México, agosto de 2004
Por mais que eu evite, impossível fazer qualquer viagem sem que as idéias e imagens que sempre tive, ouvi ou li sobre aquele lugar me venham à cabeça. São idéias pré-concebidas, eu sei. Preconceitos, talvez. No caso do México, em particular, país tão conhecido e falado, que sempre esperei um dia conhecer, no momento em que me decidi pela viagem eu já tinha um conjunto grande de imagens na mente, as quais foram aumentando à medida que eu ia lendo e conversando com as pessoas. Foi assim que cheguei ao México. Cheio de idéias, expectativas, imagens e, ao chegar aqui, foi também inevitável comparar minhas idéias pré-concebidas com as que encontrei na realidade... só para constatar que nem toda idéia pré-concebida é, necessariamente, falsa ou verdadeira.
Minhas primeiras imagens do México vêm de alguns desenhos animados e filmes da infância. Esses desenhos e filmes sempre retrataram o povo mexicano com carinho, aqueles povoados no meio do nada, empoeirados, com umas dez casas, torrando sob o sol, com aqueles mexicanos sonolentos sentados sob um sombrero, vendo a vida passar. Esses povoados talvez existem, mas não os encontrei na minha viagem (devem estar próximos à fronteira norte, onde são filmadas a maior parte das produções americanas na região). Até encontrei cidadezinhas pequenas, charmosas, simpáticas, mas nada dos tais povoados desertos e empoeirados, objetos das minhas fantasias de infância.
Outra idéia pré-concebida, essa preconceituosa mesmo, é que o país era meio brega. Reforçada principalmente, agora, pelos filmes, novelas e programas infantis modernos. Trata-se, naturalmente, de uma avaliação nada politicamente correta, até mesmo porque o conceito de brega envolve uma avaliação subjetiva de culturas. No caso do México, uma cultura rica e diferenciada é vista - pelas suas roupas, músicas, decoração - como brega. Contudo, da mesma maneira que eventualmente gosto de visitar a cultura brega brasileira, adorei estar em contato com esse lado da cultura mexicana. Uma delícia sentar-me em um bar ou café, observar as pessoas, escutar estórias, ouvir as músicas em seus tons desesperadamente dramáticos, observar as roupas e combinações coloridas de homens e mulheres, assistir às famosas novelas mexicanas (algumas retransmitidas pelas emissoras brasileiras). Isso é o México.
À medida que escrevo, me dou conta de como o México é presente no imaginário dos brasileiros, bem mais do que outros países latinos vizinhos. Outra idéia pré-concebida é a de um país de machões. Parece um pouco mesmo, do que vejo, do que converso com motoristas de taxi, do que leio nos jornais. Há aqui um tipo de bar muito comum, as cantinas. Até poucos anos atrás, a maioria das cantinas proibia mulheres e crianças. Hoje mudou um pouco, mas muitas mantêm o hábito. Entrei numa delas outro dia. Só havia homens, todos com cara de mau, do tipo que vemos nos filmes, enchendo a cara e, pasme, jogando dominós. Não é fantástico? Pedi uma cerveja Corona e o garçom me olhou com uma cara meio estranha, mas trouxe. Depois vim a descobrir que Corona é cerveja pra turista, fraquinha. Não é coisa de macho. Acho que eu teria feito mais sucesso se tivesse pedido um mezcal, um tipo de tequila pra macho.
Ao mesmo tempo em que cultua uma imagem de paíse de machões, tem um outro lado da cultura mexicana, que conheci por leituras, relatos e conversas com amigos (mexicanos e brasileiros casados com mexicanos), que falam de uma sociedade altamente matriarcal, onde a “madrecita” tem um papel fundamental na estrutura familiar, conduzindo a ferro e fogo os destinos de cada membro da família. Essa parte, naturalmente, não é visível aos olhos do turista, mas me recordo bem de alguns relatos hilários e dramáticos, especialmente de amigas que se aventuraram em relações com homens mexicanos.
Sobre a comida, vim imaginando encontrar apenas coisas muito apimentadas. Sem dúvida, há muito disso, e o tal do chili abunda em qualquer restaurante ou cantina. Mas basta perguntar, buscar, e se encontram opções bem interessantes sem precisar sair cuspindo fogo. As opções também coincidem com um pouco do imaginário construído nos restaurantes e bares mexicanos visitados pelo mundo: tortillas, quesadillas, tacos, guacamole, etc. O tal do mole é um molho que pode ser feito de varias maneiras, o mais famoso em Oaxaca é o mole negro, que inclui, entre 32 especiarias, o chocolate. E jogam isso tudo por cima de um peito de frango com resultado acima da expectativa (não, nem tem gosto acentuado de chocolate). Em Oaxaca, o prato mais delicioso foi a botana oaxaquena, uma mistura de tudo que se faz na região: tem tortilla, taco, carne de boi, de porco e de galinha, mole, quesillo (um queijo parecido com queijo coalho, comum na região), guacamole, frijoles (tutu de feijão). Fantástico... e ninguém vai poder dizer que comer aquilo tudo não é coisa pra macho!
Mas diferente mesmo, foram os Caracoles al Mole, pedido feito pela minha amiga Dora e pelo seu filho José Ricardo, na Cidade do México. No meu espírito aventureiro, que só veta, em princípio, crustáceos (pela alergia) e berinjelas (pelo odioso gosto), nem perguntei o que era, ela pediu, deixei vir. Os tais caracoles são lesmas, amigáveis lesmas, banhadas num indecifrável molho escuro. Lesmas dentro de suas casquinhas duras. Você pega as lesmas, uma a uma, nas suas conchinhas e, com um palito, retira o bichinho lá de dentro e come. Eu sei, a descrição não ajuda e a aparência ajuda menos ainda. Mas é gostoso. O ruim é que cada vez que eu enfiava o palito lá dentro e puxava o bicho ficava com medo de que o bicho viesse se mexendo. Mas é gostoso. No fim, não devem ser muito diferentes dos chiquérrimos escargots da culinária francesa.
Um dos aspectos mais fascinantes da cultura mexicana é a forma como as civilizações Maya e Azteca ainda se fazem presentes. Contrariamente ao que eu acreditava, a civilização Maya, com uma rica história de quase 3000 anos, nunca "desapareceu", pois ainda há remanescentes que vivem na região (não só no México) e muitos deles ainda falam dialetos da língua original. De maneira geral, porém, essas duas civilizações antigas foram praticamente dizimadas em pouco mais de dois anos por um pequeno grupo de invasores espanhóis. Eles destruíram o império Azteca, trouxeram uma nova religião sob as bênçãos do Papa e reduziram os povos nativos a cidadãos de segunda classe e escravos. Não muito diferente do que tivemos no Brasil em nosso processo de colonização.
Hà muitos turistas no México, a maioria europeus –em geral mochileiros – e americanos - geralmente famílias de meia idade. Sem surpresa, soube que a grande maioria dos brasileiros que visitam o México se concentra em Cancun, cidade da qual passei longe. O turismo é uma grande fonte de renda do México e, com exceção do desapontador aeroporto da cidade do México, a estrutura turística é bem decente e o México está muito mais preparado para receber os turistas do que o Brasil.
Fiz algumas viagens de ônibus, inclusive algumas bem longas (12 horas). Os ônibus executivos são super confortáveis, reclinam a cadeira quase que totalmente, têm serviço de bordo e praticamente não param. Compram-se as passagens pela internet, por telefone ou na agência, sempre com a visualização de um mapa na tela, que mostra os assentos ocupados e a posição em relação aos banheiros (um para homens, outro para mulheres, sempre limpos) e em relação aos 4 ou 5 aparelhos de televisão que ficam distribuídos pelo ônibus, em alto volume, passando filems de terceira categoria, em alto volume. Ainda bem que, já sabendo disso com antecedência, tinha comigo meus providenciais tampões de ouvido.
A surpresa em um desses ônibus foi acordar com uma voz que me parecia português e constatar, emocionado, que passava o belíssimo filme brasileiro Abril Despedaçado (retiro o comentário acima sobre os filmes de 'terceira categoria'. Quase me levantei para acordar os passageiros e alertá-los sobre o fantástico filme que estavam perdendo, mas me contive e voltei a dormir, assistindo entre um cochilo e outro alguns trechos das belíssimas cenas do filme.
Viajar nos confortáveis ônibus mexicanos, embora mais lento, é sempre mais interessante do que de avião, dá para ver o cenário, conversar com as pessoas, ver como as coisas funcionam. Afinal, de que outra forma eu poderia ver, no meio da estrada, uma 'peregrinação ciclística', centenas de ciclistas, a maioria homens, carregando crucifixos nas costas, seguindo carros com imagem de uma santa, numa rodovia principal entre a Cidade do México e Oaxaca?
Para me locomover para alguns povoados menores, como os que visitei perto de Oaxaca, simplesmente arranjei um motorista de taxi para ficar comigo durante o dia. Essa opção, embora mais cara, me permitiu não só visitar os povoados como ter a chance de bater um bom papo com o motorista, um jovem de 27 anos que se queixava de que a namorada insiste em se casar após 4 anos de namoro. Desconsolado, ele me dizia: 'mira, há tantas mulheres por aí, o que vou fazer casado?'.
Para me hospedar, procurei ficar em hotéis e pousadas menores, de poucos quartos, onde é mais fácil encontrar e conhecer gente. Para muitos mochileiros radicais, eu devo ser visto como o mochileiro "mauricinho", por estar sempre em hotéis com banheiro privativo, viajar de ônibus executivo e eventualmente alugar um táxi para passear. O principal problema desse tipo de hotéis em que procuro me hospedar é que, sempre, preciso confirmar se tem banheiro privativo ou não - a maioria não tem - e se tem água quente. Você sabe em que tipo de hotel está quando a recepcionista anuncia, orgulhosa, que há água quente 24 horas por dia. Apesar disso, escolho sempre hotéis charmosos, limpos e bem localizados, embora pessoas de senso estético apurado possam não se sentir muito felizes dentro dos quartos, alguns pintados a mão com alegorias de gosto duvidoso.
Viajar sem planos e resolvendo e decidindo tudo em cima da hora é ótimo, mas de vez em quando surgem uns contratempos. Quando cheguei em San Cristobal de las Casas, eu tinha uma recomendação de um hotel super maneiro, baratinho, mas que, descobri, só tinha vaga para o dia da minha chegada. Arrisquei ficar na esperança de que, no dia seguinte, rolasse uma desistência. Não rolou. Tive que sair às pressas, pelas ruas da cidade, procurando um hotel, visto que às 9 da manhã eu saí para um passeio de dia inteiro. Poucas opções, os melhores todos ocupados, acabei achando um que me pareceu legal, a mulher me mostrou rapidamente o quarto, que estava uma zorra porque hóspedes tinham acabado de sair, mas ela me assegurou que até a hora em que eu voltasse, no fim do dia, estaria "una beleza". Deixei minha bagagem na recepção e saí, só voltando quase 8 da noite, louco por um banho, uma comidinha e minha caminha.
Foi então que conheci, verdadeiramente, o quarto que tinha alugado. Ele estava arrumado, como prometido, mas o problema não era esse. O quarto era feio, muito feio. Os lençóis e fronhas deviam ser de três gerações anteriores, feios, encardidos, puídos. O colchão era um pedaço de espuma amassada, a cama rangia o tempo todo. O quarto tinha cheiro de mofo. O banheiro, era feio e mal cuidado. Do chuveiro, caíam 5 filetes de água, um para cada lado, encharcando todo o banheiro, e até parte do quarto, já que não havia cortina no que supostamente seria o boxe do chuveiro. Minha primeira vontade foi sair dali para um outro hotel, mas àquela hora da noite, depois de um dia inteiro exaustivo, e já sabendo que não havia fartura de acomodações na cidade, fiquei com preguiça. Deitei-me, dormi imediatamente, e felizmente a noite passou rápido, até mesmo porque às 5 da manhã eu já estava de pé pra ver se acabava logo com essa tortura. Como recompensa, no dia seguinte dei um significativo upgrade e me mudei, sem me preocupar com o preço, para um dos mais charmosos e diferenciados hotéis da região, uma lindíssima e confortável casa histórica restaurada.
O roteiro da viagem foi sendo feito a cada dia. Minha idéia inicial era me concentrar só em Oaxaca, e explorar a região. Mas aos poucos fui sentindo que teria muito tempo para isso, então comecei a pensar, a ler e a conversar sobre outras opções. Além do mais, Oaxaca vivia um clima de forte tensão pós-eleitoral. Cenas conhecidas. Um partido dominante há muitos anos, uma coligação formada para derrubá-lo. Durante todo o período pré-eleitoral, o governador em exercício foi acusado de usar a máquina administrativa a favor de seu candidato. Campanha eleitoral agitada, cheia de acusações, brigas, protestos. Os resultados mostraram uma diferença de menos de 0,5% a favor do candidato governista. Acusações de fraude, mais protestos. Brigas nas ruas, protestos nada amistosos, manifestações em frente ao palácio do governo, ao tribunal eleitoral. Ninguém se conforma, parece que vem mais agito por aí. Dizem que pode rolar um toque de recolher. Então, melhor mesmo que eu fosse vazando dali. Foi assim que me vi na fila para comprar uma passagem de Ônibus para San Cristobal de las Casas, já na região dos Chiapas, quase na selva onde o movimento zapatista se esconde, que sequer fazia parte dos meus planos originais de viagem.
Nessa região, dos Chiapas, surgiu e está localizado o Movimento Zapatista, um interessante movimento popular, que conta com simpatia da população e certa 'boa vontade' do poder público, que defende uma gestão democrática do território, a participação direta da população, a partilha da terra e da colheita. O movimento, embora ilegal, é "tolerado" pelas autoridades, especialmente por se localizarem numa região montanhosa e de selvas nas quais ninguém se arrisca muito. A região, por sinal, é belíssima, e a viagem culminou com uma visita a Palenque, umas impressionantes ruínas Mayas localizada no meio da selva).
Não importa quantas imagens e idéias pré-concebidas eu tivesse anteriormente do México - e todas elas, verdadeiras ou falsas, contribuem para o encantamento com esse país - a visita aqui, se realizada fora do circuito essencialmente turístico, revela muitas surpresas. Surpresas gastronônomicas, artísticas, culturais, pessoais... sem falar nas belíssimas riquezas naturais do país. É, definitivamente, um país que merece ser explorado e observado... com tempo, sem pressa... de preferência, sentado sob um sombrero, observando o mundo passar.
31 de agosto de 2004
5 de abril de 2004
Coréia, Abril de 2004 - O Banheiro
No meu primeiro dia em Jeju, Coréia, não pude deixar de lembrar-me do meu primeiro contato com a tecnologia sanitária desses países orientais avançados, ocorrido no Japão, em 1996. Repeti na Coréia o mesmo sentimento de idiotice e atraso que tive no Japão, ao me deparar com a ignorância do ser que não sabe usar um assento sanitário. Estava frio, muito frio, e sentar num vaso frio, quando já está muito frio, é sempre um sacrifício. Mas não, o assento é quentinho, deliciosamente quentinho, o suficiente para você querer ficar ali mais tempo. E assim fiquei, até que, encerradas as atividades que ali me levaram, fui dar descarga no vaso. E onde estava o botão da descarga? Procurei, procurei, até que meus olhos se depararam com um painel ao lado do vaso, cheio de botões e suas respectivas instruções, na língua local, é claro. De pé, com o espírito curioso que move o ser humano, apertei o primeiro botão. Um jato de água veio na minha cara e eu fiquei pensando onde ele iriar parar caso eu estivesse sentado. Apertei o segundo botão e o esguicho de água moveu-se para uma outra posição, de onde jorrou um novo jato. Resolvi apertar o terceiro botão, achando que não havia mais surpresas e, le voilà, de onde saíram os jatos de água saía agora um ventinho quente que, imaginei, fosse destinado a secar os jatos de água. Com medo de continuar me aventurando (ainda havia mais 15 botões, como pode-se ver na foto), resolvi ligar pra uma colega no quarto ao lado e perguntar, constrangido, se ela sabia onde dar descarga. Como mulher é muito mais esperta em coisas de banheiro do que os homens, ela simplesmente respondeu "na válvula atrás do vaso", que de fato existia, de maneira tão simples e tão independente daquele painel de alta tecnologia. Não sei até hoje se um dos 15 botões restantes não faria o mesmo serviço, mas resolvi deixar a exploração de lado, com medo de acidentes ainda mais constrangedores.
Algum tempo mais tarde, recebi pela internet uma piadinha que transcrevo aqui, por refletir bem esse ar de bestificação com que nós, brasileiros, podemos nos deparar nesses ambientes hi-tech:
"Uma senhora faz sua primeira viagem ao Japão! Tudo era novidade! Hospedou-se num luxuoso hotel 5 estrelas. Ao chegar em sua suite, sentou-se naquele luxuoso banheiro e, ao terminar, notou que faltava papel higiênico.
Revoltada, indignada, de dentro do banheiro mesmo interfonou para a recepcionista:
- Minha filha, isso é um absurdo, um hotel dessa categoria sem papel higiênico?!
- Desculpe-me senhora, não usamos mais esse tipo de material em nossos hotéis. Veja o painel ao seu lado. Aperte o primeiro botão à esquerda.
Ela, curiosa e sem graça, seguiu as instruções e, imediatamente, um delicioso jatinho de água morna foi esguichado em sua perereca.
- Senhora, agora aperte o segundo botão, ao lado.
Ela seguiu as instruções e, imediatamente, um ventinho quente rapidamente secou suas partes baixas, e exclamou:
- Que maravilha! Muito obrigado.
Mas a recepcionista lhe disse:
- Não acabou ainda, senhora. Aperte agora o terceiro botão.
Ela apertou e, maravilhada, viu uma borrifada de um delicioso perfume ser lançado entre suas pernas. Deslumbrada com toda aquela tecnologia, ela não se conteve e gritou em voz alta:
- C a r a a a a a a a l h o!
E ouviu como resposta da recepcionista:
- É só apertar o botão vermelho, senhora!"
4 de abril de 2004
Coréia, abril de 2004
Depois de passar uma longa temporada de viagens a trabalho sem chance de conhecer mais do que o hotel ou o centro de convenções, a inesperada esticada em Seul, Coréia, foi o ponto alto de uma reunião de trabalho em Jeju. Jeju é uma ilha famosa na Coréia e no exterior (bom, isso eu descobri depois) pelas suas belezas naturais, mas não me atraiu nem um pouco. Um turismo baseado em grandes resorts, de custos elevadíssimos, orientado a turistas de países ricos (a maioria japoneses), que não se incomodam de hospedar-se em uma ilha longe da vida e da população local do país. Até existe uma vila na ilha mas o visitante raramente precisará ou terá a chance de vê-la. Eu mesmo, durante três dias, apenas vi o meu hotel e os hotéis no caminho do belíssimo e eficiente centro de convenções de Jeju. Restaurantes, apenas os de hotel. Assim, quando vi que teria a chance de dar uma esticadinha de três dias, para o que escolhi Seul, a capital, deleitei-me ao ver uma cidade de verdade, com gente, ruas, comércio, restaurantes, e tive a sensação de que sair da Coréia sem essa chance teria sido uma grande injustiça na minha avaliação do país.
Infelizmente, não pude me preparar como gostaria para esses três dias em Seul. Visitar a Coréia requer conhecer, ainda que por alto, o que é o país, sua história, sua cultura, seu povo, sua religião, sua língua, sua arte. Eu sabia pouco, insuficiente para viver com mais intensidade esse outro lado do mundo que, como outros países asiáticos, mistura a modernidade com a tradição em cada esquina. Castelos, cenários de histórias de reis e dinastias, templos budistas e confucionistas, rituais milenares, restaurantes e casas de chá tradicionais, misturam-se com edifícios e automóveis modernos, sistemas de comunicação sofisticados, cadeias americanas de fast food e intrigantes vasos sanitários eletrônicos. Com tudo isso, mesmo sem conhecer previamente tudo que eu gostaria, essa parada não deixou de ser fascinante.
Em meio a tantas diferenças culturais, o maior obstáculo para um viajante na Coréia é, sem dúvida, a língua. Poucas pessoas falam um inglês minimamente compreensível, o que tornou em acessório quase inútil essa suposta ferramenta universal. A linguagem corporal, alternativa a que se apela nessas condições, nem sempre trazia bons resultados, conseqüência de significativas diferenças nos códigos culturais dos dois países. Me via algumas vezes, com gestos patéticos, e me deprimia ao olhar para o meu interlocutor e perceber que ele não entendia nada. Para piorar, o alfabeto coreano não facilita a tarefa de leitura, de localização de ruas ou de busca num dicionário. Tive que ter muito bom humor – não havia outro jeito – para lidar com cada situação do dia-a-dia.
Nos restaurantes, os cardápios raramente são escritos em inglês. Os garçons, apesar de sempre solícitos, não conseguem ajudar. Felizmente, encontrei um americano, trabalhando na Coréia, que escreveu em coreano, num pedaço de papel, que sou alérgico a frutos do mar, uma presença constante na comida local. Com todos esses cuidados, minha primeira noite num restaurante, acompanhado de amigos do trabalho, foi divertidíssima. Muito compenetrado, comecei a fazer perguntas sobre os pratos do cardápio. Depois, comecei a perguntar sobre os pratos que via nas mesas ao lado. Quando senti que estava pronto para fazer os pedidos o garçom saiu da mesa. Esperei para que ele voltasse e, quando ele começou a despejar pratos sobre a mesa, constatei que minhas perguntas tinham sido entendidas como pedidos. Um deles, inclusive, uma maravilhosa panqueca de frutos do mar com a qual se deleitaram meus companheiros. Passei, a partir daí, a tomar mais cuidado com as minhas perguntas.
As dificuldades de comunicação em inglês eram tão grandes que, a um ponto, comecei a falar sempre em português, às vezes com melhores resultados do que em inglês. Da mesma maneira, fingia que entendia quando os coreanos se dirigiam a mim em sua língua, sorrindo para eles e dizendo ‘yes’ a tudo, como eles fazem normalmente. O ponto alto dessa comunicação esdrúxula foi num desses restaurantes em que o garçom prepara a comida na sua frente. Ele vem, fica mexendo na panela, explica tudo em coreano, eu só falo ‘yes’, ele vai lá dentro, volta, mexe de novo, fala alguma coisa, eu falo ‘yes’, ele vai embora de novo, e você fica com aquela comida na sua frente sem saber se ele falou que já pode comer ou se você deve esperar alguns minutos para terminar de cozinhar.
No quarto do hotel, uma televisão de alta tecnologia apresentava mais de 40 canais, sendo 39 em coreano ou em japonês, o que para mim dava no mesmo. O canal em inglês era dedicado a negócios. Nos táxis, a aventura era ainda mais complexa, porque o sistema de endereçamento coreano é famoso por ser incompreensível até para eles. Por isso, a qualquer lugar que se vá, que não seja um ponto de referência conhecido, a apresentação de um mapa ao motorista é condição essencial, não só porque você não fala a língua dele, mas porque, mesmo que falasse, não ia conseguir fazê-lo chegar onde você quer. O melhor exemplo era o nosso hotel que, apesar do mapa fornecido pela recepção, jamais foi encontrado por nenhum motorista de táxi – todos me deixavam no ponto mais próximo a que conseguiam chegar, com base nas referências do mapa, e a partir daí eu ia a pé. Nas lojas, desisti de tentar fazer perguntas do tipo ‘de que é feito’, ‘de onde vem’e curiosidades do gênero e limitava-me ao universal ‘quanto custa?’ (esse eles entendiam!).
A região em que fiquei hospedado é, de longe, a mais atraente de Seoul: no centro da cidade, próximo à rua Insadong. Insadong é um verdadeiro museu ao ar livre. Uma rua com várias ruelas secundárias, onde se misturam restaurantes tradicionais, charmosíssimas casas de chá, galerias de arte e lojas de artesanato – desde as sofisticadas às quinquilharias. Difícil não ficar tentado a fazer extravagâncias com as belíssimas peças de porcelana, cerâmica, barro, papel, mármore. Em Insadong há raríssimos ocidentais, ainda menos que em outras partes de Seul mais ‘ocidentalizadas’. Os turistas, se existem, são japoneses, que não consigo diferenciar dos coreanos, seja na aparência física ou na língua. Essa rara ausência de ocidentais me tornou, contra o meu desejo, em uma figura facilmente reconhecível onde quer que eu voltasse, especialmente nas lojas.
Saindo de Insadong para visitar castelos, museus, templos, mercados de rua, percebe-se um país organizado, limpo, seguro. Os índices de criminalidade são baixíssimos, o que permite o luxo de ficar andando de noite mesmo em áreas que, em outra cidade, me dariam medo. Creio que o visível policiamento ostensivo em toda a cidade é mais para repelir as esporádicas manifestações políticas do que para reprimir a violência, mas não deixa de ajudar. A segurança e a limpeza estendem-se a um mercado de rua aberto 24 horas, Namdaemun, onde mais de 3000 lojinhas vendem de tudo um pouco - inclusive as inevitáveis grifes falsificadas - sem a insuportável necessidade de ficar pechinchando por coisas das quais você não tem a menor referência de valor. Não há menção, ali, à existência de trombadinhas ou de pedintes nas ruas.
O metrô da cidade é outro símbolo da limpeza, da ordem, da segurança e da eficiência coreanas, super abrangente, cobrindo toda a cidade – dá inveja em brasileiros! E, ainda no trânsito, não posso deixar de mencionar os motoristas de táxi sempre honestos e educados e, símbolo máximo de civilidade, a sensação de me ver dentro de um táxi na hora do rush, cercado por milhões de outros carros impedidos de se locomoverem pelas condições do transito, e simplesmente não ouvir buzinas. Inevitável me perguntar se toda essa ordem vem de uma recente ditadura militar ou se provém de hábitos de uma população historicamente disciplinada, educada, dotada de outros valores, padrões e códigos de conduta.
Aos poucos, fui lendo, conversando e conhecendo um pouco mais sobre o País que, no seu formato atual, foi criado há pouco tempo, logo após o fim da II Guerra Mundial. Logo após sua criação, passou por uma devastadora guerra com a Coréia do Norte, cujas marcas são até hoje visíveis em tudo que se faz e se vê e que cria uma tensão permanente entre os dois países. Sem qualquer juízo de valor, impossível não me perguntar o que faz um país como a Coréia ter um desenvolvimento econômico e social tão intenso e rápido enquanto nos resignamos no Brasil à já irritante noção de ‘país do futuro’. Há cerca de vinte e poucos anos, o governo coreano propôs um modelo de desenvolvimento para o país: investir pesadamente em educação – o que resultou num nível de analfabetismo próximo de zero – e priorizar duas áreas industriais – informática e comunicações e química fina. O modelo parece ter funcionado, a se julgar pelo que se vê, se lê e se ouve no país. Isso não quer dizer que seja tudo perfeito, e a política local nos é bastante familiar, dominada pelos pouquíssimos grupos econômicos que controlam o país, por freqüentes acusações de corrupção e, atualmente, marcada por um processo de impeachment do presidente do país.
Um capítulo à parte para o Memorial de Guerra da Coréia, uma criação impressionante e inacreditável em todos os sentidos, enorme e sofisticada, concebida para armazenar um museu que relembra a história das guerras de que participou a Coréia. Do lado de fora, aviões, helicópteros, submarinos e tanques originais. Por dentro, um assombroso show de recursos visuais, auditivos e tecnológicos que asseguram intensidade e realismo às reconstituições que ali se fazem. Há até mesmo uma simulação de um campo de batalha, em que você se vê, sente, ouve e cheira como se na guerra estivesse. As contradições desse ambiente são flagrantes. A música que ecoa pelos jardins repletos de máquinas de guerra é uma apaziguadora música clássica. Num museu de temática tão ‘adulta’, a maior parte do público eram crianças, fotografadas por seus pais enquanto posavam alegres ao lado de canhões e bombardeiros. Lá dentro, uma ala do museu é voltada especificamente às crianças.
É difícil para um brasileiro fazer qualquer juízo de valor sobre as atitudes e valores de um povo que foi atingido por guerras tão fortes em diversos estágios de sua existência. Difícil, também, enxergar, nos simpáticos e tranqüilos coreanos com que me encontro no dia-a-dia, os bravos soldados retratados na história das guerras. Por isso, não posso concluir se esse memorial, que me causou ao mesmo tempo admiração e repulsa, ao assegurar a memória das guerras coreanas, é a banalização da guerra – transformando-a num tema objeto de brincadeiras infantis – ou a sua sacralização, com a correspondente atribuição de importância que merece na história e na formação do país.
Entrando em temas mais leves, a ida a um restaurante ou a uma casa de chá coreanos é um estímulo a todos os sentidos. Começa pela visão de um ambiente simples, despojado, sóbrio, mas aconchegante e de extremo bom gosto. O aquecimento dos lugares – sim, esqueci de dizer que a Coréia é muito fria - utiliza o tradicional sistema ondol, em que os pisos são aquecidos por baixo, o que torna ainda mais agradável a sensação de comer sentado no chão ouvindo uma relaxante música coreana. E, na hora de comer, começam a vir aqueles pequenos pratinhos de comida, sopa, grelhados, legumes, vegetais, saladas, todos servidos numa combinação visual bastante interessante, a maioria saborosos e não identificáveis, mas sempre incluindo o identificável e inicialmente intragável kimchi (acelga apimentada, uma espécie de prato nacional).
A melhor dessas experiências foi no Sanchon, um restaurante vegetariano budista, cujo proprietário é um antigo monge - uma verdadeira orgia gastronômica e visual. Mas nem mesmo ali consegui comer alguma sobremesa, simplesmente ausente das refeições coreanas. Por isso, meus jantares terminavam numa das inúmeras casas de chá da rua Insadong, qualquer uma delas – todas são charmosas, acolhedoras, com decoração suave e boa música. Todas têm o mesmo cardápio, chás, apenas chás, e nelas as pessoas se reúnem apenas para isso, tomar chá. Algumas poucas ainda oferecem um docinho, mas preferível seria ter escapado à tentação de experimentar o intragável e sem graça bolinho de arroz (só comparável em mal gosto ao doce de feijão japonês).
E por falar em prazeres, não poderia deixar de mencionar minha última noite em Seul. A fim de ficar mais próximo do transporte para o aeroporto no dia seguinte, que seria muito cedo, me mudei de hotel. Na recepção, não notei nada, mas quando encontrei uma cama redonda no meu quarto, percebi que não era exatamente um hotel convencional. Depois, fui percebendo os espelhos, o forro de plástico na cama, a recepção sempre cheia de casais recebendo e devolvendo chaves, e concluí que estava num motel em pleno centro da cidade. A recepção é disfarçada (no máximo, me dei conta depois, ficava próximo a alguns inferninhos locais), mas o quarto tem até uma luzinha vermelha (aliás, minto, SÓ tinha uma luzinha vermelha). E, à noite, finalmente, nos quartos vizinhos, consegui ouvir dos coreanos ruídos mais compreensíveis do que os emitidos por eles quando tentavam conversar comigo. O único inconveniente foi passar a noite com frio, uma vez que a única coberta disponível era um cobertor que, provavelmente, não era lavado desde a inauguração do m(h)otel. A parte boa foi descobrir que, nesse quesito, estamos mais perto dos asiáticos do que dos norte-americanos, que simplesmente ainda não descobriram esse conceito de motel.
Enfim, fantástico estar em Seul, a despeito de minha relutância e preconceito com relação às cidades grandes. Seul tem seu encanto, que resiste aos padrões forçados da globalização. É um país onde pude ver, conhecer, comer, sentir, ouvir, apreciar artes, culturas, comidas, músicas – coisas diferentes de tudo que já havia encontrado em outros lugares. Enquanto for assim, não perco a capacidade de me deslumbrar com o novo. Ainda não entrei na assustadora fase de acreditar que não tenho mais o que conhecer ou de achar que tudo se parece. Por isso, renovo-me nessa viagem. E com a renovada capacidade de me deslumbrar.
Infelizmente, não pude me preparar como gostaria para esses três dias em Seul. Visitar a Coréia requer conhecer, ainda que por alto, o que é o país, sua história, sua cultura, seu povo, sua religião, sua língua, sua arte. Eu sabia pouco, insuficiente para viver com mais intensidade esse outro lado do mundo que, como outros países asiáticos, mistura a modernidade com a tradição em cada esquina. Castelos, cenários de histórias de reis e dinastias, templos budistas e confucionistas, rituais milenares, restaurantes e casas de chá tradicionais, misturam-se com edifícios e automóveis modernos, sistemas de comunicação sofisticados, cadeias americanas de fast food e intrigantes vasos sanitários eletrônicos. Com tudo isso, mesmo sem conhecer previamente tudo que eu gostaria, essa parada não deixou de ser fascinante.
Em meio a tantas diferenças culturais, o maior obstáculo para um viajante na Coréia é, sem dúvida, a língua. Poucas pessoas falam um inglês minimamente compreensível, o que tornou em acessório quase inútil essa suposta ferramenta universal. A linguagem corporal, alternativa a que se apela nessas condições, nem sempre trazia bons resultados, conseqüência de significativas diferenças nos códigos culturais dos dois países. Me via algumas vezes, com gestos patéticos, e me deprimia ao olhar para o meu interlocutor e perceber que ele não entendia nada. Para piorar, o alfabeto coreano não facilita a tarefa de leitura, de localização de ruas ou de busca num dicionário. Tive que ter muito bom humor – não havia outro jeito – para lidar com cada situação do dia-a-dia.
Nos restaurantes, os cardápios raramente são escritos em inglês. Os garçons, apesar de sempre solícitos, não conseguem ajudar. Felizmente, encontrei um americano, trabalhando na Coréia, que escreveu em coreano, num pedaço de papel, que sou alérgico a frutos do mar, uma presença constante na comida local. Com todos esses cuidados, minha primeira noite num restaurante, acompanhado de amigos do trabalho, foi divertidíssima. Muito compenetrado, comecei a fazer perguntas sobre os pratos do cardápio. Depois, comecei a perguntar sobre os pratos que via nas mesas ao lado. Quando senti que estava pronto para fazer os pedidos o garçom saiu da mesa. Esperei para que ele voltasse e, quando ele começou a despejar pratos sobre a mesa, constatei que minhas perguntas tinham sido entendidas como pedidos. Um deles, inclusive, uma maravilhosa panqueca de frutos do mar com a qual se deleitaram meus companheiros. Passei, a partir daí, a tomar mais cuidado com as minhas perguntas.
As dificuldades de comunicação em inglês eram tão grandes que, a um ponto, comecei a falar sempre em português, às vezes com melhores resultados do que em inglês. Da mesma maneira, fingia que entendia quando os coreanos se dirigiam a mim em sua língua, sorrindo para eles e dizendo ‘yes’ a tudo, como eles fazem normalmente. O ponto alto dessa comunicação esdrúxula foi num desses restaurantes em que o garçom prepara a comida na sua frente. Ele vem, fica mexendo na panela, explica tudo em coreano, eu só falo ‘yes’, ele vai lá dentro, volta, mexe de novo, fala alguma coisa, eu falo ‘yes’, ele vai embora de novo, e você fica com aquela comida na sua frente sem saber se ele falou que já pode comer ou se você deve esperar alguns minutos para terminar de cozinhar.
No quarto do hotel, uma televisão de alta tecnologia apresentava mais de 40 canais, sendo 39 em coreano ou em japonês, o que para mim dava no mesmo. O canal em inglês era dedicado a negócios. Nos táxis, a aventura era ainda mais complexa, porque o sistema de endereçamento coreano é famoso por ser incompreensível até para eles. Por isso, a qualquer lugar que se vá, que não seja um ponto de referência conhecido, a apresentação de um mapa ao motorista é condição essencial, não só porque você não fala a língua dele, mas porque, mesmo que falasse, não ia conseguir fazê-lo chegar onde você quer. O melhor exemplo era o nosso hotel que, apesar do mapa fornecido pela recepção, jamais foi encontrado por nenhum motorista de táxi – todos me deixavam no ponto mais próximo a que conseguiam chegar, com base nas referências do mapa, e a partir daí eu ia a pé. Nas lojas, desisti de tentar fazer perguntas do tipo ‘de que é feito’, ‘de onde vem’e curiosidades do gênero e limitava-me ao universal ‘quanto custa?’ (esse eles entendiam!).
A região em que fiquei hospedado é, de longe, a mais atraente de Seoul: no centro da cidade, próximo à rua Insadong. Insadong é um verdadeiro museu ao ar livre. Uma rua com várias ruelas secundárias, onde se misturam restaurantes tradicionais, charmosíssimas casas de chá, galerias de arte e lojas de artesanato – desde as sofisticadas às quinquilharias. Difícil não ficar tentado a fazer extravagâncias com as belíssimas peças de porcelana, cerâmica, barro, papel, mármore. Em Insadong há raríssimos ocidentais, ainda menos que em outras partes de Seul mais ‘ocidentalizadas’. Os turistas, se existem, são japoneses, que não consigo diferenciar dos coreanos, seja na aparência física ou na língua. Essa rara ausência de ocidentais me tornou, contra o meu desejo, em uma figura facilmente reconhecível onde quer que eu voltasse, especialmente nas lojas.
Saindo de Insadong para visitar castelos, museus, templos, mercados de rua, percebe-se um país organizado, limpo, seguro. Os índices de criminalidade são baixíssimos, o que permite o luxo de ficar andando de noite mesmo em áreas que, em outra cidade, me dariam medo. Creio que o visível policiamento ostensivo em toda a cidade é mais para repelir as esporádicas manifestações políticas do que para reprimir a violência, mas não deixa de ajudar. A segurança e a limpeza estendem-se a um mercado de rua aberto 24 horas, Namdaemun, onde mais de 3000 lojinhas vendem de tudo um pouco - inclusive as inevitáveis grifes falsificadas - sem a insuportável necessidade de ficar pechinchando por coisas das quais você não tem a menor referência de valor. Não há menção, ali, à existência de trombadinhas ou de pedintes nas ruas.
O metrô da cidade é outro símbolo da limpeza, da ordem, da segurança e da eficiência coreanas, super abrangente, cobrindo toda a cidade – dá inveja em brasileiros! E, ainda no trânsito, não posso deixar de mencionar os motoristas de táxi sempre honestos e educados e, símbolo máximo de civilidade, a sensação de me ver dentro de um táxi na hora do rush, cercado por milhões de outros carros impedidos de se locomoverem pelas condições do transito, e simplesmente não ouvir buzinas. Inevitável me perguntar se toda essa ordem vem de uma recente ditadura militar ou se provém de hábitos de uma população historicamente disciplinada, educada, dotada de outros valores, padrões e códigos de conduta.
Aos poucos, fui lendo, conversando e conhecendo um pouco mais sobre o País que, no seu formato atual, foi criado há pouco tempo, logo após o fim da II Guerra Mundial. Logo após sua criação, passou por uma devastadora guerra com a Coréia do Norte, cujas marcas são até hoje visíveis em tudo que se faz e se vê e que cria uma tensão permanente entre os dois países. Sem qualquer juízo de valor, impossível não me perguntar o que faz um país como a Coréia ter um desenvolvimento econômico e social tão intenso e rápido enquanto nos resignamos no Brasil à já irritante noção de ‘país do futuro’. Há cerca de vinte e poucos anos, o governo coreano propôs um modelo de desenvolvimento para o país: investir pesadamente em educação – o que resultou num nível de analfabetismo próximo de zero – e priorizar duas áreas industriais – informática e comunicações e química fina. O modelo parece ter funcionado, a se julgar pelo que se vê, se lê e se ouve no país. Isso não quer dizer que seja tudo perfeito, e a política local nos é bastante familiar, dominada pelos pouquíssimos grupos econômicos que controlam o país, por freqüentes acusações de corrupção e, atualmente, marcada por um processo de impeachment do presidente do país.
Um capítulo à parte para o Memorial de Guerra da Coréia, uma criação impressionante e inacreditável em todos os sentidos, enorme e sofisticada, concebida para armazenar um museu que relembra a história das guerras de que participou a Coréia. Do lado de fora, aviões, helicópteros, submarinos e tanques originais. Por dentro, um assombroso show de recursos visuais, auditivos e tecnológicos que asseguram intensidade e realismo às reconstituições que ali se fazem. Há até mesmo uma simulação de um campo de batalha, em que você se vê, sente, ouve e cheira como se na guerra estivesse. As contradições desse ambiente são flagrantes. A música que ecoa pelos jardins repletos de máquinas de guerra é uma apaziguadora música clássica. Num museu de temática tão ‘adulta’, a maior parte do público eram crianças, fotografadas por seus pais enquanto posavam alegres ao lado de canhões e bombardeiros. Lá dentro, uma ala do museu é voltada especificamente às crianças.
É difícil para um brasileiro fazer qualquer juízo de valor sobre as atitudes e valores de um povo que foi atingido por guerras tão fortes em diversos estágios de sua existência. Difícil, também, enxergar, nos simpáticos e tranqüilos coreanos com que me encontro no dia-a-dia, os bravos soldados retratados na história das guerras. Por isso, não posso concluir se esse memorial, que me causou ao mesmo tempo admiração e repulsa, ao assegurar a memória das guerras coreanas, é a banalização da guerra – transformando-a num tema objeto de brincadeiras infantis – ou a sua sacralização, com a correspondente atribuição de importância que merece na história e na formação do país.
Entrando em temas mais leves, a ida a um restaurante ou a uma casa de chá coreanos é um estímulo a todos os sentidos. Começa pela visão de um ambiente simples, despojado, sóbrio, mas aconchegante e de extremo bom gosto. O aquecimento dos lugares – sim, esqueci de dizer que a Coréia é muito fria - utiliza o tradicional sistema ondol, em que os pisos são aquecidos por baixo, o que torna ainda mais agradável a sensação de comer sentado no chão ouvindo uma relaxante música coreana. E, na hora de comer, começam a vir aqueles pequenos pratinhos de comida, sopa, grelhados, legumes, vegetais, saladas, todos servidos numa combinação visual bastante interessante, a maioria saborosos e não identificáveis, mas sempre incluindo o identificável e inicialmente intragável kimchi (acelga apimentada, uma espécie de prato nacional).
A melhor dessas experiências foi no Sanchon, um restaurante vegetariano budista, cujo proprietário é um antigo monge - uma verdadeira orgia gastronômica e visual. Mas nem mesmo ali consegui comer alguma sobremesa, simplesmente ausente das refeições coreanas. Por isso, meus jantares terminavam numa das inúmeras casas de chá da rua Insadong, qualquer uma delas – todas são charmosas, acolhedoras, com decoração suave e boa música. Todas têm o mesmo cardápio, chás, apenas chás, e nelas as pessoas se reúnem apenas para isso, tomar chá. Algumas poucas ainda oferecem um docinho, mas preferível seria ter escapado à tentação de experimentar o intragável e sem graça bolinho de arroz (só comparável em mal gosto ao doce de feijão japonês).
E por falar em prazeres, não poderia deixar de mencionar minha última noite em Seul. A fim de ficar mais próximo do transporte para o aeroporto no dia seguinte, que seria muito cedo, me mudei de hotel. Na recepção, não notei nada, mas quando encontrei uma cama redonda no meu quarto, percebi que não era exatamente um hotel convencional. Depois, fui percebendo os espelhos, o forro de plástico na cama, a recepção sempre cheia de casais recebendo e devolvendo chaves, e concluí que estava num motel em pleno centro da cidade. A recepção é disfarçada (no máximo, me dei conta depois, ficava próximo a alguns inferninhos locais), mas o quarto tem até uma luzinha vermelha (aliás, minto, SÓ tinha uma luzinha vermelha). E, à noite, finalmente, nos quartos vizinhos, consegui ouvir dos coreanos ruídos mais compreensíveis do que os emitidos por eles quando tentavam conversar comigo. O único inconveniente foi passar a noite com frio, uma vez que a única coberta disponível era um cobertor que, provavelmente, não era lavado desde a inauguração do m(h)otel. A parte boa foi descobrir que, nesse quesito, estamos mais perto dos asiáticos do que dos norte-americanos, que simplesmente ainda não descobriram esse conceito de motel.
Enfim, fantástico estar em Seul, a despeito de minha relutância e preconceito com relação às cidades grandes. Seul tem seu encanto, que resiste aos padrões forçados da globalização. É um país onde pude ver, conhecer, comer, sentir, ouvir, apreciar artes, culturas, comidas, músicas – coisas diferentes de tudo que já havia encontrado em outros lugares. Enquanto for assim, não perco a capacidade de me deslumbrar com o novo. Ainda não entrei na assustadora fase de acreditar que não tenho mais o que conhecer ou de achar que tudo se parece. Por isso, renovo-me nessa viagem. E com a renovada capacidade de me deslumbrar.
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