Depois de passar uma longa temporada de viagens a trabalho sem chance de conhecer mais do que o hotel ou o centro de convenções, a inesperada esticada em Seul, Coréia, foi o ponto alto de uma reunião de trabalho em Jeju. Jeju é uma ilha famosa na Coréia e no exterior (bom, isso eu descobri depois) pelas suas belezas naturais, mas não me atraiu nem um pouco. Um turismo baseado em grandes resorts, de custos elevadíssimos, orientado a turistas de países ricos (a maioria japoneses), que não se incomodam de hospedar-se em uma ilha longe da vida e da população local do país. Até existe uma vila na ilha mas o visitante raramente precisará ou terá a chance de vê-la. Eu mesmo, durante três dias, apenas vi o meu hotel e os hotéis no caminho do belíssimo e eficiente centro de convenções de Jeju. Restaurantes, apenas os de hotel. Assim, quando vi que teria a chance de dar uma esticadinha de três dias, para o que escolhi Seul, a capital, deleitei-me ao ver uma cidade de verdade, com gente, ruas, comércio, restaurantes, e tive a sensação de que sair da Coréia sem essa chance teria sido uma grande injustiça na minha avaliação do país.
Infelizmente, não pude me preparar como gostaria para esses três dias em Seul. Visitar a Coréia requer conhecer, ainda que por alto, o que é o país, sua história, sua cultura, seu povo, sua religião, sua língua, sua arte. Eu sabia pouco, insuficiente para viver com mais intensidade esse outro lado do mundo que, como outros países asiáticos, mistura a modernidade com a tradição em cada esquina. Castelos, cenários de histórias de reis e dinastias, templos budistas e confucionistas, rituais milenares, restaurantes e casas de chá tradicionais, misturam-se com edifícios e automóveis modernos, sistemas de comunicação sofisticados, cadeias americanas de fast food e intrigantes vasos sanitários eletrônicos. Com tudo isso, mesmo sem conhecer previamente tudo que eu gostaria, essa parada não deixou de ser fascinante.
Em meio a tantas diferenças culturais, o maior obstáculo para um viajante na Coréia é, sem dúvida, a língua. Poucas pessoas falam um inglês minimamente compreensível, o que tornou em acessório quase inútil essa suposta ferramenta universal. A linguagem corporal, alternativa a que se apela nessas condições, nem sempre trazia bons resultados, conseqüência de significativas diferenças nos códigos culturais dos dois países. Me via algumas vezes, com gestos patéticos, e me deprimia ao olhar para o meu interlocutor e perceber que ele não entendia nada. Para piorar, o alfabeto coreano não facilita a tarefa de leitura, de localização de ruas ou de busca num dicionário. Tive que ter muito bom humor – não havia outro jeito – para lidar com cada situação do dia-a-dia.
Nos restaurantes, os cardápios raramente são escritos em inglês. Os garçons, apesar de sempre solícitos, não conseguem ajudar. Felizmente, encontrei um americano, trabalhando na Coréia, que escreveu em coreano, num pedaço de papel, que sou alérgico a frutos do mar, uma presença constante na comida local. Com todos esses cuidados, minha primeira noite num restaurante, acompanhado de amigos do trabalho, foi divertidíssima. Muito compenetrado, comecei a fazer perguntas sobre os pratos do cardápio. Depois, comecei a perguntar sobre os pratos que via nas mesas ao lado. Quando senti que estava pronto para fazer os pedidos o garçom saiu da mesa. Esperei para que ele voltasse e, quando ele começou a despejar pratos sobre a mesa, constatei que minhas perguntas tinham sido entendidas como pedidos. Um deles, inclusive, uma maravilhosa panqueca de frutos do mar com a qual se deleitaram meus companheiros. Passei, a partir daí, a tomar mais cuidado com as minhas perguntas.
As dificuldades de comunicação em inglês eram tão grandes que, a um ponto, comecei a falar sempre em português, às vezes com melhores resultados do que em inglês. Da mesma maneira, fingia que entendia quando os coreanos se dirigiam a mim em sua língua, sorrindo para eles e dizendo ‘yes’ a tudo, como eles fazem normalmente. O ponto alto dessa comunicação esdrúxula foi num desses restaurantes em que o garçom prepara a comida na sua frente. Ele vem, fica mexendo na panela, explica tudo em coreano, eu só falo ‘yes’, ele vai lá dentro, volta, mexe de novo, fala alguma coisa, eu falo ‘yes’, ele vai embora de novo, e você fica com aquela comida na sua frente sem saber se ele falou que já pode comer ou se você deve esperar alguns minutos para terminar de cozinhar.
No quarto do hotel, uma televisão de alta tecnologia apresentava mais de 40 canais, sendo 39 em coreano ou em japonês, o que para mim dava no mesmo. O canal em inglês era dedicado a negócios. Nos táxis, a aventura era ainda mais complexa, porque o sistema de endereçamento coreano é famoso por ser incompreensível até para eles. Por isso, a qualquer lugar que se vá, que não seja um ponto de referência conhecido, a apresentação de um mapa ao motorista é condição essencial, não só porque você não fala a língua dele, mas porque, mesmo que falasse, não ia conseguir fazê-lo chegar onde você quer. O melhor exemplo era o nosso hotel que, apesar do mapa fornecido pela recepção, jamais foi encontrado por nenhum motorista de táxi – todos me deixavam no ponto mais próximo a que conseguiam chegar, com base nas referências do mapa, e a partir daí eu ia a pé. Nas lojas, desisti de tentar fazer perguntas do tipo ‘de que é feito’, ‘de onde vem’e curiosidades do gênero e limitava-me ao universal ‘quanto custa?’ (esse eles entendiam!).
A região em que fiquei hospedado é, de longe, a mais atraente de Seoul: no centro da cidade, próximo à rua Insadong. Insadong é um verdadeiro museu ao ar livre. Uma rua com várias ruelas secundárias, onde se misturam restaurantes tradicionais, charmosíssimas casas de chá, galerias de arte e lojas de artesanato – desde as sofisticadas às quinquilharias. Difícil não ficar tentado a fazer extravagâncias com as belíssimas peças de porcelana, cerâmica, barro, papel, mármore. Em Insadong há raríssimos ocidentais, ainda menos que em outras partes de Seul mais ‘ocidentalizadas’. Os turistas, se existem, são japoneses, que não consigo diferenciar dos coreanos, seja na aparência física ou na língua. Essa rara ausência de ocidentais me tornou, contra o meu desejo, em uma figura facilmente reconhecível onde quer que eu voltasse, especialmente nas lojas.
Saindo de Insadong para visitar castelos, museus, templos, mercados de rua, percebe-se um país organizado, limpo, seguro. Os índices de criminalidade são baixíssimos, o que permite o luxo de ficar andando de noite mesmo em áreas que, em outra cidade, me dariam medo. Creio que o visível policiamento ostensivo em toda a cidade é mais para repelir as esporádicas manifestações políticas do que para reprimir a violência, mas não deixa de ajudar. A segurança e a limpeza estendem-se a um mercado de rua aberto 24 horas, Namdaemun, onde mais de 3000 lojinhas vendem de tudo um pouco - inclusive as inevitáveis grifes falsificadas - sem a insuportável necessidade de ficar pechinchando por coisas das quais você não tem a menor referência de valor. Não há menção, ali, à existência de trombadinhas ou de pedintes nas ruas.
O metrô da cidade é outro símbolo da limpeza, da ordem, da segurança e da eficiência coreanas, super abrangente, cobrindo toda a cidade – dá inveja em brasileiros! E, ainda no trânsito, não posso deixar de mencionar os motoristas de táxi sempre honestos e educados e, símbolo máximo de civilidade, a sensação de me ver dentro de um táxi na hora do rush, cercado por milhões de outros carros impedidos de se locomoverem pelas condições do transito, e simplesmente não ouvir buzinas. Inevitável me perguntar se toda essa ordem vem de uma recente ditadura militar ou se provém de hábitos de uma população historicamente disciplinada, educada, dotada de outros valores, padrões e códigos de conduta.
Aos poucos, fui lendo, conversando e conhecendo um pouco mais sobre o País que, no seu formato atual, foi criado há pouco tempo, logo após o fim da II Guerra Mundial. Logo após sua criação, passou por uma devastadora guerra com a Coréia do Norte, cujas marcas são até hoje visíveis em tudo que se faz e se vê e que cria uma tensão permanente entre os dois países. Sem qualquer juízo de valor, impossível não me perguntar o que faz um país como a Coréia ter um desenvolvimento econômico e social tão intenso e rápido enquanto nos resignamos no Brasil à já irritante noção de ‘país do futuro’. Há cerca de vinte e poucos anos, o governo coreano propôs um modelo de desenvolvimento para o país: investir pesadamente em educação – o que resultou num nível de analfabetismo próximo de zero – e priorizar duas áreas industriais – informática e comunicações e química fina. O modelo parece ter funcionado, a se julgar pelo que se vê, se lê e se ouve no país. Isso não quer dizer que seja tudo perfeito, e a política local nos é bastante familiar, dominada pelos pouquíssimos grupos econômicos que controlam o país, por freqüentes acusações de corrupção e, atualmente, marcada por um processo de impeachment do presidente do país.
Um capítulo à parte para o Memorial de Guerra da Coréia, uma criação impressionante e inacreditável em todos os sentidos, enorme e sofisticada, concebida para armazenar um museu que relembra a história das guerras de que participou a Coréia. Do lado de fora, aviões, helicópteros, submarinos e tanques originais. Por dentro, um assombroso show de recursos visuais, auditivos e tecnológicos que asseguram intensidade e realismo às reconstituições que ali se fazem. Há até mesmo uma simulação de um campo de batalha, em que você se vê, sente, ouve e cheira como se na guerra estivesse. As contradições desse ambiente são flagrantes. A música que ecoa pelos jardins repletos de máquinas de guerra é uma apaziguadora música clássica. Num museu de temática tão ‘adulta’, a maior parte do público eram crianças, fotografadas por seus pais enquanto posavam alegres ao lado de canhões e bombardeiros. Lá dentro, uma ala do museu é voltada especificamente às crianças.
É difícil para um brasileiro fazer qualquer juízo de valor sobre as atitudes e valores de um povo que foi atingido por guerras tão fortes em diversos estágios de sua existência. Difícil, também, enxergar, nos simpáticos e tranqüilos coreanos com que me encontro no dia-a-dia, os bravos soldados retratados na história das guerras. Por isso, não posso concluir se esse memorial, que me causou ao mesmo tempo admiração e repulsa, ao assegurar a memória das guerras coreanas, é a banalização da guerra – transformando-a num tema objeto de brincadeiras infantis – ou a sua sacralização, com a correspondente atribuição de importância que merece na história e na formação do país.
Entrando em temas mais leves, a ida a um restaurante ou a uma casa de chá coreanos é um estímulo a todos os sentidos. Começa pela visão de um ambiente simples, despojado, sóbrio, mas aconchegante e de extremo bom gosto. O aquecimento dos lugares – sim, esqueci de dizer que a Coréia é muito fria - utiliza o tradicional sistema ondol, em que os pisos são aquecidos por baixo, o que torna ainda mais agradável a sensação de comer sentado no chão ouvindo uma relaxante música coreana. E, na hora de comer, começam a vir aqueles pequenos pratinhos de comida, sopa, grelhados, legumes, vegetais, saladas, todos servidos numa combinação visual bastante interessante, a maioria saborosos e não identificáveis, mas sempre incluindo o identificável e inicialmente intragável kimchi (acelga apimentada, uma espécie de prato nacional).
A melhor dessas experiências foi no Sanchon, um restaurante vegetariano budista, cujo proprietário é um antigo monge - uma verdadeira orgia gastronômica e visual. Mas nem mesmo ali consegui comer alguma sobremesa, simplesmente ausente das refeições coreanas. Por isso, meus jantares terminavam numa das inúmeras casas de chá da rua Insadong, qualquer uma delas – todas são charmosas, acolhedoras, com decoração suave e boa música. Todas têm o mesmo cardápio, chás, apenas chás, e nelas as pessoas se reúnem apenas para isso, tomar chá. Algumas poucas ainda oferecem um docinho, mas preferível seria ter escapado à tentação de experimentar o intragável e sem graça bolinho de arroz (só comparável em mal gosto ao doce de feijão japonês).
E por falar em prazeres, não poderia deixar de mencionar minha última noite em Seul. A fim de ficar mais próximo do transporte para o aeroporto no dia seguinte, que seria muito cedo, me mudei de hotel. Na recepção, não notei nada, mas quando encontrei uma cama redonda no meu quarto, percebi que não era exatamente um hotel convencional. Depois, fui percebendo os espelhos, o forro de plástico na cama, a recepção sempre cheia de casais recebendo e devolvendo chaves, e concluí que estava num motel em pleno centro da cidade. A recepção é disfarçada (no máximo, me dei conta depois, ficava próximo a alguns inferninhos locais), mas o quarto tem até uma luzinha vermelha (aliás, minto, SÓ tinha uma luzinha vermelha). E, à noite, finalmente, nos quartos vizinhos, consegui ouvir dos coreanos ruídos mais compreensíveis do que os emitidos por eles quando tentavam conversar comigo. O único inconveniente foi passar a noite com frio, uma vez que a única coberta disponível era um cobertor que, provavelmente, não era lavado desde a inauguração do m(h)otel. A parte boa foi descobrir que, nesse quesito, estamos mais perto dos asiáticos do que dos norte-americanos, que simplesmente ainda não descobriram esse conceito de motel.
Enfim, fantástico estar em Seul, a despeito de minha relutância e preconceito com relação às cidades grandes. Seul tem seu encanto, que resiste aos padrões forçados da globalização. É um país onde pude ver, conhecer, comer, sentir, ouvir, apreciar artes, culturas, comidas, músicas – coisas diferentes de tudo que já havia encontrado em outros lugares. Enquanto for assim, não perco a capacidade de me deslumbrar com o novo. Ainda não entrei na assustadora fase de acreditar que não tenho mais o que conhecer ou de achar que tudo se parece. Por isso, renovo-me nessa viagem. E com a renovada capacidade de me deslumbrar.
4 de abril de 2004
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