Quinta-feira, 2 de março de 2000. Eu e minha amiga Léa saímos de Londres para um fim de semana em Amsterdam, onde chegamos sob uma chuvinha fina. As primeiras impressões da cidade são superiores às minhas expectativas. Um sistema de informações turísticas eficiente, transportes públicos fáceis, rápidos, limpos. Da janela de nosso pequeno e modesto hotel, uma vista maravilhosa para um dos 160 canais de uma cidade formada por 90 ilhas. Uma espécie de Veneza, mas mais moderna, mais limpa e mais fácil de se orientar.
Na sexta-feira, um passeio de barco pelos canais reforçou a primeira impressão. Uma cidade charmosíssima, uma arquitetura única, antiga, bem conservada. O Museu van Gogh, um banho de arte de primeira qualidade, onde vi de perto o meu van Gogh favorito, o Quarto do Artista. No Mercado das Flores, as famosas tulipas holandesas. As coffee shops, cujos cardápios contêm desde cafés, chás e chocolates, até cigarros com diversas variedades de maconha, que podem ser escolhidos pelo tipo de erva e consumidos sem quaisquer restrições no local (curiosamente, ali não são vendidas bebidas alcoólicas). A polêmica política holandesa de repressão às drogas baseia-se na concentração de esforços contra os traficantes e as drogas mais pesadas, e na maior tolerância às drogas leves. Não sei dizer até que que ponto essa política lida com um problema existente ou o reforça (apesar de o número de viciados na Holanda ser proporcionalmente menor do que em vários países da Europa, incluindo a vizinha França cuja política é mais ‘linha-dura’). Certo ou errado, lembro-me do episódio em que um humilde pintor do subúrbio, em Brasília, que comprou uma camiseta com uma estampa de folhas de maconha, sem saber do que se tratava, e foi preso em caráter inafiançável por ‘apologia ao uso de drogas’. Enquanto pessoas como ele vão presas, os traficantes estão soltos em número crescente na cidade, oferecendo aos jovens de todas as classes, nos melhores colégios da cidade, não só maconha, mas qualquer outra droga para a qual haja demanda.
À noite, uma visita ao igualmente polêmico Distrito das Luzes Vermelhas, a zona de Amsterdam, que fica mais ou menos no centro da cidade. As prostitutas saíram da rua, se sindicalizaram e agora oferecem seus serviços por detrás das vitrines de casas e mais casas, uma ao lado da outra, nesse Distrito. O fato de tudo ser concentrado numa única região facilita o trabalho da polícia e da saúde pública (a Holanda tem um baixíssimo percentual de aidéticos na sua população). Contudo essa vantagem não evita que haja grande número de prostitutas exploradas, em geral mulheres asiáticas, africanas ou do leste europeu, que vivem em condições semi-escravas. Além disso, é deprimente o espetáculo grotesco das mulheres feias e envelhecidas, expostas como animais nas vitrines. É verdade que não é muito diferente do show diário que se vê em algumas áreas residenciais de cidades brasileiras, o que não nos torna muito diferentes da Holanda a não ser pela hipocrisia com que o problema é tratado pelas autoridades de plantão.
O longo dia se encerra com o retorno ao nosso espartano hotel. Não há banheiro privado no quarto. O chuveiro fica numa ponta do corredor, o vaso fica na outra ponta, ambos compartilhados entre quatro quartos, e em cada quarto há uma pia. Esses detalhes são importantes para explicar porque, com tantas entradas e saídas no quarto, acabamos dormindo sem trancar a porta do quarto.
Por volta de 5 da manhã, Léa acordou com uma claridade no quarto e eu acordei apenas a tempo de ouvir um homem dizer ‘sorry, wrong room’, sair e fechar a porta. Até nos darmos conta do que havia acontecido, o cara já tinha levado meu passaporte, todo meu dinheiro, minha passagem aérea, meu casaco de estimação, nossas duas máquinas fotográficas, meu relógio, minha calça com minha carteira e meus cartões de crédito. Deixou os documentos da Léa, que estavam numa outra bolsa menor. Ainda atordoado, sem saber o que fazer, saí do hotel, no escuro, morrendo de frio, para encontrar uma delegacia. Enquanto esperava o oficial que registraria minha ocorrência, solicitei o telefone para cancelar meus cartões de crédito. Foram várias ligações, algumas demoradas e, no meio de uma delas, um policial holandês enorme me dá uma tremenda esculhambação por eu estar usando o telefone ‘a noite inteira’. Contive-me para não mandá-lo à merda (ser preso àquela altura, sem documentos, não seria a melhor opção para mim). Fui então chamado a registrar a ocorrência com uma holandesa enorme, seca, masculinizada, absolutamente indiferente ao meu drama – que, vim a saber depois, era relativamente comum em hotéis pequenos. Ali com ela, numa sala fechada, sentindo-me mais protegido e ainda abalado com a grosseria do policial, não pude conter as lágrimas e vivi o meu primeiro momento de fraquejamento naquela situação. Saí de lá com a ocorrência policial – em holandês – e pensei no turista que chega a uma delegacia brasileira tentando falar inglês. Exceto em uma ou duas cidades com delegacias especializadas para turistas, nas outras isso é virtualmente impossível. Naquela delegacia, todos os policiais, até o cavalo que me esculhambou, falavam inglês comigo. Já era um consolo.
De volta ao hotel, já com o dia raiando, tive que lidar com a indiferença com que as funcionárias do hotel reagiram ao episódio. O sábado começa e resolvo ligar para o consulado brasileiro que fica em Roterdam, a 1 hora de trem de Amsterdam. Ouço o educado funcionário de plantão me informar que, para eu ter uma segunda via do passaporte, preciso esperar até segunda-feira e, para isso, eu precisaria de cópias da carteira de identidade e, acredite ou não, do certificado de reservista. Disse-me, ainda, calmamente, que se eu não apresentasse esses documentos, eu seria deportado para o Brasil, por não ter como provar minha identidade. Se eu apresentasse apenas a carteira de identidade, eu teria um passaporte temporário (o que não me permitiria regressar à Inglaterra que, naquele momento, era minha residência).
Tive nesse momento a certeza da dimensão do meu problema. Esses documentos me pareciam inatingíveis dali de Amsterdam. Tentamos contornar o problema com o André, marido da Léa, que é diplomata, mas o caso era realmente sério. De fato, como dar um passaporte a qualquer um que chega ao consulado dando seu nome e dizendo que é brasileiro? O drama só não seria maior porque tínhamos dinheiro, ou melhor, o cartão de crédito da Léa. Mas, doce ilusão. Quando fomos ao caixa sacar dinheiro, descobrimos, estarrecidos, que o limite do cartão dela estava estourado. Agora, nem documento nem dinheiro. Fizemos um balanço do que tínhamos: eu tinha 40 libras que trouxe de Londres, Léa tinha 40 dólares e mais alguns pounds. À nossa frente, despesas de hotel, alimentação, trem de ida e volta para Roterdam, um novo bilhete aéreo para mim, transporte na cidade e muitas ligações telefônicas. Ou seja, o dinheiro não dava para nada.
No meio da constatação do nosso drama, começa a nevar em Amsterdam. Uma neve forte, intensa, rapidamente branqueando a cidade. Um espetáculo inédito para mim, que teria tudo para ser lindo se a situação fosse outra. Se pelo menos nossas duas máquinas fotográficas não tivessem sido roubadas e pudéssemos registrar aquelas imagens inusitadas para um mês de março. Se meu casaco não tivesse sido roubado e eu não estivesse congelando de frio... Se nós tivéssemos dinheiro para tomar um chocolate quente num café enquanto olhávamos a neve cair...
Hora de cair na real e tomar as providências. Preciso de uma identidade e do título de reservista. Minha identidade está guardada no meu quarto, em Londres. Contei então com o apoio precioso de pessoas como Marcelo e Karina, Nicola, que foram de disponibilidade, dedicação e carinho inesquecíveis. Ligavam, recebiam ligações a cobrar, viabilizavam formas de entrar no meu quarto, pesquisavam como mandar dinheiro, descobriam como enviar fax num sábado à tarde. Em alguns momentos, ao falar com eles, me emocionava pelo simples fato de eles estarem lá do outro lado. Lembrei-me também de amigos como Maysa, Carmen e William, parte do meu círculo de referência em Londres, com quem eu podia contar, caso precisasse de mais gente. Tesouro inestimável num momento desse.
Não dava para contar muito com o Brasil, parado por conta do carnaval. Bancos fechados, amigos diplomatas viajando. Mas eu sabia que, trancado num quarto em meio às milhares de caixas que deixei no Brasil, cercado de geladeira, fogão, máquina de lavar, sofás, roupas, CDs e livros, jazia meu certificado de reservista. Quando senti que esse documento idiota, que não usava há mais de 20 anos, seria fundamental, decidi recorrer a meus pais que, com meu irmão, conseguiram achá-lo e imediatamente enviá-lo por fax.
O fim de semana viria a se mostrar o mais longo da minha vida! Muito frio, parcialmente contornado com pilhas de camisas que eu vestia uma por cima da outra, o pijama de flanela por baixo da calça. O pouco dinheiro tinha que ser contado. Fomos almoçar no McDonald’s, a opção mais barata. Dois sanduíches, uma batata frita compartilhada e uma coca-cola. Léa devolveu o catchup e a mostarda quando viu que custavam alguns centavos. Um pão de forma, presunto e queijo serviram como refeição pelos próximos 2 dias. Tínhamos ainda água da torneira, geléia e manteiga do café da manhã, além de mexericas e chocolate toblerone comprados antes do roubo. Telefonemas comiam nossas poucas moedinhas, e limitamo-nos então às ligações a cobrar. Nossa programação de fim de semana em Amsterdam, que incluiria museus, restaurantes, shows, passeios, foi totalmente cancelada.
No domingo decidimos que Léa deveria voltar para Londres, e à tarde ela embarcou. Sua permanência em Amsterdam era um grande apoio moral, mas implicava despesas de alimentação, hotel, transporte. Ela saiu com o dinheiro absolutamente contado para pegar um bonde até a estação de trem, e depois um trem até o aeroporto. Nada podia dar errado, mas deu. Na viagem de Londres para Amsterdam, após o check in, trocamos as passagens. Assim, a passagem roubada na verdade era a dela, e ela foi para o aeroporto com a minha. Não podia viajar, e sequer podia voltar para o hotel, já que estava sem dinheiro para o transporte. Mas alguma coisa tinha que dar certo: aceitando a sugestão do funcionário da companhia, ela tentou usar mais uma vez o seu cartão, o mesmo que não havia funcionado em momento algum e, por razões inexplicadas, dessa vez conseguiu com ele comprar uma passagem. Menos mal: a minha passagem ficou no aeroporto para quando eu tivesse o meu passaporte em mãos, uma vez que eu ainda teria que pensar como comprar uma nova passagem quando toda a parte burocrática estivesse resolvida.
Depois que Léa foi embora, fui aproveitar a tarde de domingo, naquilo que me era possível fazer sem um tostão no bolso. As ruas, o Vondelpark, os músicos na calçada, tudo era de graça, mas o que eu fazia com o meu desejo de comer pipoca, tomar sorvete ou beber um chocolate quente? Voltei cedo para o hotel com uma grande sensação de solidão. Resolvi fazer funcionar a televisão do quarto que, até então, não me fazia falta. Fiquei ali vendo filmes em holandês, jantando sanduíche, mexerica e toblerone. Estava ansioso, mas com a sensação de que as coisas estavam se resolvendo.
O domingo ia acabando e eu assistia o noticiário holandês. Deparei-me com imagens das enchentes em Moçambique. Não precisava entender holandês para entendê-las. Milhares de pessoas fugindo das águas, ilhadas em árvores, aguardando desesperadas o próximo helicóptero. Já perderam suas famílias, não têm passaporte, cartão de crédito, comida, casa, dinheiro, amigos. Nunca tiveram muito. Ser deportado para o Brasil já não me parecia tão grave. Nas cenas mais leves, a TV mostra o carnaval no mundo: as máscaras e fantasias de outros países e, no Brasil, apenas mulatas exuberantes com suas não menos exuberantes bundas nuas. E eu ainda tenho que explicar para meus amigos europeus que o Brasil é bem mais do que mulheres nuas, futebol e Amazônia em chamas.
A noite de domingo foi longa. Acordei às 3 da manhã e não consegui dormir mais. Saí cedo, sem tomar café, e tomei o trem para Roterdam. Felizmente, os documentos eram suficientes, tudo de que eu precisava para um passaporte definitivo. Os funcionários foram eficientes e gentis, embora eu tivesse de presenciar a estupidez de uma mulher que atendia uns empresários holandeses e, com um inglês macarrônico, explicava que não podia resolver o problema deles porque era carnaval e o consulado estava funcionando em regime de plantão. Recebi meu passaporte e assinei um documento comprometendo-me a enviar-lhes o equivalente a 75 dólares pelas despesas de emissão (um abuso!). Saí de lá feliz com meu novo passaporte, mas com uma nostalgia pela perda do antigo que, em seus múltiplos carimbos, guardava uma parte importante das minhas histórias mundo afora.
Tomei o trem para o aeroporto, consegui uma conexão imediata e entrei no avião pensando em tudo que me havia acontecido. Comecei a pensar nas lições do episódio. No que poderia ser diferente, no que poderia ter melhorado ou piorado a situação, no que eu podia ter feito e não fiz para evitar esse drama. Pensei na ausência de valor do dinheiro que eu tinha no banco em Londres, que existia mas era inacessível no momento em que eu mais precisava dele. Lembrei-me de como o pão com queijo e presunto dos últimos dois dias tinha adquirido um sabor todo especial. Pensei na tecnologia que me alcança amigos e família por telefone e que faz um documento chegar por fax em segundos. Agradeci os amigos com quem podia contar. Pensei na minha amiga Léa. Viagens trazem o que há de melhor e de pior nos companheiros de viagem. E felizmente, nesse stress todo, a Léa foi uma grande companheira, com iniciativa, alto astral, despojada, solidária nos momentos de baixo astral total, quando achávamos que nada ia dar certo. Se ela não tivesse sido o que foi, eu certamente teria preferido estar sozinho no episódio.
Em meio a tudo, eu ainda conseguia pensar em Amsterdam, uma cidade que me encantou desde o início, e que ficou explorada muito superficialmente. É certamente uma das cidades mais bonitas e charmosas que já conheci. Quero voltar lá, sem julgá-la por um episódio infeliz. A imagem que se tem de um lugar depende do que vivemos nesse lugar: o momento, o que se vê, o que se vive, a companhia, o restaurante, o hotel, mas não quero essa imagem de uma cidade que julguei tão linda desde o começo. Lembrei-me de lugares que visitei, supostamente mais perigosos, Turquia, Bolívia, Peru e, por que não dizer, Brasil. Não, a imagem que me fica de Amsterdam não é a do risco ou do perigo, mas do que a cidade me inspira a conhecer numa outra oportunidade.
Minha preocupação agora era a entrada na Inglaterra, sem documento algum que provasse a minha condição de estudante a não ser uma carteirinha vagabunda da universidade, dessas que mal valem para desconto no cinema, e que o gatuno deixou cair na fuga. Felizmente, uma funcionária atenciosa e educada (raro em serviços de migração) acreditou na minha estória, na ocorrência policial em holandês que ela não conseguia ler, e carimbou meu passaporte com a mesma validade do anterior. Quando passei a barreira da migração, no hall do aeroporto, me senti finalmente aliviado. Mais, me senti em casa, seguro, protegido. A sensação, por incrível que pareça, de que, nesse momento, esse é o meu canto, o meu refúgio, o meu país. Nesse momento, minha vida está aqui. Minha casa está aqui. Chegar em Londres, tomar um banho, botar roupas limpas, jantar, tomar um vinho, ouvir minha música, é tudo de que eu precisava para fechar minha viagem. E então, mais relaxado, permitir-me viver a raiva e o medo que não deixei aflorarem durante o fim de semana.
10 de março de 2000
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Um comentário:
Cara, que história. Eu vou viajar pra Amsterdam e estava na net procurando o endereço da embaixada do Brasil e acabei no seu blog. Li sua história sofrendo. Cativante! Que bom que tudo deu certo no final. abraço!
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