de 20 dólares por cabeça, o que é mais ou menos 10 vezes superior ao custo médio das minhas refeições na Índia. Mas se voltar só um pouquinho no tempo e lembrar do custo das refeições que eu fazia em Londres, quando estudante, o palácio indiano fica bem baratinho.

O mais engraçado da noite é que passamos no hotel/restaurante apenas para dar uma olhada, recém-saídos de um lindo pôr-do-sol a que fomos assistir no terraço de um castelo que fica no alto de uma montanha próxima a Udaipur. Não imaginávamos ficar para jantar e, por isso, lá fomos vestidos de sandália, camiseta e bermudas, bem mais arrumados que um mochileiro típico, mas certamente distante de todos os outros clientes do restaurante, especialmente os turistas do mundo civilizado vestidos com pompa e circunstância. Resolvemos encarar o jantar e uma mulher na mesa ao lado nos olhava com cara de desdém, quase implorando à gerência para nos expulsarem do restaurante. Rimos muito com a cena. O mais impressionante é que o serviço foi tão bom, descontraído, atencioso e agradável, que duvido que tenha sido melhor para a perua ao lado do que foi para nós.

O estado do Rajastão é, de maneira geral, muito melhor preparado para receber turistas. Não por acaso, encontramos turistas de todo o mundo viajando pelas cidades que visitamos. Apesar de não enfrentarmos as restrições gastronômicas impostas pelo regime religioso de Gujarat, também no Rajastão, além de uma temperatura muito quente e seca, tivemos que lidar com uma dieta completamente diferente. Fomos bastante cautelosos nessa área, no início porque achamos que os padrões de higiene da Índia não eram exatamente similares aos nossos e, depois, porque começamos a ver que, mesmo nos melhores lugares, a comida indiana nem sempre nos batia bem, com o uso excessivo de sua profusão de chilli e curry. Optamos por não economizar com comida, e fomos sempre a restaurantes razoáveis, o que significou mais higiene e mais opções (menos condimentadas). Também no Rajastão era bastante numerosa a quantidade de restaurantes vegetarianos, embora haja uns poucos lugares onde se come galinha ou carneiro (a sagrada vaca, nem pensar). Embora eu tenha me adaptado surpreendentemente bem à dieta vegetariana, havia horas em que eu olhava para aquelas vaquinhas soltas na rua, elas olhavam para mim, eu olhava para elas de novo, e pensava na suculenta picanha que elas escondiam.

As comidas de rua são extremamente tentadoras, bonitas, coloridas, cheirosas, e, por razões óbvias, fiz esforços enormes para me controlar. Um dia, porém, vi num quiosque de rua uma sobremesa maravilhosa que havia experimentado no dia anterior num restaurante. Não resisti, encarei, e o resultado não podia ser outro: o doce da rua era muito melhor que o do restaurante. Também na rua tomei, por diversas vezes, o delicioso lassi, um refresco à base de iogurte, bem gelado, apropriado para o calor indiano. Não era exatamente a mais segura opção de bebida, mas o delicioso sabor suplantava todos os meus medos.

Uma das coisas mais difíceis para a adaptação à Índia foram os preços de tudo que consumíamos. A comida era sempre baratíssima. Mesmo optando por melhores restaurantes, nas cidades mais caras, uma boa refeição nunca saía por mais de 5 dólares. Quaisquer serviços que usássemos – táxi, costureira, correios – sempre nos surpreendiam pelos baixos custos. Em Jaipur, uma cidade grande, fui cortar o cabelo. Um lugar antigo, pequeno, mas limpinho, recomendado pelo dono do hotel em que nos hospedávamos. Havia toalhas limpas, lâminas novas, tudo no maior estilo. Um corte de cabelo legal, não muito diferente do que eu teria em Brasília ou em Londres. Ao fim, uma massagem facial completa, que incluiu couro cabeludo, cabelo, face, pescoço, ombros, braços e início da coluna. O preço? Tudo isso pela bagatela de 60 centavos de dólar. Impressionante.

Optamos também por ficar em hotéis razoáveis, menores, acolhedores, longe do barulhento centro das cidades indianas. Um mínimo de conforto era importante, pois as viagens eram sempre muito cansativas. Mas, em termos de preços, isso não quer dizer muito. As diárias dos hotéis em que nos hospedamos, todos com banheiro privativo, eram sempre em torno de 10 dólares, às vezes bem menos, às vezes um pouco mais.

Em muitos momentos, perdemos totalmente a noção de preço, e é nessas horas que fica difícil o processo de comprar qualquer produto ou serviço que não tenha preço fixo, dada a expectativa de que turistas e indianos participem de um irritante e permanente jogo de barganha. O melhor exemplo é o uso dos rickshaws, aquelas lambretinhas de três rodas que são o meio de transporte típico nas estreitas ruelas das cidades indianas e em oturas cidades asiáticas (também conhecidos como tuc tuc). Para nós, estrangeiros, o preço era sempre mais alto e, a cada cidade, antes de se ter uma noção do custo das corridas, tínhamos que passar por um processo altamente cansativo. Toda vez que pegávamos um (e eram vários no dia), tínhamos que discutir o preço, barganhar, argumentar. Naturalmente, os valores em discussão eram irrisórios, sempre em torno de 50-60 centavos de dólar, mas se deixarmos, seremos sempre explorados pelos motoristas. Ao final, já estávamos acostumados com alguns preços e ficava mais fácil negociar e discutir, mas isso não tirava o aborrecimento e a irritação de cada negociação. O problema disso era quando nos pegávamos, às vezes, barganhando por valores ridículos. Numa dessas vezes, fui tomar um rickshaw que me pediu 30 rupias por uma corrida que eu sabia valer 20. Como estava de noite, resolvi oferecer 25, e aí iniciou-se a barganha. Então me dei conta de que eu estava discutindo por cinco rupias, o que significavam cerca de 10 centavos de dólar. É nessas horas que batia a tal da consciência social, sem que eu soubesse o que fazer com ela. Para essas pessoas, essas cinco rupias tinham profundo significado no faturamento do dia, era parte da luta diária pela sobrevivência, enquanto para mim não só esse valor não significava nada como, também, me era difícil apreender o significado desse valor na vida daquelas pessoas.

Por muitas vezes, nem queríamos discutir os valores, embora soubéssemos estar pagando duas ou três vezes o valor que um indiano pagaria pelo mesmo serviço. A situação de extrema pobreza da Índia afetava muito do que fazíamos e a maneira como nos comportávamos. Por isso, acabávamos por nos envolver com aqueles indianos que diariamente se engalfinhavam para conseguir uns trocados, e ficávamos cada vez mais generosos com gorjetas e menos exigentes nas negociações. Para essas pessoas, conseguir uma corrida de rickshaw, vender uma calça ou até mesmo uma simples garrafa de água mineral pode significar a diferença do dia. É impossível ficar indiferente ao que se vê na Índia, assim como eram inevitáveis as crises de consciência ao vermos tanta miséria e não podermos fazer nada. Mas, para mim, isso não era privilégio da minha estada naquele País. De maneira diferente, frequentemente sinto o mesmo no Brasil, um constante incômodo com o absoluto disparate das desigualdades sociais que não são jamais aplacadas e para as quais não vejo qualquer perspectiva de solução.

A comparação com o Brasil não chega a ser justa. A pobreza aqui impressiona mesmo a um brasileiro, tão acostumado com isso no dia-a-dia. A Índia é um país que tem alguns dos grandes cérebros do mundo, mas tem uma taxa de alfabetização em torno de 50%. Tem grandes fortunas individuais, mas 3/4 das crianças sao subnutridas. A pobreza é tanta e tão aparente que a riqueza fica diluída, escondida, nao se vê. Diferente do Brasil, onde a pobreza e a riqueza se vêem com mais facilidade. A pobreza na Índia é tanta que se criou um sui generis sistema para geração de empregos, que se manifesta numa burocracia enorme para tudo: tudo que se faz no setor público – correios, estações de trem – envolve mais pessoas do que o necessário. Se for para analisar pelo lado da eficiência, ter que preencher um formulário com seu nome, endereço no Brasil, número do passaporte, etc, apenas para comprar um bilhete de trem, a coisa parece absurda. Mas quando se pensa que aquele formulário vai passar por umas 5 ou 6 pessoas até você ter o bilhete na mão, são 5 ou 6 empregos a mais, então faz sentido.

Enquanto estava na Índia, e vítima desses sentimentos de estupefação, não resisti a fazer algumas comparações entre Índia e Brasil. Com dados colhidos em alguns sites na Internet (dados de 2000), observei que, em termos absolutos, a Índia é tão rica quanto o Brasil. A diferença é uma população quase seis vezes maior, de cerca de 1 bilhão de pessoas. O Brasil não seria muito diferente da Índia com essa população. Na Índia, a miséria está presente o tempo todo, em todos os lugares. E não existem, como no Brasil, os shopping centers, que são os lugares escolhidos pelos brasileiros para se esconder da pobreza. Na Índia, simplesmente não dá para se esconder da pobreza.

A Índia tem menos da metade do tamanho do Brasil mas quase seis vezes a nossa população. A expectativa de vida nos dois países é a mesma. Na taxa de alfabetização, estamos melhores, 83% no Brasil contra 52% na Índia. A diferença é que no Brasil a taxa é a mesma para homens e mulheres, enquanto na Índia é de 65% para os homens e de 37% para as mulheres. Um emblemático retrato das desigualdades entre homens e mulheres no país. Minha maior surpresa foi verificar que a Índia tem um Produto Nacional Bruto (PNB) 80% maior do que o brasileiro. Além disso, enquanto a economia brasileira cresce a cerca de 1% ao ano, a indiana cresce a cerca de 5,5% ao ano. Por causa da diferença no tamanho da população, contudo, o PNB per capita do Brasil é mais de três vezes superior ao da Índia.

Embora a Índia tem muito mais pobres do que o Brasil – 35% dos habitantes vivem abaixo da linha de pobreza, contra 17% no Brasil –, quando se fala de distribuição de renda, somos então mundialmente imbatíveis: nossos 10% mais ricos concentram absurdos 48% das riquezas nacionais, enquanto na Índia os 10% mais ricos concentram apenas 25%. Nossos 10% mais pobres concentram míseros 0,8% das riquezas, enquanto os 10% mais pobres da Índia concentram 4,1%. São dados para se pensar quando se fala em pobreza. Embora chocado com a pobreza na Índia, dá para ver que é um país quase todo pobre. Já o Brasil, é um país rico mas com um povo miserável.

O principal efeito da pobreza disseminada na Índia é uma economia informal, na qual todos lutam desesperadamente por qualquer centavo de dólar que algum turista possa deixar. Em especial nas cidades mais turísticas, a competição é selvagem. E aí vale tudo, pedir mais pelo preço das mercadorias e serviços, levar turistas para hotéis e lojas em troca de comissões, pequenos golpes. Toda hora, na rua, sempre há os 'amigos', que te saúdam, perguntam seu nome, seu país de origem, e te acompanham por horas tentando te convencer a entrar numa loja ou a ir para um determinado hotel.

A saudação às vezes faz parte do assédio, mas às vezes é apenas um gesto natural, de hospitalidade e de carinho. O país de origem é uma das primeiras perguntas que nos fazem. Quando respondo Brasil, a primeira associação é sempre o futebol. Dependendo da idade do interlocutor, as referências são Pelé, Romário ou Ronaldo. Alguns desavisados fizeram associações, para meu desgosto, com Maradona e Batistuta. Outras associações recorrentes sao as queimadas na Amazônia, as mulheres nuas no Carnaval e as crianças de rua. Nada muito diferente da imagem do Brasil que se tem no ‘primeiro mundo’.

Os pequenos golpes na Índia sao fantásticos, hilários. Para quem estava bem informado, como nós, que havíamos lido com antecipação como funcionavam as coisas, dava para escapar. Mas os desinformados são presas fáceis. Os mais divertidos são os dos motoristas de rickshaw. Quando se pede para ir a um hotel, eles sempre te sugerem um outro. As argumentações sao das mais interessantes: o dono do hotel morreu semana passada numa acidente terrível, o hotel foi fechado pela polícia, o hotel (para o qual você já fez reserva) está lotado, o hotel é muito caro e está decadente. Conseguir que eles te levem ao hotel desejado requer às vezes um tom de voz mais elevado e, em um caso extremo, tivemos que contratar um outro motorista. Um momento fantástico foi a nossa chegada em Nova Déli, na estação de trem, quando os motoristas de táxi e de rickshaws queriam nos cobrar, quase em cartel, a absurda quantia de 250 rupias para nos levar até o nosso hotel. Não sabíamos onde ficava o hotel, mas nossa noção de preço na Índia nos dizia que o preço era absurdo. Depois de muito trabalho para conseguir alguma informação confiável, descobrimos que o hotel ficava a não mais do que três minutos, a pé, de onde nos encontrávamos.

Lidar com a pobreza indiana é um processo diário e permanente, às vezes bem irritante. Há o assédio dos comerciantes, há os golpes, mas há ainda as crianças que pedem dinheiro, comida ou até canetas na rua. E há também as mulheres com crianças nos braços, que te seguem na rua por horas até conseguir alguma coisa. O assédio diário é constante, aborrece, mas depois de me desvencilhar dessas pessoas, eu acabava carregando comigo o profundo olhar de desespero, de tristeza, de fome ou de desesperança que cada uma trazia consigo. É um olhar profundo como jamais vi, um olhar que não se vê nos pobres no Brasil ou em outros lugares por onde andei. Um olhar que fica, que incomoda, que dói. Que vai com você.

Um aspecto interessante da pobreza na Índia é que, ao contrário do que aconteceu em países como o Brasil, ela nao descambou para os elevados índices de violência urbana que se vê na maioria das grandes metrópoles dos países em desenvolvimento. Uma das coisas que tem mais me assustado no Brasil é como o aumento da pobreza e das desigualdades de renda tem gerado uma violência assustadora. Aqui na Índia, com exceção de pequenos golpes contra turistas, que são usuais, a taxa de crimes, roubos, assassinatos e coisas do gênero é muito baixa, quase não se ouve falar. Há, naturalmente, inúmeras razões de ordem religiosa e da estrutura social na Índia para explicar isso, mas fica difícil explicar o que faz o Brasil tão violento em condições de pobreza mais amenas do que as encontradas na Índia.

O lado mais perverso do constante assédio que sofremos nas ruas da Índia é que passamos a olhar com suspeição todos os indianos que se mostram amigáveis e, com isso, cometemos lamentáveis enganos. Há milhares de crianças que vinham nos saudar apenas para treinar seu básico vocabulário de inglês, especialmente quando andávamos em áreas menos turísticas. Aliás, criança é uma coisa fantástica em qualquer lugar do mundo. Quando ainda não contaminadas pela maldade, as crianças provocam as mais absolutas sensações de prazer que se possa ter numa viagem. Indescritíveis as inúmeras cenas das crianças que vinham nos saudar, nos perguntar o nome, ou apenas falar um ‘oi’ para gastar o inglês. Genuína pureza infantil.

O problema é que ficamos tão na defensiva com os 'tipos' indianos que, quando uma criança vinha, já ficávamos armados esperando os pedidos de dinheiro, comida ou a sugestão para nos levar a alguma loja em particular. Em Bikaner, um jovem de 16 anos se apresentou e puxou papo conosco. Andou pelas ruas com a gente, ajudou na negociação de um táxi que contratamos para um passeio, foi no táxi conosco, passou todo o dia com a gente, conversou sobre tudo, futebol, cricket, política, religião, ajudou-nos na compra de bilhetes de trem, e eu, durante todo o dia, fiquei armado contra ele, esperando o golpe que viria, no final, ao nos cobrar pelos serviços prestados. Quando, ao fim do dia, ele apenas me deu o seu endereço me pediu para mandar um postal do Brasil para sua coleção, fiquei de coração partido. É triste, mas esse é o resultado das experiências que vivemos. Mas há na Índia pessoas genuinamente amigáveis, que apenas adoram conversar com estrangeiros, e que encontramos com frequência em trens e ônibus.

***

O misticismo e a religiosidade da população é algo que extrapola a capacidade de compreensão de um viajante em apenas um mês. Sao milhares de templos de várias religiões, predominantemente hindus, mas também muçulmanos, budistas, jainistas. São vários deuses, templos, religiões. Há algo de fascinante nesse caldeirão religioso que é a Índia, mas há também coisas que nos chocaram, como o caráter sagrado de alguns animais. Em Bikaner, fomos visitar um templo dedicado aos ratos. Entramos no templo, descalços, como faríamos em qualquer outro templo, e lá nos deparamos com centenas de ratos que não apenas circulam livremente, mas são também adorados e alimentados pelos visitantes. Ter um rato passando sobre o seu pé é sinônimo de benção, mas felizmente eu escapei da graça de ser abençoado pelos ratinhos. Saí do templo, após algum tempo, completamente enojado com os meus pés sujos daquela mistura de fezes, urina e comida de ratos no chão. A única coisa que eu queria era voltar ao hotel e lavar bem os pés, mas não pude deixar de carregar comigo as imagens marcantes daquele templo, como a do homem deitado de bruços no chão do templo, rezando, ou da mulher que passava a mão no chão e, com a mesma mão, abençoava a si mesma e à sua criança de colo.

Ainda na área religiosa, as vacas constituem um capítulo à parte. Animais sagrados por excelência, após um mês inteiro na Índia não consegui me acostumar com elas ou com o tratamento a elas dispensado pelos indianos. Elas estão em todos os lugares, nas ruas, até nas grandes cidades, nas lojas, nas praças, nas casas. Sempre buscando algo para comer e, como não há muito, o que elas mais comem é jornal, cartolina e plástico. Em uma das estações de trem em que estivemos, as vacas andavam placidamente pela plataforma. Quando um trem chegava, botavam as cabeças pelas janelas ou portas, na espera de um agrado de algum passageiro. Um boi entrou no local onde se vendiam os bilhetes e instalou-se no chão, completamente dono do pedaço. É, de fato, uma relação inacreditável de uma população de 1 bilhão de pessoas com um animal. A Índia tem o maior rebanho de gado do mundo, mas a população morre de fome, pois as vacas sao intocáveis.

Nesta viagem, acabei nao tendo a chance de visitar Varanasi, a sagrada cidade que os hindus escolhem para morrer a fim de se livrar de seus carmas. Os relatos que já ouvi sao de impressionar e ninguém sai de lá sem ficar profundamente marcado pela experiencia. São corpos agonizantes pelas ruas, fornos de cremação espalhados pela cidade e as cenas mais chocantes são as dos corpos dos defuntos, simplesmente jogados no sagrado rio. Os corpos flutuam no mesmo rio em que os adultos se banham para purificar-se ou onde as criancas brincam inocentemente.

***

Viajar pela Índia exige paciência e disposição física. Utilizamos todos os meios de transporte disponíveis, com exceção do avião, que poderia ser uma solução em alguns trechos mais longos. Como nossos trechos foram, essencialmente, curtos, optamos por fazer uma mistura de trens, ônibus, táxis. A Índia tem uma fantástica rede de trens, que possibilita ao turista e aos indianos viajar por todo o país de trem (uma importante herança da colonização britânica). O sistema é totalmente computadorizado, organizado e, por isso, andar de trem acaba sendo a melhor opção na Índia, apesar da extrema lentidão das viagens nos obsoletos trens. Os custos são bem baixos, mas não é, também, o que eu chamaria de uma viagem confortável. Utilizamos, algumas vezes, a primeira classe, na maioria fomos na segunda e, às vezes, nas viagens curtas, fomos com o povão, na econômica (ou terceira). Nessa última, não há lugares marcados, é um salve-se quem puder, mas é exatamente aí que surgem as melhores oportunidades de encontrar e conversar com gente interessante.

Havia trechos, porém, em que não dava para viajar de trem. Aí o jeito era apelar para o ônibus. Há dois tipos de ônibus, os estatais e os privados. Os estatais sao umas latas velhas, antigas, caindo aos pedaços. Cinco assentos por fileira, mais um corredor estreito, que é invariavelmente ocupado pelos excedentes. Nos privados, que sao ironicamente chamados de 'luxo', a diferenca é um pouco mais de conforto, com apenas 4 assentos por fileira. Também no ‘luxo’, os assentos e os corredores são frequentemente tomados por famílias inteiras, com crianças e, não raro, galinhas soltas. Mas o melhor mesmo é a 'classe superior'. São os passageiros que, depois de assentos e corredor completamente tomados, viajam no teto do ônibus, no lugar em que deveriam ir as bagagens. Uma cena impressionante. Contudo, impressionante mesmo é a cena do cobrador que, com o ônibus em movimento, passa por cima de dois passageiros sentados, sai por uma das janelas e passa para o teto do ônibus a fim de cobrar o bilhete dos que estao em cima. Impagável.

Nao há paradas regulares para banheiro, apenas aquelas para pegar e deixar passageiros. É quando homens e mulheres saem correndo para, nesse curto intervalo, urinar na parede mais próxima. Para as mulheres é mais complicado, não consegui descobrir como elas resolviam esse problema. Nas viagens longas, de 5 a 6 horas, vivi esse suplício várias vezes, até porque, com o forte calor, eu tomava muita água. Numa dessas paradas, saí correndo, na frente de todo mundo e quando já havia achado uma parede para fazer o meu xixi, levei uma bronca danada de um indiano que me mostrava um mictório público perto da parede. Vexame! Uma outra viagem inesquecível, embora de apenas meia hora, foi a mais divertida. O embarque no ônibus consistiu de mais de 80 pessoas tentando entrar ao mesmo tempo por uma única porta: crianças, mulheres com bebês, velhos e velhas, galinhas. Acabamos não conseguindo sentar, pois ao entrar vimos que as poucas pessoas que entraram na nossa frente multiplicavam seus braços e pernas para ocupar vários assentos para os membros da família que ficaram para trás.

Em outras situações, optamos por alugar um táxi ou carro com motorista, uma opção que, muitas vezes, mostrou-se bem interessante e não tão cara. Uma ótima alternativa para fazer pequenos trechos entre duas cidades ou para visitar uma região em que queremos ter liberdade para parar onde quisermos no nosso próprio ritmo. Os preços acessíveis nos permitiriam fazer mais dessas ‘extravagâncias’ mas, com isso, perderíamos a maravilhosa chance de conhecer a Índia que se conhece num ônibus lotado ou na terceira classe de um trem. O maior problema dessa opção, que se aplicava também aos ônibus, era vencer o medo das terríveis estradas indianas e dos alucinados motoristas que as ocupam. E ainda tem gente que tem medo de avião.

***

Ao fim de um mês de viagem, vimos de tudo um pouco, embora tenhamos percorrido apenas uma pequena fração do território indiano. Há tanto mais que se ver. Estivemos em áreas bem turísticas e visitamos locais nos quais duvido que algum turista tenha jamais pisado o pé. Em comum a quase todos os lugares que visitamos, a presença de uma história milenar. Como também é comum a quase todos os lugares o lamentável estado de conservação de monumentos como fortes, palácios, casas e edifícios, cheios de história mas abandonados pelo Governo. O preço dos ingressos é sempre ridículo, mal deve dar para pagar o salário do porteiro (e para os indianos o preço é, com razão, ainda mais baixo). As exceções são os palácios que continuam em domínio privado, com os herdeiros dos marajás (ou com os próprios). Alguns estão em perfeito estado de conservação, transformados em museus, hotéis ou restaurantes, e com preços à altura não só dos custos de manutenção mas, também, das necessidades dos decadentes marajás e suas famílias. Na área do governo, apenas o Taj Mahal é exemplarmente cuidado, mas às custas de uma exorbitante entrada de 20 dólares.

Vimos muitos monumentos maravilhosos, mas nao dá para falar da Índia sem falar no Taj Mahal, a atração turística principal do país. Minha visita ao Taj Mahal foi sob o peso de uma pesada diarréia, o que naturalmente tira o prazer de qualquer visão e te põe mais preocupado em localizar o banheiro mais próximo do que em admirar a beleza do monumento. Apesar disso, o Taj é de fato magnífico, perfeito em cada detalhe. A estória de sua construção é tão interessante quanto o prédio em si. Um marajá que perdeu a esposa durante o parto do filho quis construir o mais belo palácio para abrigar o corpo da mulher. O palácio levou 20 anos para ser construido, quase 20.000 pessoas trabalharam no projeto, os mais famosos artistas do mundo foram recrutados. Ao fim da construção, muitos operários tiveram os braços amputados para jamais poderem repetir obra tão magnífica. A cota de ironia fica por conta do golpe de estado aplicado pelo próprio filho do marajá que, ao depor o pai, encarcerou-o no Forte de Agra, de onde o marajá podia observar o Taj Mahal pela minúscula janela de sua cela. Quando ele morreu, foi tambem enterrado no palácio, ao lado de sua esposa.

***

A India é uma viagem do tipo 'ame ou odeie', mas há opções para todos os gostos, para todos os estilos de viajantes (até para quem quiser ir apenas à praia). Dá para viajar só pelo circuito mais conhecido, com melhor infra-estrutura de hotéis e restaurantes, movendo-se de avião de uma cidade para outra, como também dá para viajar muito com orçamento bastante inferior ao nosso. Essa variedade de opções reflete-se na variedade de tipos que encontramos em nossas andançaas. Desde senhores e senhoras distintos, até bichos-grilos de todas as origens. Eu e meu amigo ficamos numa categoria intermediária, longe de sermos os típicos mochileiros, mas também longe de sermos viajantes tao distintos, dos quais os japoneses são os mais típicos e extremados representantes. Interessante é que cada um faz a sua própria viagem na Índia. Cada figura que encontramos pelo caminho dava, por si só, um livro. Gente viajando sozinha, em grupos, casais, duplas ou trios de mulheres, de homens, hippies, velhinhos aposentados, muita gente interessante. Cada um tem sua impressão bastante particular de tudo que viu. Há muito mais que eu poderia falar ou contar da Índia mas, como em tantas outras coisas da vida, nada se compara a viver tudo isso. Minhas impressões são somente as minhas, e cada um que passou pelos mesmos lugares e viu o que eu vi certamente teve uma impressão diferente. Conheci pessoas que passam, há muitos anos, todas as suas férias na Índia, cada vez explorando uma região diferente. Conheci outras que foram uma única vez e juraram nunca mais voltar. Então, só experimentando.

30 de julho de 2000

Praga, República Checa - Julho de 2000

Para não perder algumas milhas que estavam por expirar, resolvi passar quatro dias em Praga, num momento em que eu devia estar mais concentrado nas minhas dissertações do fim do meu mestrado. Achei que nem conseguiria, porque conseguir o visto para a República Checa em Londres foi extremamente complicado: recebi o meu passaporte na manhã do dia em que havia marcado minha viagem, quando eu já estava quase desistindo. O stress compensou. Praga é uma cidade maravilhosa, a despeito das insuportáveis hordas de turistas, ainda maiores no verão. A cidade tem um importante papel em vários episódios históricos, em particular a primeira e a segunda guerras mundiais, com uma riqueza cultural que se manifesta numa arquitetura belíssima, em alguns grandes nomes da literatura e em um espetáculo de artes que explode por todos os cantos da cidade: música, teatro, ópera, marionetes.

Há teatros belíssimos, como o Estates Theatre, onde Mozart encenou pela primeira vez sua ópera Don Giovanni em 1787. Eu não podia perder a chance de assistir a mesma ópera mais de 200 anos depois, mas desta vez, para minha surpresa, o artista principal, o barítono que fazia o papel de Don Giovanni, era nada mais nada menos que um autêntico pernambucano, cujo nome provavelmente jamais foi ouvido no Brasil. Além dos teatros, todas as igrejas oferecem belíssimos concertos de música sacra e assistir a um deles é uma experiência inesquecível, até mesmo porque tanto o órgão quanto a soprano que o acompanha ficam escondidos em algum lugar no alto da igreja e você apenas sente a música invadindo aquele ambiente que parece ter sido desenhado para isso.

Praga tem, naturalmente, os pontos turísticos que acabam sendo necessariamente visitados. Contudo, o grande barato da cidade é andar pelas ruas, meio sem rumo, se perdendo, de preferência nas ruas menos movimentadas, longe do fluxo turístico. Cada esquina revela um prédio ou uma casa diferente, um teatro, uma praça, um jardim. O cuidado com que a cidade é mantida, o estado de conservação dos prédios, a beleza dos inúmeros jardins da cidade, a paz do rio que corta a cidade, a chance de parar num banquinho da praça e ficar esperando a banda passar, tudo isso é garantia de prazeres e curtições não descritos nos guias de viagem.

Naturalmente, toda essa beleza tem um preço. Praga é hoje uma das cidades mais turísticas do mundo. No início, cheguei a compará-la com cidades altamente exploradas pelo turismo como Paris, Roma, ou até mesmo Londres. Depois, percebi que há uma diferença fundamental. Enquanto essas cidades possuem vida própria, independente dos turistas, Praga, por ser muito menor, dá a impressão de que está existindo apenas em função do turismo. Embora a infra-estrutura turística seja invejável, o fluxo de turistas chega a ser irritante em alguns momentos. Ao contrário de Paris, Roma ou Londres, em Praga os concertos e shows não foram feitos para a população local, mas para as hordas de turistas que a invadem. A chance de encontrar um morador de Praga em um desses eventos é próxima de zero.

Nas ruas, o comércio é quase todo de lojinhas de souvenirs, espalhadas uma ao lado da outra, vendendo bonecas, marionetes, canecas de chopp, cristais checos, tudo a preços exorbitantes. No centro principal da cidade, todos os lugares são muito barulhentos, difícil andar nas ruas estreitas repletas de turistas se esbarrando. Nas mesmas ruas, para vender os ingressos dos concertos, dezenas de palhaços vestidos de Mozart esforçam-se para desovar os seus estoques e posam para fotografias ao lado dos deslumbrados japoneses. A maior parte dos turistas viaja em grupos enormes, sempre seguindo sofregamente algum guia que balançava intrepidamente a sua sombrinha amarela ou vermelha. Os restaurantes e bares, sempre caríssimos, exploravam o fato de que ali era o lugar onde Mozart encontrava inspiração ou onde Kafka começou a escrever “O Processo” ou o local que Kundera descreveu em “A Insustentável Leveza do Ser”. Não surpreende que a qualidade da comida, nesses lugares, sempre deixasse a desejar.

O que mais me chamou a atenção foi a quantidade de turistas brasileiros, o que eu não vinha encontrando em alguns dos lugares recentes que andei visitando. Isso confirmou minha impressão de que os brasileiros, de maneira geral, não se dispõem a desbravar lugares novos, ainda pouco explorados pelo turismo. Em geral, visitam os lugares quando eles já são descobertos pelas massas. Há cerca de cinco anos atrás, eu podia contar nos dedos os meus conhecidos que já haviam visitado Praga. Praga é agora a cidade da moda e já faz parte dos planos da maior parte dos brasileiros que visitam a Europa.

Nada disso, porém, tira a beleza da cidade. Sempre há um jeito de fugir do circuitão turístico. Há sempre a chance de se perder em ruelas que revelam belezas tão admiráveis como as dos principais pontos turísticos. Há sempre a chance que tive de ficar num hotel fora do centrão e usar o eficiente sistema integrado de transportes públicos da cidade (metrô, ônibus e bondes elétricos), esse sim, destinado à população local e uma divertida aventura quando não se domina a língua tcheca. E dá ainda para passear pela Petrin Hill, um lugar presente na obra de Kundera, que reservei para uma deliciosa e saudosista releitura de “A Insustentável Leveza do Ser”, especialmente comprado para a ocasião. Petrin Hill é um charmoso monte perto da cidade que oferece a chance de admirar de cima e de longe a beleza de Praga, em especial os fantásticos telhados vermelhos que são uma espécie de marca registrada da cidade.

Finalmente, ao sair de Praga, se você tiver sorte, ainda pode ter o privilégio que tive de tomar um vôo que me exigia estar no aeroporto às 6 da manhã. Isso vai te dar a chance de passear de táxi no centro da cidade vazia e te encorajar a pedir ao motorista para ir devagarzinho, a fim de que você possa curtir e ver com calma o que a multidão de turistas te impediu nos dias anteriores.

25 de abril de 2000

Portugal, Abril de 2000

Minhas melhores viagens são sempre aquelas para as quais minhas expectativas eram mínimas ou para as quais eu me preparei muito pouco. Como me desiludir quando não há ilusões? Quanto mais me preparo e conheço sobre o lugar, quanto maiores minhas expectativas, maiores as chances de frustração. Pude me preparar muito pouco para a viagem a Portugal, que aconteceu imediatamente após o período de aulas da LSE. Não sabia exatamente o que esperar e mal tive tempo de folhear um guia de viagem para saber o que ou como fazer. Apenas reservamos, eu e meu amigo Nicola, hotel para três dias em Lisboa e um carro para viajarmos pelo país após os três dias na capital.

Ir a Portugal foi a oportunidade de perceber um pouco de tudo que nós brasileiros somos. De enxergar as raízes do que temos de bom e de ruim. De rir com muitas coisas que pareciam fazer parte apenas do nosso anedotário, mas que, descobri, fazem parte de uma lógica portuguesa muito particular. De perceber um processo de colonização às avessas, representado pela nossa música e nossas novelas altamente presentes na cultura portuguesa, o que faz com que muitas de nossas expressões já tenham sido absorvidas e sejam usadas normalmente pela população. De surpreender-me com o nível de desenvolvimento de um país que, apesar de ser o segundo mais pobre da Europa, encontra-se em fase de alto crescimento impulsionado pelos recursos da União Européia. De fazer inevitáveis comparações entre a eficiente infra-estrutura turística de Portugal, que contempla história, montanhas, praias com qualidade para turista nenhum colocar defeito, e a histórica incapacidade de o Brasil fazer valer sua vocação para o turismo. De comer os maravilhosos doces portugueses (invariavelmente de ovos), presentes em uma tentadora pastelaria a cada esquina. De perceber que, ao contrário do que pensava, o carinho dos portugueses com os brasileiros é grande, o que pude sentir em praticamente todos os contatos que fiz. E, finalmente, de surpreender-me com a pobreza do preconceito que alguns brasileiros nutrem em relação a Portugal e aos patrícios.

A viagem me colocou em contato com sensações que iam sendo esquecidas na minha estada em Londres. Depois de tanto tempo vivendo em 'inglês', foi bom viver um pouquinho em 'português'. Foi uma sensação nova estar num país estrangeiro e falar a minha própria língua. Tudo parece ficar tão mais fácil do que usar o inglês mundo afora, não importa o grau de fluência que se tenha. Tanto tempo em Londres me desacostumou não só da minha língua, mas de prazeres básicos, como andar de bermuda e camiseta e usar óculos escuros. O tempo estava maravilhoso em Portugal, muito sol, céu azul. Numa visita a um castelo, no meio de uma floresta, pude novamente andar no mato, sentir o cheiro de terra, de árvores, de chão molhado. Num restaurante de Lisboa, nas Docas de Santo Amaro, comi uma picanha maravilhosa, daquelas sangrentas que se come no Brasil. São esses prazeres básicos, simples, que, de tão simples e básicos, parecem fáceis de serem esquecidos, até o momento em que se tem a chance de vivê-los novamente, e aí a gente se pergunta ´como é que eu tava dando conta de viver sem isso?’.

Meu companheiro de viagem, Nicola, foi uma boa companhia, embora sejamos diferentes em muitas coisas. Tem um bom gênio, é tranqüilo e nossas diferenças não chegaram a causar conflitos (sempre um risco em situações de convivência tão intensa). Eu gosto de conversar, falar, filosofar, ele já é mais fechado. Ele gosta de ver televisão, até mesmo as novelas brasileiras que passam em Portugal. Eu não sinto fome, ele adora comer. Um dia brincamos dizendo que se ele pudesse ficar em casa vendo televisão e apenas solicitar pelo telefone comidas de países diferentes, suas ânsias de viagem estariam satisfeitas. Ele é daqueles que têm fome ao meio-dia, quer sentar num restaurante, almoçar, entre quatro paredes, somente para satisfazer esse primitivo instinto, enquanto o sol brilha lá fora e ruelas, ruínas, museus e monumentos imploram para ser explorados. Tanto ele quanto eu acabamos cedendo em muitos momentos, condição básica de convivência numa viagem longa. Ele tem bom humor, é flexível e topava qualquer programa, embora seja de natureza mais urbana e eu um pouco mais bicho do mato. Iniciada a viagem, eu devorava as informações dos livros e guias de Portugal, enquanto ele deixava muita coisa na minha mão e ia no rastro. No geral, viajamos muito, conhecemos muitos lugares, tomamos muito vinho, comemos muitos doces e salgados, rimos muito. Um viagem a dois – ou em qualquer número maior do que um - exige concessões e o saldo final da viagem foi muito bom.

Nosso esquema estudantil incluía hospedagem em lugares mais simples, quartos sem banheiro, casas de família. Não importa quão simples fosse a hospedagem, porém, destacavam-se a limpeza imaculada, os lençóis e toalhas sempre novos, branquíssimos, trocados todos os dias, e um atendimento quase sempre familiar, agradabilíssimo. Para mim, essa opção foi bem mais prazerosa do que se pudéssemos – e quiséssemos – ir para hotéis mais caros, maiores e, conseqüentemente, mais impessoais.

Nossa viagem começou em Lisboa, onde ficamos hospedados numa deliciosa pensão no centro da cidade. Uma cidade charmosa, cheia de encantos e de opções. Animadíssima vida noturna, os bares ecoando a dor-de-cotovelo dos fados, os cafés e restaurantes. Um banho de história, as casas com lindos painéis de azulejos, os monumentos, o bairro de Belém com a famosa torre que cresci vendo nas latas de azeite, os magníficos pastéis de nata, o eficiente sistema de transportes, que mistura bondes antigos à modernidade do metrô e de ônibus com ar condicionado. Lisboa é, a um só tempo, uma cidade tradicional e moderna, pequena e grande, provinciana e metropolitana.

Em Lisboa, a situação mais surreal da viagem. Nicola passou mal na primeira noite, após empanturrar-se de lulas recheadas. Fomos parar num hospital público que muito nos surpreendeu pela rapidez e qualidade do atendimento, pelo bom humor e prestatividade de todos. Mas o melhor aconteceu na sala de espera, onde ficavam os pacientes que aguardavam para serem atendidos e os familiares dos que estavam sendo atendidos. Como Nicola ficou na enfermaria tomando soro por umas quatro horas, fiquei lendo meus guias de viagem na sala de espera. Por volta de meia noite, a sala estava quase vazia. Havia uma televisão na qual eu passava os olhos de vez em quando, mas como só havia coisas desinteressantes, voltava à minha leitura. Numa dessas passadas de olhos, espantei-me ao ver uma cena de sexo, mas pensei que apenas fosse um trecho mais picante de alguma novela brasileira. Mas não, era um filme, e imaginei que fosse apenas um filme com cenas eróticas. Não, não era um filme erótico. Era um verdadeiro filme pornô, daqueles X-rated, com cenas de fazer corar até os menos inocentes. Era inacreditável! Olhei em volta e vi duas velhinhas inocentes cochilando nas cadeiras. A maioria dos doentes cochilava. Um, com a cabeça ensangüentada, parecia estar bastante motivado com o filme, dada a cara de interesse com que o assistia. Um velhinho acordou e, ao levantar os olhos para a televisão, tomou um susto e mudou de lugar, com cara indignada. Eu observava e morria de rir ao presenciar essas antológicas cenas em plena sala de espera de um hospital público. Imagino que tenha sido algum canal de TV a cabo que acidentalmente foi ligado sem ninguém da administração perceber. Só mesmo em Portugal uma coisa dessas.

Com o carro que alugamos em Lisboa – o mais barato disponível – fomos para Sintra, onde nos deleitamos com alguns monumentos lindos, em particular um castelo no meio da floresta que me trouxe saudades de andar no mato. Depois, fomos para Évora, uma charmosa cidadezinha com catedral, templo romano, um simpático restaurante num antigo palácio, casas antigas bem conservadas, uma linda universidade e, por fim, um dos pontos altos de toda a viagem, a impressionante capela dos ossos. Por incrível que possa parecer, numa igreja da cidade foi construída uma capela com a utilização dos ossos e crânios de 5000 cadáveres. Entrei na capela, vi aqueles ossos e crânios revestindo as paredes, e não pude evitar entrar em contato com a morbidez daquele lugar, que eu não conseguia entender por mais que me explicassem o seu significado. Saí de lá com a energia bem baixa e sem gostar muito da estranha inscrição no portal da capela: “nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.

De Évora fomos a Marvão, outro ponto alto da viagem. Uma cidadezinha no alto de um morro, com cerca de 500 habitantes. Casas imaculadamente brancas, vistas maravilhosas dos arredores, especialmente a partir do castelo no topo da montanha. A vida parece ter parado em Marvão. Fiquei andando pela cidade, me perdendo nas poucas ruelas, tomando licor caseiro num bar vazio, e saí de lá completamente renovado, tomado de amor por aquele pedaço de história congelada. Antes de sair porém, numa lojinha da cidade, uma artesã lisboeta, moradora de Marvão desde que por ela se apaixonou, falou-nos tão bem de uma cidade que não estava no nosso roteiro que decidimos incluí-la, e foi assim que fomos parar em Monsanto, uma cidade literalmente do tempo da pedra, com um jeitinho de cidade fantasma. Casas de pedra, ruas de pedra, casas construídas dentro da pedra, castelo de pedra (no alto de um morro, novamente vistas maravilhosas). Nada era pintado, tudo em pedra natural. Um cenário primitivo, encantador, daqueles que te fazem viajar no tempo. Por mim, pernoitava ali, mas Nicola se sentiu deprimido no meio daquelas pedras todas e fomos dormir na cidade mais próxima.

Nosso próximo destino foi a Serra da Estrela, um parque nacional famoso pelos esportes de inverno. Até então, eu não estava familiarizado com a diversidade de climas e de cenários de Portugal, e por isso foi delicioso sair do nosso roteiro quente e ensolarado para dirigir por cerca de três horas num cenário de neve por todos os lados. Paramos, brincamos com a neve, apreciamos aquela imensidão branca à nossa volta, os olhos doíam de tanta claridade e se deslumbravam com o fascinante contraste de cenários a que éramos expostos. A fascinação continuou quando, ao sairmos da Serra da Estrela, fomos parar em Aveiro, uma cidade com um toque ´holandês´, com seus canais e barcos no centro da cidade, algumas ruelas antigas com casas lindas pintadas em tons pastéis de várias cores e um restaurante maravilhoso onde tivemos a melhor refeição da viagem, um pargo assado do qual só sobraram as espinhas.

Chegamos por fim à cidade do Porto, onde nos hospedamos na casa dos tios de Aneesa, uma amiga indiana, colega de curso na universidade em Londres. Porto, apesar de maior do que as vilas que andamos visitando, conserva o charme de um vilarejo. Numa visita a um palácio da cidade, conheci um senhor do norte de Portugal, um pequeno produtor de vinho do porto. Conversamos muito e ele me deu uma aula de vinho do porto que só acrescentou ao meu prazer de ficar entrando em botequinhos a cada esquina e tomar doses desse vinho maravilhoso, agora sabendo a diferença entre um ruby, um tawny, um vintage, um branco.

Do Porto, Aneesa se juntou a nós e fomos a Coimbra, que se revelou uma decepção, a despeito da quantidade de relatos que frequentemente ouço sobre a cidade, o que só prova que cada experiência de viagem é única. Exceto pela universidade antiga, muito bonita, a cidade não tem charme nenhum (foi a nossa impressão comum). Então, nós que pensávamos em dormir na cidade, resolvemos continuar a viagem e eu aproveitei a chance para incluir algumas cidadezinhas que eu queria visitar mas que o tempo parecia não permitir. Visitamos duas cidades vizinhas, Batalha e Alcobaça, cada uma com um monastério excepcionalmente grande e bonito, ambos resultados de promessas feitas por conquistadores portugueses em tempos passados, em que se ofereciam templos em troca de favores do céu. Embora os templos tenham sido usados para todos os tipos de abuso por ordens religiosas nos séculos XII e XIV respectivamente, o resultado arquitetônico é impressionante e monumental.

Nossa última noite em Portugal foi em Óbidos, e a viagem não poderia terminar de maneira mais brilhante: uma cidade medieval totalmente cercada por muralhas em perfeito estado de conservação. Pode-se caminhar por cima das muralhas, contornando toda a pequena cidade. De cada trecho da muralha, uma vista diferente da cidade, com seus terraços, seus balcões floridos, seus gatos preguiçosos, suas ruelas estreitas, suas árvores frutíferas. Dormimos num quarto de uma casa que tem uma vista linda para a cidade e para a igreja principal. A estada só não foi perfeita porque eu, na ânsia de fazer de meu último jantar uma refeição especial, pedi um peixe recomendado pela casa, uma espécie de carro chefe do restaurante. Apenas me esqueci de perguntar se o escaldante molho que o acompanhava incluía o proibido camarão, ao qual sou alérgico. Resultado: comi peixe puro pagando pelo camarão. Para compensar, na sobremesa, escolhi um doce que me parecia maravilhoso, mas descobri, desolado, que o intragável café, que detesto, com sabor e cheiro acentuados, era o ingrediente principal da sobremesa. Ainda bem que eu tinha chocolate no quarto do hotel.

Um episódio interessante em Óbidos foi a conversa com a única funcionária do hotel em que nos hospedamos, uma espécie de faz-tudo . Ao referir-se às diversas nacionalidades de turistas que visitam a cidade, disse-nos que os brasileiros são os mais difíceis de se lidar. Satisfez a nossa curiosidade ao explicar que, em geral, os brasileiros têm mania de comportar-se com ela com uma familiaridade e uma intimidade que não existem – meses mais tarde eu ouviria semelhante reclamação em um restaurante português em Paris. Disse ela, ainda, que os brasileiros optam por um hotel simples como aquele para não pagar os preços de um hotel mais caro, mas exigem um serviço que não é o daquele tipo de hotel, como alguém para carregar as pesadíssimas malas que as madames brasileiras costumam carregar quando viajam. Concluiu dizendo que esse tipo de postura deveria ser reflexo da mania que os brasileiros têm de contratar empregados domésticos para ajudá-los no serviço de casa, uma prática virtualmente inexistente na classe média da Europa moderna. Incapaz de negar qualquer de suas afirmações, limitei-me a rir por dentro imaginando as madames brasileiras – ou seus dedicados maridos – a carregar escada acima suas malas repletas de inutilidades.

Fim de viagem. Dez bem vividos dias em Portugal, com uma razoável e intensiva exploração do norte do país. A opção de não visitar o sul foi fácil: predominam, naquelas paragens, badaladíssimos balneários e sofisticados resorts à beira-mar, um programa que não seduzia nem a mim nem ao Nicola. Assim, devolvemos o carro em Lisboa e tomamos o avião de volta para Londres. A porta se abriu e nos trouxe, de volta, o frio e o céu nublado de Londres. Vontade de voltar para Portugal e andar de bermuda e camiseta.

Finalmente, como não podia faltar numa viagem a Portugal, uma seleção dos momentos mais engraçados vividos naquelas terras:

- Num restaurante em Lisboa, havia uma misteriosa e intrigante “sopa de grelos”, que, por via das dúvidas, resolvi não arriscar. Mais tarde, depois da viagem, vim a descobrir que se tratava de uma inocente sopa de brotos.
- No metrô de Lisboa, acompanhei uma deliciosa conversa entre duas adolescentes: "imagine que eu estava trabalhando de baby sitter e, quando os pais do menino voltaram, me perguntaram se ele havia acordado. Eu disse que não, que ele havia dormido a noite toda. Na hora de me pagar, me pagaram menos pois, se o menino dormiu, eu não havia trabalhado nada". Difícil foi, sentado em frente às duas, conter a gargalhada.
- No famoso Café à Brasileira, aquele que tem a estátua de Fernando Pessoa, o Nicola pediu algo para comer e eu não comi nada; sem problemas. No dia seguinte, porém, novamente o Nicola pediu uma refeição, e eu resolvi pedir apenas pão com uma pasta de fígado, que estava na lista das entradas; o garçom, então, disse que não podia servir apenas a entrada. Resolvi então tomar apenas um vinho e o garçom me informou que, se eu ia tomar vinho, ele podia servir a pasta. Ou seja, você pode não pedir nada, se não quiser, mas pedir apenas a pasta de fígado é proibido. Vá entender...
- Outdoor com propaganda de fraldas: "para seu bebê ficar com os rabinhos sempre frescos".
- Outdoor com propaganda de desodorante masculino: "para você exalar toda sua frescura".
- Finalmente, no rádio do carro, ouço uma piada de portugueses, contada por um locutor português (eu juro, eu ouvi). Nos tempos da guerra fria, o governo português recebe um curto e grosso telegrama do serviço secreto americano: "movimento sismológico detectado no centro de Lisboa, favor tomar providências". Os portugueses não respondem nada e os americanos escrevem novamente "movimento sismológico de grande amplitude detectado no centro de Lisboa, favor tomar providências". Nada novamente. Os americanos, preocupados, mandam uma terceira mensagem. Os portugueses respondem, enfim: "podem ficar tranqüilos; o líder do movimento já se encontra preso e sob interrogatório; as investigações, porém, estão prejudicadas por causa de um maldito terremoto que arrasou a cidade de Lisboa". E depois eles ainda reclamam que os brasileiros contam piadas de portugueses.

Fotos em http://janelaseportas.shutterfly.com/action/pictures?a=67b0de21b3400110657a&pg=0

10 de março de 2000

Março de 2000 - Bad Trip em Amsterdam

Quinta-feira, 2 de março de 2000. Eu e minha amiga Léa saímos de Londres para um fim de semana em Amsterdam, onde chegamos sob uma chuvinha fina. As primeiras impressões da cidade são superiores às minhas expectativas. Um sistema de informações turísticas eficiente, transportes públicos fáceis, rápidos, limpos. Da janela de nosso pequeno e modesto hotel, uma vista maravilhosa para um dos 160 canais de uma cidade formada por 90 ilhas. Uma espécie de Veneza, mas mais moderna, mais limpa e mais fácil de se orientar.

Na sexta-feira, um passeio de barco pelos canais reforçou a primeira impressão. Uma cidade charmosíssima, uma arquitetura única, antiga, bem conservada. O Museu van Gogh, um banho de arte de primeira qualidade, onde vi de perto o meu van Gogh favorito, o Quarto do Artista. No Mercado das Flores, as famosas tulipas holandesas. As coffee shops, cujos cardápios contêm desde cafés, chás e chocolates, até cigarros com diversas variedades de maconha, que podem ser escolhidos pelo tipo de erva e consumidos sem quaisquer restrições no local (curiosamente, ali não são vendidas bebidas alcoólicas). A polêmica política holandesa de repressão às drogas baseia-se na concentração de esforços contra os traficantes e as drogas mais pesadas, e na maior tolerância às drogas leves. Não sei dizer até que que ponto essa política lida com um problema existente ou o reforça (apesar de o número de viciados na Holanda ser proporcionalmente menor do que em vários países da Europa, incluindo a vizinha França cuja política é mais ‘linha-dura’). Certo ou errado, lembro-me do episódio em que um humilde pintor do subúrbio, em Brasília, que comprou uma camiseta com uma estampa de folhas de maconha, sem saber do que se tratava, e foi preso em caráter inafiançável por ‘apologia ao uso de drogas’. Enquanto pessoas como ele vão presas, os traficantes estão soltos em número crescente na cidade, oferecendo aos jovens de todas as classes, nos melhores colégios da cidade, não só maconha, mas qualquer outra droga para a qual haja demanda.

À noite, uma visita ao igualmente polêmico Distrito das Luzes Vermelhas, a zona de Amsterdam, que fica mais ou menos no centro da cidade. As prostitutas saíram da rua, se sindicalizaram e agora oferecem seus serviços por detrás das vitrines de casas e mais casas, uma ao lado da outra, nesse Distrito. O fato de tudo ser concentrado numa única região facilita o trabalho da polícia e da saúde pública (a Holanda tem um baixíssimo percentual de aidéticos na sua população). Contudo essa vantagem não evita que haja grande número de prostitutas exploradas, em geral mulheres asiáticas, africanas ou do leste europeu, que vivem em condições semi-escravas. Além disso, é deprimente o espetáculo grotesco das mulheres feias e envelhecidas, expostas como animais nas vitrines. É verdade que não é muito diferente do show diário que se vê em algumas áreas residenciais de cidades brasileiras, o que não nos torna muito diferentes da Holanda a não ser pela hipocrisia com que o problema é tratado pelas autoridades de plantão.

O longo dia se encerra com o retorno ao nosso espartano hotel. Não há banheiro privado no quarto. O chuveiro fica numa ponta do corredor, o vaso fica na outra ponta, ambos compartilhados entre quatro quartos, e em cada quarto há uma pia. Esses detalhes são importantes para explicar porque, com tantas entradas e saídas no quarto, acabamos dormindo sem trancar a porta do quarto.

Por volta de 5 da manhã, Léa acordou com uma claridade no quarto e eu acordei apenas a tempo de ouvir um homem dizer ‘sorry, wrong room’, sair e fechar a porta. Até nos darmos conta do que havia acontecido, o cara já tinha levado meu passaporte, todo meu dinheiro, minha passagem aérea, meu casaco de estimação, nossas duas máquinas fotográficas, meu relógio, minha calça com minha carteira e meus cartões de crédito. Deixou os documentos da Léa, que estavam numa outra bolsa menor. Ainda atordoado, sem saber o que fazer, saí do hotel, no escuro, morrendo de frio, para encontrar uma delegacia. Enquanto esperava o oficial que registraria minha ocorrência, solicitei o telefone para cancelar meus cartões de crédito. Foram várias ligações, algumas demoradas e, no meio de uma delas, um policial holandês enorme me dá uma tremenda esculhambação por eu estar usando o telefone ‘a noite inteira’. Contive-me para não mandá-lo à merda (ser preso àquela altura, sem documentos, não seria a melhor opção para mim). Fui então chamado a registrar a ocorrência com uma holandesa enorme, seca, masculinizada, absolutamente indiferente ao meu drama – que, vim a saber depois, era relativamente comum em hotéis pequenos. Ali com ela, numa sala fechada, sentindo-me mais protegido e ainda abalado com a grosseria do policial, não pude conter as lágrimas e vivi o meu primeiro momento de fraquejamento naquela situação. Saí de lá com a ocorrência policial – em holandês – e pensei no turista que chega a uma delegacia brasileira tentando falar inglês. Exceto em uma ou duas cidades com delegacias especializadas para turistas, nas outras isso é virtualmente impossível. Naquela delegacia, todos os policiais, até o cavalo que me esculhambou, falavam inglês comigo. Já era um consolo.

De volta ao hotel, já com o dia raiando, tive que lidar com a indiferença com que as funcionárias do hotel reagiram ao episódio. O sábado começa e resolvo ligar para o consulado brasileiro que fica em Roterdam, a 1 hora de trem de Amsterdam. Ouço o educado funcionário de plantão me informar que, para eu ter uma segunda via do passaporte, preciso esperar até segunda-feira e, para isso, eu precisaria de cópias da carteira de identidade e, acredite ou não, do certificado de reservista. Disse-me, ainda, calmamente, que se eu não apresentasse esses documentos, eu seria deportado para o Brasil, por não ter como provar minha identidade. Se eu apresentasse apenas a carteira de identidade, eu teria um passaporte temporário (o que não me permitiria regressar à Inglaterra que, naquele momento, era minha residência).

Tive nesse momento a certeza da dimensão do meu problema. Esses documentos me pareciam inatingíveis dali de Amsterdam. Tentamos contornar o problema com o André, marido da Léa, que é diplomata, mas o caso era realmente sério. De fato, como dar um passaporte a qualquer um que chega ao consulado dando seu nome e dizendo que é brasileiro? O drama só não seria maior porque tínhamos dinheiro, ou melhor, o cartão de crédito da Léa. Mas, doce ilusão. Quando fomos ao caixa sacar dinheiro, descobrimos, estarrecidos, que o limite do cartão dela estava estourado. Agora, nem documento nem dinheiro. Fizemos um balanço do que tínhamos: eu tinha 40 libras que trouxe de Londres, Léa tinha 40 dólares e mais alguns pounds. À nossa frente, despesas de hotel, alimentação, trem de ida e volta para Roterdam, um novo bilhete aéreo para mim, transporte na cidade e muitas ligações telefônicas. Ou seja, o dinheiro não dava para nada.

No meio da constatação do nosso drama, começa a nevar em Amsterdam. Uma neve forte, intensa, rapidamente branqueando a cidade. Um espetáculo inédito para mim, que teria tudo para ser lindo se a situação fosse outra. Se pelo menos nossas duas máquinas fotográficas não tivessem sido roubadas e pudéssemos registrar aquelas imagens inusitadas para um mês de março. Se meu casaco não tivesse sido roubado e eu não estivesse congelando de frio... Se nós tivéssemos dinheiro para tomar um chocolate quente num café enquanto olhávamos a neve cair...

Hora de cair na real e tomar as providências. Preciso de uma identidade e do título de reservista. Minha identidade está guardada no meu quarto, em Londres. Contei então com o apoio precioso de pessoas como Marcelo e Karina, Nicola, que foram de disponibilidade, dedicação e carinho inesquecíveis. Ligavam, recebiam ligações a cobrar, viabilizavam formas de entrar no meu quarto, pesquisavam como mandar dinheiro, descobriam como enviar fax num sábado à tarde. Em alguns momentos, ao falar com eles, me emocionava pelo simples fato de eles estarem lá do outro lado. Lembrei-me também de amigos como Maysa, Carmen e William, parte do meu círculo de referência em Londres, com quem eu podia contar, caso precisasse de mais gente. Tesouro inestimável num momento desse.

Não dava para contar muito com o Brasil, parado por conta do carnaval. Bancos fechados, amigos diplomatas viajando. Mas eu sabia que, trancado num quarto em meio às milhares de caixas que deixei no Brasil, cercado de geladeira, fogão, máquina de lavar, sofás, roupas, CDs e livros, jazia meu certificado de reservista. Quando senti que esse documento idiota, que não usava há mais de 20 anos, seria fundamental, decidi recorrer a meus pais que, com meu irmão, conseguiram achá-lo e imediatamente enviá-lo por fax.

O fim de semana viria a se mostrar o mais longo da minha vida! Muito frio, parcialmente contornado com pilhas de camisas que eu vestia uma por cima da outra, o pijama de flanela por baixo da calça. O pouco dinheiro tinha que ser contado. Fomos almoçar no McDonald’s, a opção mais barata. Dois sanduíches, uma batata frita compartilhada e uma coca-cola. Léa devolveu o catchup e a mostarda quando viu que custavam alguns centavos. Um pão de forma, presunto e queijo serviram como refeição pelos próximos 2 dias. Tínhamos ainda água da torneira, geléia e manteiga do café da manhã, além de mexericas e chocolate toblerone comprados antes do roubo. Telefonemas comiam nossas poucas moedinhas, e limitamo-nos então às ligações a cobrar. Nossa programação de fim de semana em Amsterdam, que incluiria museus, restaurantes, shows, passeios, foi totalmente cancelada.

No domingo decidimos que Léa deveria voltar para Londres, e à tarde ela embarcou. Sua permanência em Amsterdam era um grande apoio moral, mas implicava despesas de alimentação, hotel, transporte. Ela saiu com o dinheiro absolutamente contado para pegar um bonde até a estação de trem, e depois um trem até o aeroporto. Nada podia dar errado, mas deu. Na viagem de Londres para Amsterdam, após o check in, trocamos as passagens. Assim, a passagem roubada na verdade era a dela, e ela foi para o aeroporto com a minha. Não podia viajar, e sequer podia voltar para o hotel, já que estava sem dinheiro para o transporte. Mas alguma coisa tinha que dar certo: aceitando a sugestão do funcionário da companhia, ela tentou usar mais uma vez o seu cartão, o mesmo que não havia funcionado em momento algum e, por razões inexplicadas, dessa vez conseguiu com ele comprar uma passagem. Menos mal: a minha passagem ficou no aeroporto para quando eu tivesse o meu passaporte em mãos, uma vez que eu ainda teria que pensar como comprar uma nova passagem quando toda a parte burocrática estivesse resolvida.

Depois que Léa foi embora, fui aproveitar a tarde de domingo, naquilo que me era possível fazer sem um tostão no bolso. As ruas, o Vondelpark, os músicos na calçada, tudo era de graça, mas o que eu fazia com o meu desejo de comer pipoca, tomar sorvete ou beber um chocolate quente? Voltei cedo para o hotel com uma grande sensação de solidão. Resolvi fazer funcionar a televisão do quarto que, até então, não me fazia falta. Fiquei ali vendo filmes em holandês, jantando sanduíche, mexerica e toblerone. Estava ansioso, mas com a sensação de que as coisas estavam se resolvendo.

O domingo ia acabando e eu assistia o noticiário holandês. Deparei-me com imagens das enchentes em Moçambique. Não precisava entender holandês para entendê-las. Milhares de pessoas fugindo das águas, ilhadas em árvores, aguardando desesperadas o próximo helicóptero. Já perderam suas famílias, não têm passaporte, cartão de crédito, comida, casa, dinheiro, amigos. Nunca tiveram muito. Ser deportado para o Brasil já não me parecia tão grave. Nas cenas mais leves, a TV mostra o carnaval no mundo: as máscaras e fantasias de outros países e, no Brasil, apenas mulatas exuberantes com suas não menos exuberantes bundas nuas. E eu ainda tenho que explicar para meus amigos europeus que o Brasil é bem mais do que mulheres nuas, futebol e Amazônia em chamas.

A noite de domingo foi longa. Acordei às 3 da manhã e não consegui dormir mais. Saí cedo, sem tomar café, e tomei o trem para Roterdam. Felizmente, os documentos eram suficientes, tudo de que eu precisava para um passaporte definitivo. Os funcionários foram eficientes e gentis, embora eu tivesse de presenciar a estupidez de uma mulher que atendia uns empresários holandeses e, com um inglês macarrônico, explicava que não podia resolver o problema deles porque era carnaval e o consulado estava funcionando em regime de plantão. Recebi meu passaporte e assinei um documento comprometendo-me a enviar-lhes o equivalente a 75 dólares pelas despesas de emissão (um abuso!). Saí de lá feliz com meu novo passaporte, mas com uma nostalgia pela perda do antigo que, em seus múltiplos carimbos, guardava uma parte importante das minhas histórias mundo afora.

Tomei o trem para o aeroporto, consegui uma conexão imediata e entrei no avião pensando em tudo que me havia acontecido. Comecei a pensar nas lições do episódio. No que poderia ser diferente, no que poderia ter melhorado ou piorado a situação, no que eu podia ter feito e não fiz para evitar esse drama. Pensei na ausência de valor do dinheiro que eu tinha no banco em Londres, que existia mas era inacessível no momento em que eu mais precisava dele. Lembrei-me de como o pão com queijo e presunto dos últimos dois dias tinha adquirido um sabor todo especial. Pensei na tecnologia que me alcança amigos e família por telefone e que faz um documento chegar por fax em segundos. Agradeci os amigos com quem podia contar. Pensei na minha amiga Léa. Viagens trazem o que há de melhor e de pior nos companheiros de viagem. E felizmente, nesse stress todo, a Léa foi uma grande companheira, com iniciativa, alto astral, despojada, solidária nos momentos de baixo astral total, quando achávamos que nada ia dar certo. Se ela não tivesse sido o que foi, eu certamente teria preferido estar sozinho no episódio.

Em meio a tudo, eu ainda conseguia pensar em Amsterdam, uma cidade que me encantou desde o início, e que ficou explorada muito superficialmente. É certamente uma das cidades mais bonitas e charmosas que já conheci. Quero voltar lá, sem julgá-la por um episódio infeliz. A imagem que se tem de um lugar depende do que vivemos nesse lugar: o momento, o que se vê, o que se vive, a companhia, o restaurante, o hotel, mas não quero essa imagem de uma cidade que julguei tão linda desde o começo. Lembrei-me de lugares que visitei, supostamente mais perigosos, Turquia, Bolívia, Peru e, por que não dizer, Brasil. Não, a imagem que me fica de Amsterdam não é a do risco ou do perigo, mas do que a cidade me inspira a conhecer numa outra oportunidade.

Minha preocupação agora era a entrada na Inglaterra, sem documento algum que provasse a minha condição de estudante a não ser uma carteirinha vagabunda da universidade, dessas que mal valem para desconto no cinema, e que o gatuno deixou cair na fuga. Felizmente, uma funcionária atenciosa e educada (raro em serviços de migração) acreditou na minha estória, na ocorrência policial em holandês que ela não conseguia ler, e carimbou meu passaporte com a mesma validade do anterior. Quando passei a barreira da migração, no hall do aeroporto, me senti finalmente aliviado. Mais, me senti em casa, seguro, protegido. A sensação, por incrível que pareça, de que, nesse momento, esse é o meu canto, o meu refúgio, o meu país. Nesse momento, minha vida está aqui. Minha casa está aqui. Chegar em Londres, tomar um banho, botar roupas limpas, jantar, tomar um vinho, ouvir minha música, é tudo de que eu precisava para fechar minha viagem. E então, mais relaxado, permitir-me viver a raiva e o medo que não deixei aflorarem durante o fim de semana.