“O gênero humano não pode suportar tanta realidade”. Com essa frase, de T.S.Eliot, citada por Octavio Paz no livro “Vislumbres da Índia”, consigo resumir a maioria dos sentimentos que me tomaram durante os quase 30 dias que passei naquele País. Ao término da viagem, me vi tomado por sentimentos muito variados que, infelizmente, não pude processar como gostaria, tendo apenas para mim alguns dias de digestão de tudo que vi, ouvi, senti. Sim, porque não há leitura alguma que seja capaz de me transmitir o que foi essa viagem fascinante. Foram momentos de deslumbramento, admiração, mas também de cansaço, confrontamento, desafio. Houve horas em que senti um desânimo profundo, tão difíceis eram as coisas mais simples, mas sempre dava tudo certo e eu continuava sendo seduzido pelo país. Ao fim, foi uma viagem sem quaisquer problemas mais sérios, exceto uma boa diarréia em Agra. Mas, o que é uma viagem à Índia sem uma boa diarréia? A Índia, definitivamente, não é para qualquer um.
Comecei minha viagem por aquela que viria a ser a parte mais pesada de toda a temporada: a cidade de Mumbai (ou, como ainda é conhecida, Bombaim) e algumas cidades no estado de Gujarat. Mumbai é sem dúvida alguma a cidade mais pobre que já visitei (e já visitei alguns lugares muito pobres no Brasil e em outros países). Uma grande aglomeração urbana, quase 20 milhões de habitantes, favelas em volta de toda a cidade. O trajeto de táxi do aeroporto até o hotel, no centro da cidade, durou quase duas horas, mas não por causa da distância. Não só o carro estava caindo aos pedaços (como, de resto, grande parte da frota indiana) mas, também, a velocidade máxima era prejudicada por um circuito que passava por dentro de algumas das inúmeras favelas da cidade. Um espetáculo degradante de ser assistido da janela do carro. Os olhares das crianças e adultos, pedintes nos sinais de trânsito, ultrapassam, em desespero, dor, fome e miséria todos os muitos olhares com os quais já cruzei. Algumas fotos no livro Êxodos, do Sebastião Salgado, ilustram algumas dessas de Mumbai cenas que não tive a coragem de fotografar.
Saímos de Mumbai e fomos, numa viagem que incluiu trem e ônibus, para a cidade de Bhuj, no estado de Gujarat. Um local tão sem interesse para o turista comum que nos vimos, divertidos, obrigados a tentar explicar a alguns companheiros de viagem por que mesmo é que estávamos visitando aquele estado. Não há infra-estrutura turística nenhuma e imaginamos que, exatamente por isso, poderíamos ter uma noção melhor do país, do povo, das cidades. Já deu para sentir um pouco disso na dupla jornada de trem e ônibus.
O estado de Gujarat é dominado pelo jainismo, uma religião indiana fundada no século VI aC, semelhante ao budismo e que surgiu como uma dissidência do hinduismo. Entre outras características, os jainistas são vegetarianos radicais (não comem nem ovos – a experiência de um omelete sem ovos é inesquecível, acredite sem tentar) . Não é proibido, mas encontrar um lugar que sirva qualquer tipo de carne ou um singelo ovo frito é quase impossível. De vez em quando, descobrimos um bar ou restaurante muçulmano que nos servia alguma dessas sonhadas iguarias, mas a alimentação foi prá lá de precária.
Em uma das incursões que fizemos pelo Gujarat, contratamos um motorista de táxi para nos levar a algumas vilas em torno de Bhuj. No caminho, o motorista, que mal falav inglês, insistiu em nos levar para conhecer um hospital do câncer. Não conseguíamos nos entender para saber a razão dessa insólita visita, até descobrirmos que, na verdade, estávamos visitando um hospital de animais. Moderno, novo, bem equipado, e lá dentro, ao invés de gente, vacas e camelos sendo muito bem tratados, mais bem tratados do que 95% dos indianos imaginaria ser um dia. Uma loucura. Tudo bancado com grana dos jainistas, que têm na proteção aos animais um dos fundamentos de sua religião. O hospital tem ainda um museu que, na verdade, é uma sequência de painéis com uma verdadeira lavagem cerebral em defesa do vegetarianismo, com argumentos sobre por que comer carne é uma violência contra a vida animal, contra a saúde humana e contra a economia do planeta.
No mesmo passeio, pousamos na cidade de Khuj. Em busca de alguma experiência exótica, resolvemos nos hospedar no palácio de um antigo marajá. Fizemos a reserva, sem olhar, e para lá nos dirigimos, para uma propriedade um pouco afastada da cidade. Fui, confesso, imaginando uma hospedagem no estilo dos famosos paradores portugueses e espanhóis. Imaginei cenários principescos, empregados em roupas tradicionais, coisas do gênero. Acabou sendo, de fato, uma estadia fantástica, mas pelo pitoresco da situação. Um marajá decadente, sem dinheiro para bancar as despesas da vida moderna, resolveu alugar uns quartos de seu palácio igualmente decadente, empoeirado, caindo aos pedaços. O jantar foi servido por um empregado descalço, vestido em roupas prá lá de simples, numa mesa velha que mal se equilibrava, coberta, acredite ou não, com uma folha de jornal. A comida foi devidamente servida em uma marmita que, segundo apuramos, é preparada pela esposa do empregado – o único do palácio. Foi hilário, morremos de rir com a nossa expectativa de que, finalmente, íamos ter uma refeição decente em Gujarat.
Sair de Bhuj foi uma outra aventura. As conexões de ônibus e de trens são bastante limitadas, o que nos obrigou a uma estada adicional de dois dias na cidade, simplesmente porque não tínhamos como sair de lá. Chegamos com uma sensação de alívio ao estado de Rajastão, o mais explorado turisticamente na Índia. Apesar dessa sensação, as peculiaridades dessa simpática região nos marcaram ao longo de toda a viagem e, apenas alguns meses após nossa viagem, fomos tomados de profunda tristeza ao ver a cidade de cerca de 100.000 habitantes ser completamente destruída pelo terremoto de janeiro de 2001, que teve em Bhuj seu epicentro. Impossível me conter comparando as fotos que tirei com aquelas que encontrei nos jornais apenas seis meses depois.
Udaipur, nossa primeira escala no Rajastão, é uma cidade bastante charmosa. Com um certo exagero, chamam-na de a Veneza Indiana, talvez em função do belo lago que pode ser avistado dos terraços de diversos hotéis e restaurantes da cidade (um belíssimo pôr-do-sol). Udaipur orgulha-se, ainda, de ter sido o cenário para as filmagens do filme Octopussy, com James Bond, o qual é exibido diariamente, em alto volume, em todos os bares da cidade. Nossa primeira refeição, logo à chegada, foi no nosso hotel, com vista, naturalmente, para o lago que domina a cidade. Ah, a indescritível sensação de comer bem depois dos dias passados em Gujarat. A cidade ostenta ainda suntuosos palácios, remanescentes dos tempos dos grandes marajás.
Alguns desses palácios foram convertidos em hotéis luxuosíssimos, para fazer frente aos gastos de famílias bastante acostumadas ao luxo e pouco afeitas à labuta. Jantei num desses. Esse sim, um verdadeiro palácio, bonito, bem mantido, enorme, lindos jardins, o interior finamente decorado com móveis e quadros da época. Um ambiente tirado das 1001 noites. Mesas espalhadas ao longo da pérgula da piscina, que fica em um pátio do palácio, garçons vestidos em trajes tradicionais, música clássica indiana ao vivo, uma iluminação do tipo ‘volta ao passado’, um serviço de primeira, sem formalidade, e uma comida divina, maravilhosa (ou será que eu é que ainda estava sob o efeito da gastronomia de Gujarat?). O preço do banquete foi um absurdo para os padrões indianos, cerca de 20 dólares por cabeça, o que é mais ou menos 10 vezes superior ao custo médio das minhas refeições na Índia. Mas se voltar só um pouquinho no tempo e lembrar do custo das refeições que eu fazia em Londres, quando estudante, o palácio indiano fica bem baratinho.
O mais engraçado da noite é que passamos no hotel/restaurante apenas para dar uma olhada, recém-saídos de um lindo pôr-do-sol a que fomos assistir no terraço de um castelo que fica no alto de uma montanha próxima a Udaipur. Não imaginávamos ficar para jantar e, por isso, lá fomos vestidos de sandália, camiseta e bermudas, bem mais arrumados que um mochileiro típico, mas certamente distante de todos os outros clientes do restaurante, especialmente os turistas do mundo civilizado vestidos com pompa e circunstância. Resolvemos encarar o jantar e uma mulher na mesa ao lado nos olhava com cara de desdém, quase implorando à gerência para nos expulsarem do restaurante. Rimos muito com a cena. O mais impressionante é que o serviço foi tão bom, descontraído, atencioso e agradável, que duvido que tenha sido melhor para a perua ao lado do que foi para nós.
O estado do Rajastão é, de maneira geral, muito melhor preparado para receber turistas. Não por acaso, encontramos turistas de todo o mundo viajando pelas cidades que visitamos. Apesar de não enfrentarmos as restrições gastronômicas impostas pelo regime religioso de Gujarat, também no Rajastão, além de uma temperatura muito quente e seca, tivemos que lidar com uma dieta completamente diferente. Fomos bastante cautelosos nessa área, no início porque achamos que os padrões de higiene da Índia não eram exatamente similares aos nossos e, depois, porque começamos a ver que, mesmo nos melhores lugares, a comida indiana nem sempre nos batia bem, com o uso excessivo de sua profusão de chilli e curry. Optamos por não economizar com comida, e fomos sempre a restaurantes razoáveis, o que significou mais higiene e mais opções (menos condimentadas). Também no Rajastão era bastante numerosa a quantidade de restaurantes vegetarianos, embora haja uns poucos lugares onde se come galinha ou carneiro (a sagrada vaca, nem pensar). Embora eu tenha me adaptado surpreendentemente bem à dieta vegetariana, havia horas em que eu olhava para aquelas vaquinhas soltas na rua, elas olhavam para mim, eu olhava para elas de novo, e pensava na suculenta picanha que elas escondiam.
As comidas de rua são extremamente tentadoras, bonitas, coloridas, cheirosas, e, por razões óbvias, fiz esforços enormes para me controlar. Um dia, porém, vi num quiosque de rua uma sobremesa maravilhosa que havia experimentado no dia anterior num restaurante. Não resisti, encarei, e o resultado não podia ser outro: o doce da rua era muito melhor que o do restaurante. Também na rua tomei, por diversas vezes, o delicioso lassi, um refresco à base de iogurte, bem gelado, apropriado para o calor indiano. Não era exatamente a mais segura opção de bebida, mas o delicioso sabor suplantava todos os meus medos.
Uma das coisas mais difíceis para a adaptação à Índia foram os preços de tudo que consumíamos. A comida era sempre baratíssima. Mesmo optando por melhores restaurantes, nas cidades mais caras, uma boa refeição nunca saía por mais de 5 dólares. Quaisquer serviços que usássemos – táxi, costureira, correios – sempre nos surpreendiam pelos baixos custos. Em Jaipur, uma cidade grande, fui cortar o cabelo. Um lugar antigo, pequeno, mas limpinho, recomendado pelo dono do hotel em que nos hospedávamos. Havia toalhas limpas, lâminas novas, tudo no maior estilo. Um corte de cabelo legal, não muito diferente do que eu teria em Brasília ou em Londres. Ao fim, uma massagem facial completa, que incluiu couro cabeludo, cabelo, face, pescoço, ombros, braços e início da coluna. O preço? Tudo isso pela bagatela de 60 centavos de dólar. Impressionante.
Optamos também por ficar em hotéis razoáveis, menores, acolhedores, longe do barulhento centro das cidades indianas. Um mínimo de conforto era importante, pois as viagens eram sempre muito cansativas. Mas, em termos de preços, isso não quer dizer muito. As diárias dos hotéis em que nos hospedamos, todos com banheiro privativo, eram sempre em torno de 10 dólares, às vezes bem menos, às vezes um pouco mais.
Em muitos momentos, perdemos totalmente a noção de preço, e é nessas horas que fica difícil o processo de comprar qualquer produto ou serviço que não tenha preço fixo, dada a expectativa de que turistas e indianos participem de um irritante e permanente jogo de barganha. O melhor exemplo é o uso dos rickshaws, aquelas lambretinhas de três rodas que são o meio de transporte típico nas estreitas ruelas das cidades indianas e em oturas cidades asiáticas (também conhecidos como tuc tuc). Para nós, estrangeiros, o preço era sempre mais alto e, a cada cidade, antes de se ter uma noção do custo das corridas, tínhamos que passar por um processo altamente cansativo. Toda vez que pegávamos um (e eram vários no dia), tínhamos que discutir o preço, barganhar, argumentar. Naturalmente, os valores em discussão eram irrisórios, sempre em torno de 50-60 centavos de dólar, mas se deixarmos, seremos sempre explorados pelos motoristas. Ao final, já estávamos acostumados com alguns preços e ficava mais fácil negociar e discutir, mas isso não tirava o aborrecimento e a irritação de cada negociação. O problema disso era quando nos pegávamos, às vezes, barganhando por valores ridículos. Numa dessas vezes, fui tomar um rickshaw que me pediu 30 rupias por uma corrida que eu sabia valer 20. Como estava de noite, resolvi oferecer 25, e aí iniciou-se a barganha. Então me dei conta de que eu estava discutindo por cinco rupias, o que significavam cerca de 10 centavos de dólar. É nessas horas que batia a tal da consciência social, sem que eu soubesse o que fazer com ela. Para essas pessoas, essas cinco rupias tinham profundo significado no faturamento do dia, era parte da luta diária pela sobrevivência, enquanto para mim não só esse valor não significava nada como, também, me era difícil apreender o significado desse valor na vida daquelas pessoas.
Por muitas vezes, nem queríamos discutir os valores, embora soubéssemos estar pagando duas ou três vezes o valor que um indiano pagaria pelo mesmo serviço. A situação de extrema pobreza da Índia afetava muito do que fazíamos e a maneira como nos comportávamos. Por isso, acabávamos por nos envolver com aqueles indianos que diariamente se engalfinhavam para conseguir uns trocados, e ficávamos cada vez mais generosos com gorjetas e menos exigentes nas negociações. Para essas pessoas, conseguir uma corrida de rickshaw, vender uma calça ou até mesmo uma simples garrafa de água mineral pode significar a diferença do dia. É impossível ficar indiferente ao que se vê na Índia, assim como eram inevitáveis as crises de consciência ao vermos tanta miséria e não podermos fazer nada. Mas, para mim, isso não era privilégio da minha estada naquele País. De maneira diferente, frequentemente sinto o mesmo no Brasil, um constante incômodo com o absoluto disparate das desigualdades sociais que não são jamais aplacadas e para as quais não vejo qualquer perspectiva de solução.
A comparação com o Brasil não chega a ser justa. A pobreza aqui impressiona mesmo a um brasileiro, tão acostumado com isso no dia-a-dia. A Índia é um país que tem alguns dos grandes cérebros do mundo, mas tem uma taxa de alfabetização em torno de 50%. Tem grandes fortunas individuais, mas 3/4 das crianças sao subnutridas. A pobreza é tanta e tão aparente que a riqueza fica diluída, escondida, nao se vê. Diferente do Brasil, onde a pobreza e a riqueza se vêem com mais facilidade. A pobreza na Índia é tanta que se criou um sui generis sistema para geração de empregos, que se manifesta numa burocracia enorme para tudo: tudo que se faz no setor público – correios, estações de trem – envolve mais pessoas do que o necessário. Se for para analisar pelo lado da eficiência, ter que preencher um formulário com seu nome, endereço no Brasil, número do passaporte, etc, apenas para comprar um bilhete de trem, a coisa parece absurda. Mas quando se pensa que aquele formulário vai passar por umas 5 ou 6 pessoas até você ter o bilhete na mão, são 5 ou 6 empregos a mais, então faz sentido.
Enquanto estava na Índia, e vítima desses sentimentos de estupefação, não resisti a fazer algumas comparações entre Índia e Brasil. Com dados colhidos em alguns sites na Internet (dados de 2000), observei que, em termos absolutos, a Índia é tão rica quanto o Brasil. A diferença é uma população quase seis vezes maior, de cerca de 1 bilhão de pessoas. O Brasil não seria muito diferente da Índia com essa população. Na Índia, a miséria está presente o tempo todo, em todos os lugares. E não existem, como no Brasil, os shopping centers, que são os lugares escolhidos pelos brasileiros para se esconder da pobreza. Na Índia, simplesmente não dá para se esconder da pobreza.
A Índia tem menos da metade do tamanho do Brasil mas quase seis vezes a nossa população. A expectativa de vida nos dois países é a mesma. Na taxa de alfabetização, estamos melhores, 83% no Brasil contra 52% na Índia. A diferença é que no Brasil a taxa é a mesma para homens e mulheres, enquanto na Índia é de 65% para os homens e de 37% para as mulheres. Um emblemático retrato das desigualdades entre homens e mulheres no país. Minha maior surpresa foi verificar que a Índia tem um Produto Nacional Bruto (PNB) 80% maior do que o brasileiro. Além disso, enquanto a economia brasileira cresce a cerca de 1% ao ano, a indiana cresce a cerca de 5,5% ao ano. Por causa da diferença no tamanho da população, contudo, o PNB per capita do Brasil é mais de três vezes superior ao da Índia.
Embora a Índia tem muito mais pobres do que o Brasil – 35% dos habitantes vivem abaixo da linha de pobreza, contra 17% no Brasil –, quando se fala de distribuição de renda, somos então mundialmente imbatíveis: nossos 10% mais ricos concentram absurdos 48% das riquezas nacionais, enquanto na Índia os 10% mais ricos concentram apenas 25%. Nossos 10% mais pobres concentram míseros 0,8% das riquezas, enquanto os 10% mais pobres da Índia concentram 4,1%. São dados para se pensar quando se fala em pobreza. Embora chocado com a pobreza na Índia, dá para ver que é um país quase todo pobre. Já o Brasil, é um país rico mas com um povo miserável.
O principal efeito da pobreza disseminada na Índia é uma economia informal, na qual todos lutam desesperadamente por qualquer centavo de dólar que algum turista possa deixar. Em especial nas cidades mais turísticas, a competição é selvagem. E aí vale tudo, pedir mais pelo preço das mercadorias e serviços, levar turistas para hotéis e lojas em troca de comissões, pequenos golpes. Toda hora, na rua, sempre há os 'amigos', que te saúdam, perguntam seu nome, seu país de origem, e te acompanham por horas tentando te convencer a entrar numa loja ou a ir para um determinado hotel.
A saudação às vezes faz parte do assédio, mas às vezes é apenas um gesto natural, de hospitalidade e de carinho. O país de origem é uma das primeiras perguntas que nos fazem. Quando respondo Brasil, a primeira associação é sempre o futebol. Dependendo da idade do interlocutor, as referências são Pelé, Romário ou Ronaldo. Alguns desavisados fizeram associações, para meu desgosto, com Maradona e Batistuta. Outras associações recorrentes sao as queimadas na Amazônia, as mulheres nuas no Carnaval e as crianças de rua. Nada muito diferente da imagem do Brasil que se tem no ‘primeiro mundo’.
Os pequenos golpes na Índia sao fantásticos, hilários. Para quem estava bem informado, como nós, que havíamos lido com antecipação como funcionavam as coisas, dava para escapar. Mas os desinformados são presas fáceis. Os mais divertidos são os dos motoristas de rickshaw. Quando se pede para ir a um hotel, eles sempre te sugerem um outro. As argumentações sao das mais interessantes: o dono do hotel morreu semana passada numa acidente terrível, o hotel foi fechado pela polícia, o hotel (para o qual você já fez reserva) está lotado, o hotel é muito caro e está decadente. Conseguir que eles te levem ao hotel desejado requer às vezes um tom de voz mais elevado e, em um caso extremo, tivemos que contratar um outro motorista. Um momento fantástico foi a nossa chegada em Nova Déli, na estação de trem, quando os motoristas de táxi e de rickshaws queriam nos cobrar, quase em cartel, a absurda quantia de 250 rupias para nos levar até o nosso hotel. Não sabíamos onde ficava o hotel, mas nossa noção de preço na Índia nos dizia que o preço era absurdo. Depois de muito trabalho para conseguir alguma informação confiável, descobrimos que o hotel ficava a não mais do que três minutos, a pé, de onde nos encontrávamos.
Lidar com a pobreza indiana é um processo diário e permanente, às vezes bem irritante. Há o assédio dos comerciantes, há os golpes, mas há ainda as crianças que pedem dinheiro, comida ou até canetas na rua. E há também as mulheres com crianças nos braços, que te seguem na rua por horas até conseguir alguma coisa. O assédio diário é constante, aborrece, mas depois de me desvencilhar dessas pessoas, eu acabava carregando comigo o profundo olhar de desespero, de tristeza, de fome ou de desesperança que cada uma trazia consigo. É um olhar profundo como jamais vi, um olhar que não se vê nos pobres no Brasil ou em outros lugares por onde andei. Um olhar que fica, que incomoda, que dói. Que vai com você.
Um aspecto interessante da pobreza na Índia é que, ao contrário do que aconteceu em países como o Brasil, ela nao descambou para os elevados índices de violência urbana que se vê na maioria das grandes metrópoles dos países em desenvolvimento. Uma das coisas que tem mais me assustado no Brasil é como o aumento da pobreza e das desigualdades de renda tem gerado uma violência assustadora. Aqui na Índia, com exceção de pequenos golpes contra turistas, que são usuais, a taxa de crimes, roubos, assassinatos e coisas do gênero é muito baixa, quase não se ouve falar. Há, naturalmente, inúmeras razões de ordem religiosa e da estrutura social na Índia para explicar isso, mas fica difícil explicar o que faz o Brasil tão violento em condições de pobreza mais amenas do que as encontradas na Índia.
O lado mais perverso do constante assédio que sofremos nas ruas da Índia é que passamos a olhar com suspeição todos os indianos que se mostram amigáveis e, com isso, cometemos lamentáveis enganos. Há milhares de crianças que vinham nos saudar apenas para treinar seu básico vocabulário de inglês, especialmente quando andávamos em áreas menos turísticas. Aliás, criança é uma coisa fantástica em qualquer lugar do mundo. Quando ainda não contaminadas pela maldade, as crianças provocam as mais absolutas sensações de prazer que se possa ter numa viagem. Indescritíveis as inúmeras cenas das crianças que vinham nos saudar, nos perguntar o nome, ou apenas falar um ‘oi’ para gastar o inglês. Genuína pureza infantil.
O problema é que ficamos tão na defensiva com os 'tipos' indianos que, quando uma criança vinha, já ficávamos armados esperando os pedidos de dinheiro, comida ou a sugestão para nos levar a alguma loja em particular. Em Bikaner, um jovem de 16 anos se apresentou e puxou papo conosco. Andou pelas ruas com a gente, ajudou na negociação de um táxi que contratamos para um passeio, foi no táxi conosco, passou todo o dia com a gente, conversou sobre tudo, futebol, cricket, política, religião, ajudou-nos na compra de bilhetes de trem, e eu, durante todo o dia, fiquei armado contra ele, esperando o golpe que viria, no final, ao nos cobrar pelos serviços prestados. Quando, ao fim do dia, ele apenas me deu o seu endereço me pediu para mandar um postal do Brasil para sua coleção, fiquei de coração partido. É triste, mas esse é o resultado das experiências que vivemos. Mas há na Índia pessoas genuinamente amigáveis, que apenas adoram conversar com estrangeiros, e que encontramos com frequência em trens e ônibus.
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O misticismo e a religiosidade da população é algo que extrapola a capacidade de compreensão de um viajante em apenas um mês. Sao milhares de templos de várias religiões, predominantemente hindus, mas também muçulmanos, budistas, jainistas. São vários deuses, templos, religiões. Há algo de fascinante nesse caldeirão religioso que é a Índia, mas há também coisas que nos chocaram, como o caráter sagrado de alguns animais. Em Bikaner, fomos visitar um templo dedicado aos ratos. Entramos no templo, descalços, como faríamos em qualquer outro templo, e lá nos deparamos com centenas de ratos que não apenas circulam livremente, mas são também adorados e alimentados pelos visitantes. Ter um rato passando sobre o seu pé é sinônimo de benção, mas felizmente eu escapei da graça de ser abençoado pelos ratinhos. Saí do templo, após algum tempo, completamente enojado com os meus pés sujos daquela mistura de fezes, urina e comida de ratos no chão. A única coisa que eu queria era voltar ao hotel e lavar bem os pés, mas não pude deixar de carregar comigo as imagens marcantes daquele templo, como a do homem deitado de bruços no chão do templo, rezando, ou da mulher que passava a mão no chão e, com a mesma mão, abençoava a si mesma e à sua criança de colo.
Ainda na área religiosa, as vacas constituem um capítulo à parte. Animais sagrados por excelência, após um mês inteiro na Índia não consegui me acostumar com elas ou com o tratamento a elas dispensado pelos indianos. Elas estão em todos os lugares, nas ruas, até nas grandes cidades, nas lojas, nas praças, nas casas. Sempre buscando algo para comer e, como não há muito, o que elas mais comem é jornal, cartolina e plástico. Em uma das estações de trem em que estivemos, as vacas andavam placidamente pela plataforma. Quando um trem chegava, botavam as cabeças pelas janelas ou portas, na espera de um agrado de algum passageiro. Um boi entrou no local onde se vendiam os bilhetes e instalou-se no chão, completamente dono do pedaço. É, de fato, uma relação inacreditável de uma população de 1 bilhão de pessoas com um animal. A Índia tem o maior rebanho de gado do mundo, mas a população morre de fome, pois as vacas sao intocáveis.
Nesta viagem, acabei nao tendo a chance de visitar Varanasi, a sagrada cidade que os hindus escolhem para morrer a fim de se livrar de seus carmas. Os relatos que já ouvi sao de impressionar e ninguém sai de lá sem ficar profundamente marcado pela experiencia. São corpos agonizantes pelas ruas, fornos de cremação espalhados pela cidade e as cenas mais chocantes são as dos corpos dos defuntos, simplesmente jogados no sagrado rio. Os corpos flutuam no mesmo rio em que os adultos se banham para purificar-se ou onde as criancas brincam inocentemente.
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Viajar pela Índia exige paciência e disposição física. Utilizamos todos os meios de transporte disponíveis, com exceção do avião, que poderia ser uma solução em alguns trechos mais longos. Como nossos trechos foram, essencialmente, curtos, optamos por fazer uma mistura de trens, ônibus, táxis. A Índia tem uma fantástica rede de trens, que possibilita ao turista e aos indianos viajar por todo o país de trem (uma importante herança da colonização britânica). O sistema é totalmente computadorizado, organizado e, por isso, andar de trem acaba sendo a melhor opção na Índia, apesar da extrema lentidão das viagens nos obsoletos trens. Os custos são bem baixos, mas não é, também, o que eu chamaria de uma viagem confortável. Utilizamos, algumas vezes, a primeira classe, na maioria fomos na segunda e, às vezes, nas viagens curtas, fomos com o povão, na econômica (ou terceira). Nessa última, não há lugares marcados, é um salve-se quem puder, mas é exatamente aí que surgem as melhores oportunidades de encontrar e conversar com gente interessante.
Havia trechos, porém, em que não dava para viajar de trem. Aí o jeito era apelar para o ônibus. Há dois tipos de ônibus, os estatais e os privados. Os estatais sao umas latas velhas, antigas, caindo aos pedaços. Cinco assentos por fileira, mais um corredor estreito, que é invariavelmente ocupado pelos excedentes. Nos privados, que sao ironicamente chamados de 'luxo', a diferenca é um pouco mais de conforto, com apenas 4 assentos por fileira. Também no ‘luxo’, os assentos e os corredores são frequentemente tomados por famílias inteiras, com crianças e, não raro, galinhas soltas. Mas o melhor mesmo é a 'classe superior'. São os passageiros que, depois de assentos e corredor completamente tomados, viajam no teto do ônibus, no lugar em que deveriam ir as bagagens. Uma cena impressionante. Contudo, impressionante mesmo é a cena do cobrador que, com o ônibus em movimento, passa por cima de dois passageiros sentados, sai por uma das janelas e passa para o teto do ônibus a fim de cobrar o bilhete dos que estao em cima. Impagável.
Nao há paradas regulares para banheiro, apenas aquelas para pegar e deixar passageiros. É quando homens e mulheres saem correndo para, nesse curto intervalo, urinar na parede mais próxima. Para as mulheres é mais complicado, não consegui descobrir como elas resolviam esse problema. Nas viagens longas, de 5 a 6 horas, vivi esse suplício várias vezes, até porque, com o forte calor, eu tomava muita água. Numa dessas paradas, saí correndo, na frente de todo mundo e quando já havia achado uma parede para fazer o meu xixi, levei uma bronca danada de um indiano que me mostrava um mictório público perto da parede. Vexame! Uma outra viagem inesquecível, embora de apenas meia hora, foi a mais divertida. O embarque no ônibus consistiu de mais de 80 pessoas tentando entrar ao mesmo tempo por uma única porta: crianças, mulheres com bebês, velhos e velhas, galinhas. Acabamos não conseguindo sentar, pois ao entrar vimos que as poucas pessoas que entraram na nossa frente multiplicavam seus braços e pernas para ocupar vários assentos para os membros da família que ficaram para trás.
Em outras situações, optamos por alugar um táxi ou carro com motorista, uma opção que, muitas vezes, mostrou-se bem interessante e não tão cara. Uma ótima alternativa para fazer pequenos trechos entre duas cidades ou para visitar uma região em que queremos ter liberdade para parar onde quisermos no nosso próprio ritmo. Os preços acessíveis nos permitiriam fazer mais dessas ‘extravagâncias’ mas, com isso, perderíamos a maravilhosa chance de conhecer a Índia que se conhece num ônibus lotado ou na terceira classe de um trem. O maior problema dessa opção, que se aplicava também aos ônibus, era vencer o medo das terríveis estradas indianas e dos alucinados motoristas que as ocupam. E ainda tem gente que tem medo de avião.
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Ao fim de um mês de viagem, vimos de tudo um pouco, embora tenhamos percorrido apenas uma pequena fração do território indiano. Há tanto mais que se ver. Estivemos em áreas bem turísticas e visitamos locais nos quais duvido que algum turista tenha jamais pisado o pé. Em comum a quase todos os lugares que visitamos, a presença de uma história milenar. Como também é comum a quase todos os lugares o lamentável estado de conservação de monumentos como fortes, palácios, casas e edifícios, cheios de história mas abandonados pelo Governo. O preço dos ingressos é sempre ridículo, mal deve dar para pagar o salário do porteiro (e para os indianos o preço é, com razão, ainda mais baixo). As exceções são os palácios que continuam em domínio privado, com os herdeiros dos marajás (ou com os próprios). Alguns estão em perfeito estado de conservação, transformados em museus, hotéis ou restaurantes, e com preços à altura não só dos custos de manutenção mas, também, das necessidades dos decadentes marajás e suas famílias. Na área do governo, apenas o Taj Mahal é exemplarmente cuidado, mas às custas de uma exorbitante entrada de 20 dólares.
Vimos muitos monumentos maravilhosos, mas nao dá para falar da Índia sem falar no Taj Mahal, a atração turística principal do país. Minha visita ao Taj Mahal foi sob o peso de uma pesada diarréia, o que naturalmente tira o prazer de qualquer visão e te põe mais preocupado em localizar o banheiro mais próximo do que em admirar a beleza do monumento. Apesar disso, o Taj é de fato magnífico, perfeito em cada detalhe. A estória de sua construção é tão interessante quanto o prédio em si. Um marajá que perdeu a esposa durante o parto do filho quis construir o mais belo palácio para abrigar o corpo da mulher. O palácio levou 20 anos para ser construido, quase 20.000 pessoas trabalharam no projeto, os mais famosos artistas do mundo foram recrutados. Ao fim da construção, muitos operários tiveram os braços amputados para jamais poderem repetir obra tão magnífica. A cota de ironia fica por conta do golpe de estado aplicado pelo próprio filho do marajá que, ao depor o pai, encarcerou-o no Forte de Agra, de onde o marajá podia observar o Taj Mahal pela minúscula janela de sua cela. Quando ele morreu, foi tambem enterrado no palácio, ao lado de sua esposa.
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A India é uma viagem do tipo 'ame ou odeie', mas há opções para todos os gostos, para todos os estilos de viajantes (até para quem quiser ir apenas à praia). Dá para viajar só pelo circuito mais conhecido, com melhor infra-estrutura de hotéis e restaurantes, movendo-se de avião de uma cidade para outra, como também dá para viajar muito com orçamento bastante inferior ao nosso. Essa variedade de opções reflete-se na variedade de tipos que encontramos em nossas andançaas. Desde senhores e senhoras distintos, até bichos-grilos de todas as origens. Eu e meu amigo ficamos numa categoria intermediária, longe de sermos os típicos mochileiros, mas também longe de sermos viajantes tao distintos, dos quais os japoneses são os mais típicos e extremados representantes. Interessante é que cada um faz a sua própria viagem na Índia. Cada figura que encontramos pelo caminho dava, por si só, um livro. Gente viajando sozinha, em grupos, casais, duplas ou trios de mulheres, de homens, hippies, velhinhos aposentados, muita gente interessante. Cada um tem sua impressão bastante particular de tudo que viu. Há muito mais que eu poderia falar ou contar da Índia mas, como em tantas outras coisas da vida, nada se compara a viver tudo isso. Minhas impressões são somente as minhas, e cada um que passou pelos mesmos lugares e viu o que eu vi certamente teve uma impressão diferente. Conheci pessoas que passam, há muitos anos, todas as suas férias na Índia, cada vez explorando uma região diferente. Conheci outras que foram uma única vez e juraram nunca mais voltar. Então, só experimentando.
Comecei minha viagem por aquela que viria a ser a parte mais pesada de toda a temporada: a cidade de Mumbai (ou, como ainda é conhecida, Bombaim) e algumas cidades no estado de Gujarat. Mumbai é sem dúvida alguma a cidade mais pobre que já visitei (e já visitei alguns lugares muito pobres no Brasil e em outros países). Uma grande aglomeração urbana, quase 20 milhões de habitantes, favelas em volta de toda a cidade. O trajeto de táxi do aeroporto até o hotel, no centro da cidade, durou quase duas horas, mas não por causa da distância. Não só o carro estava caindo aos pedaços (como, de resto, grande parte da frota indiana) mas, também, a velocidade máxima era prejudicada por um circuito que passava por dentro de algumas das inúmeras favelas da cidade. Um espetáculo degradante de ser assistido da janela do carro. Os olhares das crianças e adultos, pedintes nos sinais de trânsito, ultrapassam, em desespero, dor, fome e miséria todos os muitos olhares com os quais já cruzei. Algumas fotos no livro Êxodos, do Sebastião Salgado, ilustram algumas dessas de Mumbai cenas que não tive a coragem de fotografar.
Saímos de Mumbai e fomos, numa viagem que incluiu trem e ônibus, para a cidade de Bhuj, no estado de Gujarat. Um local tão sem interesse para o turista comum que nos vimos, divertidos, obrigados a tentar explicar a alguns companheiros de viagem por que mesmo é que estávamos visitando aquele estado. Não há infra-estrutura turística nenhuma e imaginamos que, exatamente por isso, poderíamos ter uma noção melhor do país, do povo, das cidades. Já deu para sentir um pouco disso na dupla jornada de trem e ônibus.
O estado de Gujarat é dominado pelo jainismo, uma religião indiana fundada no século VI aC, semelhante ao budismo e que surgiu como uma dissidência do hinduismo. Entre outras características, os jainistas são vegetarianos radicais (não comem nem ovos – a experiência de um omelete sem ovos é inesquecível, acredite sem tentar) . Não é proibido, mas encontrar um lugar que sirva qualquer tipo de carne ou um singelo ovo frito é quase impossível. De vez em quando, descobrimos um bar ou restaurante muçulmano que nos servia alguma dessas sonhadas iguarias, mas a alimentação foi prá lá de precária.
Em uma das incursões que fizemos pelo Gujarat, contratamos um motorista de táxi para nos levar a algumas vilas em torno de Bhuj. No caminho, o motorista, que mal falav inglês, insistiu em nos levar para conhecer um hospital do câncer. Não conseguíamos nos entender para saber a razão dessa insólita visita, até descobrirmos que, na verdade, estávamos visitando um hospital de animais. Moderno, novo, bem equipado, e lá dentro, ao invés de gente, vacas e camelos sendo muito bem tratados, mais bem tratados do que 95% dos indianos imaginaria ser um dia. Uma loucura. Tudo bancado com grana dos jainistas, que têm na proteção aos animais um dos fundamentos de sua religião. O hospital tem ainda um museu que, na verdade, é uma sequência de painéis com uma verdadeira lavagem cerebral em defesa do vegetarianismo, com argumentos sobre por que comer carne é uma violência contra a vida animal, contra a saúde humana e contra a economia do planeta.
No mesmo passeio, pousamos na cidade de Khuj. Em busca de alguma experiência exótica, resolvemos nos hospedar no palácio de um antigo marajá. Fizemos a reserva, sem olhar, e para lá nos dirigimos, para uma propriedade um pouco afastada da cidade. Fui, confesso, imaginando uma hospedagem no estilo dos famosos paradores portugueses e espanhóis. Imaginei cenários principescos, empregados em roupas tradicionais, coisas do gênero. Acabou sendo, de fato, uma estadia fantástica, mas pelo pitoresco da situação. Um marajá decadente, sem dinheiro para bancar as despesas da vida moderna, resolveu alugar uns quartos de seu palácio igualmente decadente, empoeirado, caindo aos pedaços. O jantar foi servido por um empregado descalço, vestido em roupas prá lá de simples, numa mesa velha que mal se equilibrava, coberta, acredite ou não, com uma folha de jornal. A comida foi devidamente servida em uma marmita que, segundo apuramos, é preparada pela esposa do empregado – o único do palácio. Foi hilário, morremos de rir com a nossa expectativa de que, finalmente, íamos ter uma refeição decente em Gujarat.
Sair de Bhuj foi uma outra aventura. As conexões de ônibus e de trens são bastante limitadas, o que nos obrigou a uma estada adicional de dois dias na cidade, simplesmente porque não tínhamos como sair de lá. Chegamos com uma sensação de alívio ao estado de Rajastão, o mais explorado turisticamente na Índia. Apesar dessa sensação, as peculiaridades dessa simpática região nos marcaram ao longo de toda a viagem e, apenas alguns meses após nossa viagem, fomos tomados de profunda tristeza ao ver a cidade de cerca de 100.000 habitantes ser completamente destruída pelo terremoto de janeiro de 2001, que teve em Bhuj seu epicentro. Impossível me conter comparando as fotos que tirei com aquelas que encontrei nos jornais apenas seis meses depois.
Udaipur, nossa primeira escala no Rajastão, é uma cidade bastante charmosa. Com um certo exagero, chamam-na de a Veneza Indiana, talvez em função do belo lago que pode ser avistado dos terraços de diversos hotéis e restaurantes da cidade (um belíssimo pôr-do-sol). Udaipur orgulha-se, ainda, de ter sido o cenário para as filmagens do filme Octopussy, com James Bond, o qual é exibido diariamente, em alto volume, em todos os bares da cidade. Nossa primeira refeição, logo à chegada, foi no nosso hotel, com vista, naturalmente, para o lago que domina a cidade. Ah, a indescritível sensação de comer bem depois dos dias passados em Gujarat. A cidade ostenta ainda suntuosos palácios, remanescentes dos tempos dos grandes marajás.
Alguns desses palácios foram convertidos em hotéis luxuosíssimos, para fazer frente aos gastos de famílias bastante acostumadas ao luxo e pouco afeitas à labuta. Jantei num desses. Esse sim, um verdadeiro palácio, bonito, bem mantido, enorme, lindos jardins, o interior finamente decorado com móveis e quadros da época. Um ambiente tirado das 1001 noites. Mesas espalhadas ao longo da pérgula da piscina, que fica em um pátio do palácio, garçons vestidos em trajes tradicionais, música clássica indiana ao vivo, uma iluminação do tipo ‘volta ao passado’, um serviço de primeira, sem formalidade, e uma comida divina, maravilhosa (ou será que eu é que ainda estava sob o efeito da gastronomia de Gujarat?). O preço do banquete foi um absurdo para os padrões indianos, cerca de 20 dólares por cabeça, o que é mais ou menos 10 vezes superior ao custo médio das minhas refeições na Índia. Mas se voltar só um pouquinho no tempo e lembrar do custo das refeições que eu fazia em Londres, quando estudante, o palácio indiano fica bem baratinho.
O mais engraçado da noite é que passamos no hotel/restaurante apenas para dar uma olhada, recém-saídos de um lindo pôr-do-sol a que fomos assistir no terraço de um castelo que fica no alto de uma montanha próxima a Udaipur. Não imaginávamos ficar para jantar e, por isso, lá fomos vestidos de sandália, camiseta e bermudas, bem mais arrumados que um mochileiro típico, mas certamente distante de todos os outros clientes do restaurante, especialmente os turistas do mundo civilizado vestidos com pompa e circunstância. Resolvemos encarar o jantar e uma mulher na mesa ao lado nos olhava com cara de desdém, quase implorando à gerência para nos expulsarem do restaurante. Rimos muito com a cena. O mais impressionante é que o serviço foi tão bom, descontraído, atencioso e agradável, que duvido que tenha sido melhor para a perua ao lado do que foi para nós.
O estado do Rajastão é, de maneira geral, muito melhor preparado para receber turistas. Não por acaso, encontramos turistas de todo o mundo viajando pelas cidades que visitamos. Apesar de não enfrentarmos as restrições gastronômicas impostas pelo regime religioso de Gujarat, também no Rajastão, além de uma temperatura muito quente e seca, tivemos que lidar com uma dieta completamente diferente. Fomos bastante cautelosos nessa área, no início porque achamos que os padrões de higiene da Índia não eram exatamente similares aos nossos e, depois, porque começamos a ver que, mesmo nos melhores lugares, a comida indiana nem sempre nos batia bem, com o uso excessivo de sua profusão de chilli e curry. Optamos por não economizar com comida, e fomos sempre a restaurantes razoáveis, o que significou mais higiene e mais opções (menos condimentadas). Também no Rajastão era bastante numerosa a quantidade de restaurantes vegetarianos, embora haja uns poucos lugares onde se come galinha ou carneiro (a sagrada vaca, nem pensar). Embora eu tenha me adaptado surpreendentemente bem à dieta vegetariana, havia horas em que eu olhava para aquelas vaquinhas soltas na rua, elas olhavam para mim, eu olhava para elas de novo, e pensava na suculenta picanha que elas escondiam.
As comidas de rua são extremamente tentadoras, bonitas, coloridas, cheirosas, e, por razões óbvias, fiz esforços enormes para me controlar. Um dia, porém, vi num quiosque de rua uma sobremesa maravilhosa que havia experimentado no dia anterior num restaurante. Não resisti, encarei, e o resultado não podia ser outro: o doce da rua era muito melhor que o do restaurante. Também na rua tomei, por diversas vezes, o delicioso lassi, um refresco à base de iogurte, bem gelado, apropriado para o calor indiano. Não era exatamente a mais segura opção de bebida, mas o delicioso sabor suplantava todos os meus medos.
Uma das coisas mais difíceis para a adaptação à Índia foram os preços de tudo que consumíamos. A comida era sempre baratíssima. Mesmo optando por melhores restaurantes, nas cidades mais caras, uma boa refeição nunca saía por mais de 5 dólares. Quaisquer serviços que usássemos – táxi, costureira, correios – sempre nos surpreendiam pelos baixos custos. Em Jaipur, uma cidade grande, fui cortar o cabelo. Um lugar antigo, pequeno, mas limpinho, recomendado pelo dono do hotel em que nos hospedávamos. Havia toalhas limpas, lâminas novas, tudo no maior estilo. Um corte de cabelo legal, não muito diferente do que eu teria em Brasília ou em Londres. Ao fim, uma massagem facial completa, que incluiu couro cabeludo, cabelo, face, pescoço, ombros, braços e início da coluna. O preço? Tudo isso pela bagatela de 60 centavos de dólar. Impressionante.
Optamos também por ficar em hotéis razoáveis, menores, acolhedores, longe do barulhento centro das cidades indianas. Um mínimo de conforto era importante, pois as viagens eram sempre muito cansativas. Mas, em termos de preços, isso não quer dizer muito. As diárias dos hotéis em que nos hospedamos, todos com banheiro privativo, eram sempre em torno de 10 dólares, às vezes bem menos, às vezes um pouco mais.
Em muitos momentos, perdemos totalmente a noção de preço, e é nessas horas que fica difícil o processo de comprar qualquer produto ou serviço que não tenha preço fixo, dada a expectativa de que turistas e indianos participem de um irritante e permanente jogo de barganha. O melhor exemplo é o uso dos rickshaws, aquelas lambretinhas de três rodas que são o meio de transporte típico nas estreitas ruelas das cidades indianas e em oturas cidades asiáticas (também conhecidos como tuc tuc). Para nós, estrangeiros, o preço era sempre mais alto e, a cada cidade, antes de se ter uma noção do custo das corridas, tínhamos que passar por um processo altamente cansativo. Toda vez que pegávamos um (e eram vários no dia), tínhamos que discutir o preço, barganhar, argumentar. Naturalmente, os valores em discussão eram irrisórios, sempre em torno de 50-60 centavos de dólar, mas se deixarmos, seremos sempre explorados pelos motoristas. Ao final, já estávamos acostumados com alguns preços e ficava mais fácil negociar e discutir, mas isso não tirava o aborrecimento e a irritação de cada negociação. O problema disso era quando nos pegávamos, às vezes, barganhando por valores ridículos. Numa dessas vezes, fui tomar um rickshaw que me pediu 30 rupias por uma corrida que eu sabia valer 20. Como estava de noite, resolvi oferecer 25, e aí iniciou-se a barganha. Então me dei conta de que eu estava discutindo por cinco rupias, o que significavam cerca de 10 centavos de dólar. É nessas horas que batia a tal da consciência social, sem que eu soubesse o que fazer com ela. Para essas pessoas, essas cinco rupias tinham profundo significado no faturamento do dia, era parte da luta diária pela sobrevivência, enquanto para mim não só esse valor não significava nada como, também, me era difícil apreender o significado desse valor na vida daquelas pessoas.
Por muitas vezes, nem queríamos discutir os valores, embora soubéssemos estar pagando duas ou três vezes o valor que um indiano pagaria pelo mesmo serviço. A situação de extrema pobreza da Índia afetava muito do que fazíamos e a maneira como nos comportávamos. Por isso, acabávamos por nos envolver com aqueles indianos que diariamente se engalfinhavam para conseguir uns trocados, e ficávamos cada vez mais generosos com gorjetas e menos exigentes nas negociações. Para essas pessoas, conseguir uma corrida de rickshaw, vender uma calça ou até mesmo uma simples garrafa de água mineral pode significar a diferença do dia. É impossível ficar indiferente ao que se vê na Índia, assim como eram inevitáveis as crises de consciência ao vermos tanta miséria e não podermos fazer nada. Mas, para mim, isso não era privilégio da minha estada naquele País. De maneira diferente, frequentemente sinto o mesmo no Brasil, um constante incômodo com o absoluto disparate das desigualdades sociais que não são jamais aplacadas e para as quais não vejo qualquer perspectiva de solução.
A comparação com o Brasil não chega a ser justa. A pobreza aqui impressiona mesmo a um brasileiro, tão acostumado com isso no dia-a-dia. A Índia é um país que tem alguns dos grandes cérebros do mundo, mas tem uma taxa de alfabetização em torno de 50%. Tem grandes fortunas individuais, mas 3/4 das crianças sao subnutridas. A pobreza é tanta e tão aparente que a riqueza fica diluída, escondida, nao se vê. Diferente do Brasil, onde a pobreza e a riqueza se vêem com mais facilidade. A pobreza na Índia é tanta que se criou um sui generis sistema para geração de empregos, que se manifesta numa burocracia enorme para tudo: tudo que se faz no setor público – correios, estações de trem – envolve mais pessoas do que o necessário. Se for para analisar pelo lado da eficiência, ter que preencher um formulário com seu nome, endereço no Brasil, número do passaporte, etc, apenas para comprar um bilhete de trem, a coisa parece absurda. Mas quando se pensa que aquele formulário vai passar por umas 5 ou 6 pessoas até você ter o bilhete na mão, são 5 ou 6 empregos a mais, então faz sentido.
Enquanto estava na Índia, e vítima desses sentimentos de estupefação, não resisti a fazer algumas comparações entre Índia e Brasil. Com dados colhidos em alguns sites na Internet (dados de 2000), observei que, em termos absolutos, a Índia é tão rica quanto o Brasil. A diferença é uma população quase seis vezes maior, de cerca de 1 bilhão de pessoas. O Brasil não seria muito diferente da Índia com essa população. Na Índia, a miséria está presente o tempo todo, em todos os lugares. E não existem, como no Brasil, os shopping centers, que são os lugares escolhidos pelos brasileiros para se esconder da pobreza. Na Índia, simplesmente não dá para se esconder da pobreza.
A Índia tem menos da metade do tamanho do Brasil mas quase seis vezes a nossa população. A expectativa de vida nos dois países é a mesma. Na taxa de alfabetização, estamos melhores, 83% no Brasil contra 52% na Índia. A diferença é que no Brasil a taxa é a mesma para homens e mulheres, enquanto na Índia é de 65% para os homens e de 37% para as mulheres. Um emblemático retrato das desigualdades entre homens e mulheres no país. Minha maior surpresa foi verificar que a Índia tem um Produto Nacional Bruto (PNB) 80% maior do que o brasileiro. Além disso, enquanto a economia brasileira cresce a cerca de 1% ao ano, a indiana cresce a cerca de 5,5% ao ano. Por causa da diferença no tamanho da população, contudo, o PNB per capita do Brasil é mais de três vezes superior ao da Índia.
Embora a Índia tem muito mais pobres do que o Brasil – 35% dos habitantes vivem abaixo da linha de pobreza, contra 17% no Brasil –, quando se fala de distribuição de renda, somos então mundialmente imbatíveis: nossos 10% mais ricos concentram absurdos 48% das riquezas nacionais, enquanto na Índia os 10% mais ricos concentram apenas 25%. Nossos 10% mais pobres concentram míseros 0,8% das riquezas, enquanto os 10% mais pobres da Índia concentram 4,1%. São dados para se pensar quando se fala em pobreza. Embora chocado com a pobreza na Índia, dá para ver que é um país quase todo pobre. Já o Brasil, é um país rico mas com um povo miserável.
O principal efeito da pobreza disseminada na Índia é uma economia informal, na qual todos lutam desesperadamente por qualquer centavo de dólar que algum turista possa deixar. Em especial nas cidades mais turísticas, a competição é selvagem. E aí vale tudo, pedir mais pelo preço das mercadorias e serviços, levar turistas para hotéis e lojas em troca de comissões, pequenos golpes. Toda hora, na rua, sempre há os 'amigos', que te saúdam, perguntam seu nome, seu país de origem, e te acompanham por horas tentando te convencer a entrar numa loja ou a ir para um determinado hotel.
A saudação às vezes faz parte do assédio, mas às vezes é apenas um gesto natural, de hospitalidade e de carinho. O país de origem é uma das primeiras perguntas que nos fazem. Quando respondo Brasil, a primeira associação é sempre o futebol. Dependendo da idade do interlocutor, as referências são Pelé, Romário ou Ronaldo. Alguns desavisados fizeram associações, para meu desgosto, com Maradona e Batistuta. Outras associações recorrentes sao as queimadas na Amazônia, as mulheres nuas no Carnaval e as crianças de rua. Nada muito diferente da imagem do Brasil que se tem no ‘primeiro mundo’.
Os pequenos golpes na Índia sao fantásticos, hilários. Para quem estava bem informado, como nós, que havíamos lido com antecipação como funcionavam as coisas, dava para escapar. Mas os desinformados são presas fáceis. Os mais divertidos são os dos motoristas de rickshaw. Quando se pede para ir a um hotel, eles sempre te sugerem um outro. As argumentações sao das mais interessantes: o dono do hotel morreu semana passada numa acidente terrível, o hotel foi fechado pela polícia, o hotel (para o qual você já fez reserva) está lotado, o hotel é muito caro e está decadente. Conseguir que eles te levem ao hotel desejado requer às vezes um tom de voz mais elevado e, em um caso extremo, tivemos que contratar um outro motorista. Um momento fantástico foi a nossa chegada em Nova Déli, na estação de trem, quando os motoristas de táxi e de rickshaws queriam nos cobrar, quase em cartel, a absurda quantia de 250 rupias para nos levar até o nosso hotel. Não sabíamos onde ficava o hotel, mas nossa noção de preço na Índia nos dizia que o preço era absurdo. Depois de muito trabalho para conseguir alguma informação confiável, descobrimos que o hotel ficava a não mais do que três minutos, a pé, de onde nos encontrávamos.
Lidar com a pobreza indiana é um processo diário e permanente, às vezes bem irritante. Há o assédio dos comerciantes, há os golpes, mas há ainda as crianças que pedem dinheiro, comida ou até canetas na rua. E há também as mulheres com crianças nos braços, que te seguem na rua por horas até conseguir alguma coisa. O assédio diário é constante, aborrece, mas depois de me desvencilhar dessas pessoas, eu acabava carregando comigo o profundo olhar de desespero, de tristeza, de fome ou de desesperança que cada uma trazia consigo. É um olhar profundo como jamais vi, um olhar que não se vê nos pobres no Brasil ou em outros lugares por onde andei. Um olhar que fica, que incomoda, que dói. Que vai com você.
Um aspecto interessante da pobreza na Índia é que, ao contrário do que aconteceu em países como o Brasil, ela nao descambou para os elevados índices de violência urbana que se vê na maioria das grandes metrópoles dos países em desenvolvimento. Uma das coisas que tem mais me assustado no Brasil é como o aumento da pobreza e das desigualdades de renda tem gerado uma violência assustadora. Aqui na Índia, com exceção de pequenos golpes contra turistas, que são usuais, a taxa de crimes, roubos, assassinatos e coisas do gênero é muito baixa, quase não se ouve falar. Há, naturalmente, inúmeras razões de ordem religiosa e da estrutura social na Índia para explicar isso, mas fica difícil explicar o que faz o Brasil tão violento em condições de pobreza mais amenas do que as encontradas na Índia.
O lado mais perverso do constante assédio que sofremos nas ruas da Índia é que passamos a olhar com suspeição todos os indianos que se mostram amigáveis e, com isso, cometemos lamentáveis enganos. Há milhares de crianças que vinham nos saudar apenas para treinar seu básico vocabulário de inglês, especialmente quando andávamos em áreas menos turísticas. Aliás, criança é uma coisa fantástica em qualquer lugar do mundo. Quando ainda não contaminadas pela maldade, as crianças provocam as mais absolutas sensações de prazer que se possa ter numa viagem. Indescritíveis as inúmeras cenas das crianças que vinham nos saudar, nos perguntar o nome, ou apenas falar um ‘oi’ para gastar o inglês. Genuína pureza infantil.
O problema é que ficamos tão na defensiva com os 'tipos' indianos que, quando uma criança vinha, já ficávamos armados esperando os pedidos de dinheiro, comida ou a sugestão para nos levar a alguma loja em particular. Em Bikaner, um jovem de 16 anos se apresentou e puxou papo conosco. Andou pelas ruas com a gente, ajudou na negociação de um táxi que contratamos para um passeio, foi no táxi conosco, passou todo o dia com a gente, conversou sobre tudo, futebol, cricket, política, religião, ajudou-nos na compra de bilhetes de trem, e eu, durante todo o dia, fiquei armado contra ele, esperando o golpe que viria, no final, ao nos cobrar pelos serviços prestados. Quando, ao fim do dia, ele apenas me deu o seu endereço me pediu para mandar um postal do Brasil para sua coleção, fiquei de coração partido. É triste, mas esse é o resultado das experiências que vivemos. Mas há na Índia pessoas genuinamente amigáveis, que apenas adoram conversar com estrangeiros, e que encontramos com frequência em trens e ônibus.
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O misticismo e a religiosidade da população é algo que extrapola a capacidade de compreensão de um viajante em apenas um mês. Sao milhares de templos de várias religiões, predominantemente hindus, mas também muçulmanos, budistas, jainistas. São vários deuses, templos, religiões. Há algo de fascinante nesse caldeirão religioso que é a Índia, mas há também coisas que nos chocaram, como o caráter sagrado de alguns animais. Em Bikaner, fomos visitar um templo dedicado aos ratos. Entramos no templo, descalços, como faríamos em qualquer outro templo, e lá nos deparamos com centenas de ratos que não apenas circulam livremente, mas são também adorados e alimentados pelos visitantes. Ter um rato passando sobre o seu pé é sinônimo de benção, mas felizmente eu escapei da graça de ser abençoado pelos ratinhos. Saí do templo, após algum tempo, completamente enojado com os meus pés sujos daquela mistura de fezes, urina e comida de ratos no chão. A única coisa que eu queria era voltar ao hotel e lavar bem os pés, mas não pude deixar de carregar comigo as imagens marcantes daquele templo, como a do homem deitado de bruços no chão do templo, rezando, ou da mulher que passava a mão no chão e, com a mesma mão, abençoava a si mesma e à sua criança de colo.
Ainda na área religiosa, as vacas constituem um capítulo à parte. Animais sagrados por excelência, após um mês inteiro na Índia não consegui me acostumar com elas ou com o tratamento a elas dispensado pelos indianos. Elas estão em todos os lugares, nas ruas, até nas grandes cidades, nas lojas, nas praças, nas casas. Sempre buscando algo para comer e, como não há muito, o que elas mais comem é jornal, cartolina e plástico. Em uma das estações de trem em que estivemos, as vacas andavam placidamente pela plataforma. Quando um trem chegava, botavam as cabeças pelas janelas ou portas, na espera de um agrado de algum passageiro. Um boi entrou no local onde se vendiam os bilhetes e instalou-se no chão, completamente dono do pedaço. É, de fato, uma relação inacreditável de uma população de 1 bilhão de pessoas com um animal. A Índia tem o maior rebanho de gado do mundo, mas a população morre de fome, pois as vacas sao intocáveis.
Nesta viagem, acabei nao tendo a chance de visitar Varanasi, a sagrada cidade que os hindus escolhem para morrer a fim de se livrar de seus carmas. Os relatos que já ouvi sao de impressionar e ninguém sai de lá sem ficar profundamente marcado pela experiencia. São corpos agonizantes pelas ruas, fornos de cremação espalhados pela cidade e as cenas mais chocantes são as dos corpos dos defuntos, simplesmente jogados no sagrado rio. Os corpos flutuam no mesmo rio em que os adultos se banham para purificar-se ou onde as criancas brincam inocentemente.
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Viajar pela Índia exige paciência e disposição física. Utilizamos todos os meios de transporte disponíveis, com exceção do avião, que poderia ser uma solução em alguns trechos mais longos. Como nossos trechos foram, essencialmente, curtos, optamos por fazer uma mistura de trens, ônibus, táxis. A Índia tem uma fantástica rede de trens, que possibilita ao turista e aos indianos viajar por todo o país de trem (uma importante herança da colonização britânica). O sistema é totalmente computadorizado, organizado e, por isso, andar de trem acaba sendo a melhor opção na Índia, apesar da extrema lentidão das viagens nos obsoletos trens. Os custos são bem baixos, mas não é, também, o que eu chamaria de uma viagem confortável. Utilizamos, algumas vezes, a primeira classe, na maioria fomos na segunda e, às vezes, nas viagens curtas, fomos com o povão, na econômica (ou terceira). Nessa última, não há lugares marcados, é um salve-se quem puder, mas é exatamente aí que surgem as melhores oportunidades de encontrar e conversar com gente interessante.
Havia trechos, porém, em que não dava para viajar de trem. Aí o jeito era apelar para o ônibus. Há dois tipos de ônibus, os estatais e os privados. Os estatais sao umas latas velhas, antigas, caindo aos pedaços. Cinco assentos por fileira, mais um corredor estreito, que é invariavelmente ocupado pelos excedentes. Nos privados, que sao ironicamente chamados de 'luxo', a diferenca é um pouco mais de conforto, com apenas 4 assentos por fileira. Também no ‘luxo’, os assentos e os corredores são frequentemente tomados por famílias inteiras, com crianças e, não raro, galinhas soltas. Mas o melhor mesmo é a 'classe superior'. São os passageiros que, depois de assentos e corredor completamente tomados, viajam no teto do ônibus, no lugar em que deveriam ir as bagagens. Uma cena impressionante. Contudo, impressionante mesmo é a cena do cobrador que, com o ônibus em movimento, passa por cima de dois passageiros sentados, sai por uma das janelas e passa para o teto do ônibus a fim de cobrar o bilhete dos que estao em cima. Impagável.
Nao há paradas regulares para banheiro, apenas aquelas para pegar e deixar passageiros. É quando homens e mulheres saem correndo para, nesse curto intervalo, urinar na parede mais próxima. Para as mulheres é mais complicado, não consegui descobrir como elas resolviam esse problema. Nas viagens longas, de 5 a 6 horas, vivi esse suplício várias vezes, até porque, com o forte calor, eu tomava muita água. Numa dessas paradas, saí correndo, na frente de todo mundo e quando já havia achado uma parede para fazer o meu xixi, levei uma bronca danada de um indiano que me mostrava um mictório público perto da parede. Vexame! Uma outra viagem inesquecível, embora de apenas meia hora, foi a mais divertida. O embarque no ônibus consistiu de mais de 80 pessoas tentando entrar ao mesmo tempo por uma única porta: crianças, mulheres com bebês, velhos e velhas, galinhas. Acabamos não conseguindo sentar, pois ao entrar vimos que as poucas pessoas que entraram na nossa frente multiplicavam seus braços e pernas para ocupar vários assentos para os membros da família que ficaram para trás.
Em outras situações, optamos por alugar um táxi ou carro com motorista, uma opção que, muitas vezes, mostrou-se bem interessante e não tão cara. Uma ótima alternativa para fazer pequenos trechos entre duas cidades ou para visitar uma região em que queremos ter liberdade para parar onde quisermos no nosso próprio ritmo. Os preços acessíveis nos permitiriam fazer mais dessas ‘extravagâncias’ mas, com isso, perderíamos a maravilhosa chance de conhecer a Índia que se conhece num ônibus lotado ou na terceira classe de um trem. O maior problema dessa opção, que se aplicava também aos ônibus, era vencer o medo das terríveis estradas indianas e dos alucinados motoristas que as ocupam. E ainda tem gente que tem medo de avião.
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Ao fim de um mês de viagem, vimos de tudo um pouco, embora tenhamos percorrido apenas uma pequena fração do território indiano. Há tanto mais que se ver. Estivemos em áreas bem turísticas e visitamos locais nos quais duvido que algum turista tenha jamais pisado o pé. Em comum a quase todos os lugares que visitamos, a presença de uma história milenar. Como também é comum a quase todos os lugares o lamentável estado de conservação de monumentos como fortes, palácios, casas e edifícios, cheios de história mas abandonados pelo Governo. O preço dos ingressos é sempre ridículo, mal deve dar para pagar o salário do porteiro (e para os indianos o preço é, com razão, ainda mais baixo). As exceções são os palácios que continuam em domínio privado, com os herdeiros dos marajás (ou com os próprios). Alguns estão em perfeito estado de conservação, transformados em museus, hotéis ou restaurantes, e com preços à altura não só dos custos de manutenção mas, também, das necessidades dos decadentes marajás e suas famílias. Na área do governo, apenas o Taj Mahal é exemplarmente cuidado, mas às custas de uma exorbitante entrada de 20 dólares.
Vimos muitos monumentos maravilhosos, mas nao dá para falar da Índia sem falar no Taj Mahal, a atração turística principal do país. Minha visita ao Taj Mahal foi sob o peso de uma pesada diarréia, o que naturalmente tira o prazer de qualquer visão e te põe mais preocupado em localizar o banheiro mais próximo do que em admirar a beleza do monumento. Apesar disso, o Taj é de fato magnífico, perfeito em cada detalhe. A estória de sua construção é tão interessante quanto o prédio em si. Um marajá que perdeu a esposa durante o parto do filho quis construir o mais belo palácio para abrigar o corpo da mulher. O palácio levou 20 anos para ser construido, quase 20.000 pessoas trabalharam no projeto, os mais famosos artistas do mundo foram recrutados. Ao fim da construção, muitos operários tiveram os braços amputados para jamais poderem repetir obra tão magnífica. A cota de ironia fica por conta do golpe de estado aplicado pelo próprio filho do marajá que, ao depor o pai, encarcerou-o no Forte de Agra, de onde o marajá podia observar o Taj Mahal pela minúscula janela de sua cela. Quando ele morreu, foi tambem enterrado no palácio, ao lado de sua esposa.
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A India é uma viagem do tipo 'ame ou odeie', mas há opções para todos os gostos, para todos os estilos de viajantes (até para quem quiser ir apenas à praia). Dá para viajar só pelo circuito mais conhecido, com melhor infra-estrutura de hotéis e restaurantes, movendo-se de avião de uma cidade para outra, como também dá para viajar muito com orçamento bastante inferior ao nosso. Essa variedade de opções reflete-se na variedade de tipos que encontramos em nossas andançaas. Desde senhores e senhoras distintos, até bichos-grilos de todas as origens. Eu e meu amigo ficamos numa categoria intermediária, longe de sermos os típicos mochileiros, mas também longe de sermos viajantes tao distintos, dos quais os japoneses são os mais típicos e extremados representantes. Interessante é que cada um faz a sua própria viagem na Índia. Cada figura que encontramos pelo caminho dava, por si só, um livro. Gente viajando sozinha, em grupos, casais, duplas ou trios de mulheres, de homens, hippies, velhinhos aposentados, muita gente interessante. Cada um tem sua impressão bastante particular de tudo que viu. Há muito mais que eu poderia falar ou contar da Índia mas, como em tantas outras coisas da vida, nada se compara a viver tudo isso. Minhas impressões são somente as minhas, e cada um que passou pelos mesmos lugares e viu o que eu vi certamente teve uma impressão diferente. Conheci pessoas que passam, há muitos anos, todas as suas férias na Índia, cada vez explorando uma região diferente. Conheci outras que foram uma única vez e juraram nunca mais voltar. Então, só experimentando.
2 comentários:
Djan, F.
Nessa viagem de tantos 'sabores' e 'dessabores' pude ver o quanto o seu olhar para tudo o que se passava era sensível e humano, aniquilando estereótipos para aqueles que sonham em fazer uma viagem à Índia ao estilo "Índia Mística em 15 dias".
Você conseguiu condensar nessa viagem 5000 anos de história daquele país.
Adorei a parte que você escreve sobre a vontade de comer as vaquinhas e aquele olhar penetrante entre vocês, rs.
Namastê,
"Menina Deliciosa"
Fernando,
Fantástico o seu relato, você consegue passar não só a beleza dos locais visitados como, e prinicpalemente, as emoçoes que sentiu, com tanta precisào que a gente se ve transportado para o lugar.
Você deve escrever um livro de experiencias de viagem
abraço
Sylvia Yano
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