Minhas melhores viagens são sempre aquelas para as quais minhas expectativas eram mínimas ou para as quais eu me preparei muito pouco. Como me desiludir quando não há ilusões? Quanto mais me preparo e conheço sobre o lugar, quanto maiores minhas expectativas, maiores as chances de frustração. Pude me preparar muito pouco para a viagem a Portugal, que aconteceu imediatamente após o período de aulas da LSE. Não sabia exatamente o que esperar e mal tive tempo de folhear um guia de viagem para saber o que ou como fazer. Apenas reservamos, eu e meu amigo Nicola, hotel para três dias em Lisboa e um carro para viajarmos pelo país após os três dias na capital.
Ir a Portugal foi a oportunidade de perceber um pouco de tudo que nós brasileiros somos. De enxergar as raízes do que temos de bom e de ruim. De rir com muitas coisas que pareciam fazer parte apenas do nosso anedotário, mas que, descobri, fazem parte de uma lógica portuguesa muito particular. De perceber um processo de colonização às avessas, representado pela nossa música e nossas novelas altamente presentes na cultura portuguesa, o que faz com que muitas de nossas expressões já tenham sido absorvidas e sejam usadas normalmente pela população. De surpreender-me com o nível de desenvolvimento de um país que, apesar de ser o segundo mais pobre da Europa, encontra-se em fase de alto crescimento impulsionado pelos recursos da União Européia. De fazer inevitáveis comparações entre a eficiente infra-estrutura turística de Portugal, que contempla história, montanhas, praias com qualidade para turista nenhum colocar defeito, e a histórica incapacidade de o Brasil fazer valer sua vocação para o turismo. De comer os maravilhosos doces portugueses (invariavelmente de ovos), presentes em uma tentadora pastelaria a cada esquina. De perceber que, ao contrário do que pensava, o carinho dos portugueses com os brasileiros é grande, o que pude sentir em praticamente todos os contatos que fiz. E, finalmente, de surpreender-me com a pobreza do preconceito que alguns brasileiros nutrem em relação a Portugal e aos patrícios.
A viagem me colocou em contato com sensações que iam sendo esquecidas na minha estada em Londres. Depois de tanto tempo vivendo em 'inglês', foi bom viver um pouquinho em 'português'. Foi uma sensação nova estar num país estrangeiro e falar a minha própria língua. Tudo parece ficar tão mais fácil do que usar o inglês mundo afora, não importa o grau de fluência que se tenha. Tanto tempo em Londres me desacostumou não só da minha língua, mas de prazeres básicos, como andar de bermuda e camiseta e usar óculos escuros. O tempo estava maravilhoso em Portugal, muito sol, céu azul. Numa visita a um castelo, no meio de uma floresta, pude novamente andar no mato, sentir o cheiro de terra, de árvores, de chão molhado. Num restaurante de Lisboa, nas Docas de Santo Amaro, comi uma picanha maravilhosa, daquelas sangrentas que se come no Brasil. São esses prazeres básicos, simples, que, de tão simples e básicos, parecem fáceis de serem esquecidos, até o momento em que se tem a chance de vivê-los novamente, e aí a gente se pergunta ´como é que eu tava dando conta de viver sem isso?’.
Meu companheiro de viagem, Nicola, foi uma boa companhia, embora sejamos diferentes em muitas coisas. Tem um bom gênio, é tranqüilo e nossas diferenças não chegaram a causar conflitos (sempre um risco em situações de convivência tão intensa). Eu gosto de conversar, falar, filosofar, ele já é mais fechado. Ele gosta de ver televisão, até mesmo as novelas brasileiras que passam em Portugal. Eu não sinto fome, ele adora comer. Um dia brincamos dizendo que se ele pudesse ficar em casa vendo televisão e apenas solicitar pelo telefone comidas de países diferentes, suas ânsias de viagem estariam satisfeitas. Ele é daqueles que têm fome ao meio-dia, quer sentar num restaurante, almoçar, entre quatro paredes, somente para satisfazer esse primitivo instinto, enquanto o sol brilha lá fora e ruelas, ruínas, museus e monumentos imploram para ser explorados. Tanto ele quanto eu acabamos cedendo em muitos momentos, condição básica de convivência numa viagem longa. Ele tem bom humor, é flexível e topava qualquer programa, embora seja de natureza mais urbana e eu um pouco mais bicho do mato. Iniciada a viagem, eu devorava as informações dos livros e guias de Portugal, enquanto ele deixava muita coisa na minha mão e ia no rastro. No geral, viajamos muito, conhecemos muitos lugares, tomamos muito vinho, comemos muitos doces e salgados, rimos muito. Um viagem a dois – ou em qualquer número maior do que um - exige concessões e o saldo final da viagem foi muito bom.
Nosso esquema estudantil incluía hospedagem em lugares mais simples, quartos sem banheiro, casas de família. Não importa quão simples fosse a hospedagem, porém, destacavam-se a limpeza imaculada, os lençóis e toalhas sempre novos, branquíssimos, trocados todos os dias, e um atendimento quase sempre familiar, agradabilíssimo. Para mim, essa opção foi bem mais prazerosa do que se pudéssemos – e quiséssemos – ir para hotéis mais caros, maiores e, conseqüentemente, mais impessoais.
Nossa viagem começou em Lisboa, onde ficamos hospedados numa deliciosa pensão no centro da cidade. Uma cidade charmosa, cheia de encantos e de opções. Animadíssima vida noturna, os bares ecoando a dor-de-cotovelo dos fados, os cafés e restaurantes. Um banho de história, as casas com lindos painéis de azulejos, os monumentos, o bairro de Belém com a famosa torre que cresci vendo nas latas de azeite, os magníficos pastéis de nata, o eficiente sistema de transportes, que mistura bondes antigos à modernidade do metrô e de ônibus com ar condicionado. Lisboa é, a um só tempo, uma cidade tradicional e moderna, pequena e grande, provinciana e metropolitana.
Em Lisboa, a situação mais surreal da viagem. Nicola passou mal na primeira noite, após empanturrar-se de lulas recheadas. Fomos parar num hospital público que muito nos surpreendeu pela rapidez e qualidade do atendimento, pelo bom humor e prestatividade de todos. Mas o melhor aconteceu na sala de espera, onde ficavam os pacientes que aguardavam para serem atendidos e os familiares dos que estavam sendo atendidos. Como Nicola ficou na enfermaria tomando soro por umas quatro horas, fiquei lendo meus guias de viagem na sala de espera. Por volta de meia noite, a sala estava quase vazia. Havia uma televisão na qual eu passava os olhos de vez em quando, mas como só havia coisas desinteressantes, voltava à minha leitura. Numa dessas passadas de olhos, espantei-me ao ver uma cena de sexo, mas pensei que apenas fosse um trecho mais picante de alguma novela brasileira. Mas não, era um filme, e imaginei que fosse apenas um filme com cenas eróticas. Não, não era um filme erótico. Era um verdadeiro filme pornô, daqueles X-rated, com cenas de fazer corar até os menos inocentes. Era inacreditável! Olhei em volta e vi duas velhinhas inocentes cochilando nas cadeiras. A maioria dos doentes cochilava. Um, com a cabeça ensangüentada, parecia estar bastante motivado com o filme, dada a cara de interesse com que o assistia. Um velhinho acordou e, ao levantar os olhos para a televisão, tomou um susto e mudou de lugar, com cara indignada. Eu observava e morria de rir ao presenciar essas antológicas cenas em plena sala de espera de um hospital público. Imagino que tenha sido algum canal de TV a cabo que acidentalmente foi ligado sem ninguém da administração perceber. Só mesmo em Portugal uma coisa dessas.
Com o carro que alugamos em Lisboa – o mais barato disponível – fomos para Sintra, onde nos deleitamos com alguns monumentos lindos, em particular um castelo no meio da floresta que me trouxe saudades de andar no mato. Depois, fomos para Évora, uma charmosa cidadezinha com catedral, templo romano, um simpático restaurante num antigo palácio, casas antigas bem conservadas, uma linda universidade e, por fim, um dos pontos altos de toda a viagem, a impressionante capela dos ossos. Por incrível que possa parecer, numa igreja da cidade foi construída uma capela com a utilização dos ossos e crânios de 5000 cadáveres. Entrei na capela, vi aqueles ossos e crânios revestindo as paredes, e não pude evitar entrar em contato com a morbidez daquele lugar, que eu não conseguia entender por mais que me explicassem o seu significado. Saí de lá com a energia bem baixa e sem gostar muito da estranha inscrição no portal da capela: “nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.
De Évora fomos a Marvão, outro ponto alto da viagem. Uma cidadezinha no alto de um morro, com cerca de 500 habitantes. Casas imaculadamente brancas, vistas maravilhosas dos arredores, especialmente a partir do castelo no topo da montanha. A vida parece ter parado em Marvão. Fiquei andando pela cidade, me perdendo nas poucas ruelas, tomando licor caseiro num bar vazio, e saí de lá completamente renovado, tomado de amor por aquele pedaço de história congelada. Antes de sair porém, numa lojinha da cidade, uma artesã lisboeta, moradora de Marvão desde que por ela se apaixonou, falou-nos tão bem de uma cidade que não estava no nosso roteiro que decidimos incluí-la, e foi assim que fomos parar em Monsanto, uma cidade literalmente do tempo da pedra, com um jeitinho de cidade fantasma. Casas de pedra, ruas de pedra, casas construídas dentro da pedra, castelo de pedra (no alto de um morro, novamente vistas maravilhosas). Nada era pintado, tudo em pedra natural. Um cenário primitivo, encantador, daqueles que te fazem viajar no tempo. Por mim, pernoitava ali, mas Nicola se sentiu deprimido no meio daquelas pedras todas e fomos dormir na cidade mais próxima.
Nosso próximo destino foi a Serra da Estrela, um parque nacional famoso pelos esportes de inverno. Até então, eu não estava familiarizado com a diversidade de climas e de cenários de Portugal, e por isso foi delicioso sair do nosso roteiro quente e ensolarado para dirigir por cerca de três horas num cenário de neve por todos os lados. Paramos, brincamos com a neve, apreciamos aquela imensidão branca à nossa volta, os olhos doíam de tanta claridade e se deslumbravam com o fascinante contraste de cenários a que éramos expostos. A fascinação continuou quando, ao sairmos da Serra da Estrela, fomos parar em Aveiro, uma cidade com um toque ´holandês´, com seus canais e barcos no centro da cidade, algumas ruelas antigas com casas lindas pintadas em tons pastéis de várias cores e um restaurante maravilhoso onde tivemos a melhor refeição da viagem, um pargo assado do qual só sobraram as espinhas.
Chegamos por fim à cidade do Porto, onde nos hospedamos na casa dos tios de Aneesa, uma amiga indiana, colega de curso na universidade em Londres. Porto, apesar de maior do que as vilas que andamos visitando, conserva o charme de um vilarejo. Numa visita a um palácio da cidade, conheci um senhor do norte de Portugal, um pequeno produtor de vinho do porto. Conversamos muito e ele me deu uma aula de vinho do porto que só acrescentou ao meu prazer de ficar entrando em botequinhos a cada esquina e tomar doses desse vinho maravilhoso, agora sabendo a diferença entre um ruby, um tawny, um vintage, um branco.
Do Porto, Aneesa se juntou a nós e fomos a Coimbra, que se revelou uma decepção, a despeito da quantidade de relatos que frequentemente ouço sobre a cidade, o que só prova que cada experiência de viagem é única. Exceto pela universidade antiga, muito bonita, a cidade não tem charme nenhum (foi a nossa impressão comum). Então, nós que pensávamos em dormir na cidade, resolvemos continuar a viagem e eu aproveitei a chance para incluir algumas cidadezinhas que eu queria visitar mas que o tempo parecia não permitir. Visitamos duas cidades vizinhas, Batalha e Alcobaça, cada uma com um monastério excepcionalmente grande e bonito, ambos resultados de promessas feitas por conquistadores portugueses em tempos passados, em que se ofereciam templos em troca de favores do céu. Embora os templos tenham sido usados para todos os tipos de abuso por ordens religiosas nos séculos XII e XIV respectivamente, o resultado arquitetônico é impressionante e monumental.
Nossa última noite em Portugal foi em Óbidos, e a viagem não poderia terminar de maneira mais brilhante: uma cidade medieval totalmente cercada por muralhas em perfeito estado de conservação. Pode-se caminhar por cima das muralhas, contornando toda a pequena cidade. De cada trecho da muralha, uma vista diferente da cidade, com seus terraços, seus balcões floridos, seus gatos preguiçosos, suas ruelas estreitas, suas árvores frutíferas. Dormimos num quarto de uma casa que tem uma vista linda para a cidade e para a igreja principal. A estada só não foi perfeita porque eu, na ânsia de fazer de meu último jantar uma refeição especial, pedi um peixe recomendado pela casa, uma espécie de carro chefe do restaurante. Apenas me esqueci de perguntar se o escaldante molho que o acompanhava incluía o proibido camarão, ao qual sou alérgico. Resultado: comi peixe puro pagando pelo camarão. Para compensar, na sobremesa, escolhi um doce que me parecia maravilhoso, mas descobri, desolado, que o intragável café, que detesto, com sabor e cheiro acentuados, era o ingrediente principal da sobremesa. Ainda bem que eu tinha chocolate no quarto do hotel.
Um episódio interessante em Óbidos foi a conversa com a única funcionária do hotel em que nos hospedamos, uma espécie de faz-tudo . Ao referir-se às diversas nacionalidades de turistas que visitam a cidade, disse-nos que os brasileiros são os mais difíceis de se lidar. Satisfez a nossa curiosidade ao explicar que, em geral, os brasileiros têm mania de comportar-se com ela com uma familiaridade e uma intimidade que não existem – meses mais tarde eu ouviria semelhante reclamação em um restaurante português em Paris. Disse ela, ainda, que os brasileiros optam por um hotel simples como aquele para não pagar os preços de um hotel mais caro, mas exigem um serviço que não é o daquele tipo de hotel, como alguém para carregar as pesadíssimas malas que as madames brasileiras costumam carregar quando viajam. Concluiu dizendo que esse tipo de postura deveria ser reflexo da mania que os brasileiros têm de contratar empregados domésticos para ajudá-los no serviço de casa, uma prática virtualmente inexistente na classe média da Europa moderna. Incapaz de negar qualquer de suas afirmações, limitei-me a rir por dentro imaginando as madames brasileiras – ou seus dedicados maridos – a carregar escada acima suas malas repletas de inutilidades.
Fim de viagem. Dez bem vividos dias em Portugal, com uma razoável e intensiva exploração do norte do país. A opção de não visitar o sul foi fácil: predominam, naquelas paragens, badaladíssimos balneários e sofisticados resorts à beira-mar, um programa que não seduzia nem a mim nem ao Nicola. Assim, devolvemos o carro em Lisboa e tomamos o avião de volta para Londres. A porta se abriu e nos trouxe, de volta, o frio e o céu nublado de Londres. Vontade de voltar para Portugal e andar de bermuda e camiseta.
Finalmente, como não podia faltar numa viagem a Portugal, uma seleção dos momentos mais engraçados vividos naquelas terras:
- Num restaurante em Lisboa, havia uma misteriosa e intrigante “sopa de grelos”, que, por via das dúvidas, resolvi não arriscar. Mais tarde, depois da viagem, vim a descobrir que se tratava de uma inocente sopa de brotos.
- No metrô de Lisboa, acompanhei uma deliciosa conversa entre duas adolescentes: "imagine que eu estava trabalhando de baby sitter e, quando os pais do menino voltaram, me perguntaram se ele havia acordado. Eu disse que não, que ele havia dormido a noite toda. Na hora de me pagar, me pagaram menos pois, se o menino dormiu, eu não havia trabalhado nada". Difícil foi, sentado em frente às duas, conter a gargalhada.
- No famoso Café à Brasileira, aquele que tem a estátua de Fernando Pessoa, o Nicola pediu algo para comer e eu não comi nada; sem problemas. No dia seguinte, porém, novamente o Nicola pediu uma refeição, e eu resolvi pedir apenas pão com uma pasta de fígado, que estava na lista das entradas; o garçom, então, disse que não podia servir apenas a entrada. Resolvi então tomar apenas um vinho e o garçom me informou que, se eu ia tomar vinho, ele podia servir a pasta. Ou seja, você pode não pedir nada, se não quiser, mas pedir apenas a pasta de fígado é proibido. Vá entender...
- Outdoor com propaganda de fraldas: "para seu bebê ficar com os rabinhos sempre frescos".
- Outdoor com propaganda de desodorante masculino: "para você exalar toda sua frescura".
- Finalmente, no rádio do carro, ouço uma piada de portugueses, contada por um locutor português (eu juro, eu ouvi). Nos tempos da guerra fria, o governo português recebe um curto e grosso telegrama do serviço secreto americano: "movimento sismológico detectado no centro de Lisboa, favor tomar providências". Os portugueses não respondem nada e os americanos escrevem novamente "movimento sismológico de grande amplitude detectado no centro de Lisboa, favor tomar providências". Nada novamente. Os americanos, preocupados, mandam uma terceira mensagem. Os portugueses respondem, enfim: "podem ficar tranqüilos; o líder do movimento já se encontra preso e sob interrogatório; as investigações, porém, estão prejudicadas por causa de um maldito terremoto que arrasou a cidade de Lisboa". E depois eles ainda reclamam que os brasileiros contam piadas de portugueses.
Fotos em http://janelaseportas.shutterfly.com/action/pictures?a=67b0de21b3400110657a&pg=0
25 de abril de 2000
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