Montreal, Canadá, Dezembro... Tá frio aqui... muito frio. Um frio que eu ainda não havia conhecido, nem mesmo nos morros cobertos de neve por onde já andei caminhando. Um frio que te faz precisar de informações para tomar decisões sobre o seu dia. Um frio que dá até pra entender aquela mania norte-americana de não fazer nada sem antes olhar a meteorologia. Na hora em que escrevo, às 9 da manhã, o termômetro registra 12 graus negativos. E a tal da sensação térmica, que é uma medida que junta a temperatura e o vento pra dizer quanto que na verdade tá parecendo, é de 18 graus negativos.
Está na hora de sair pro Centro de Convenções, que fica a apenas 5 minutos daqui, caminhando. Perto o suficiente para nenhum taxista querer te levar numa corrida de não mais do que 2 minutos - ou levar com muita má vontade. Mas longe o suficiente para caminhar a 12 graus negativos. E se, no meio do caminho, vc encontra um sinal fechado, esses dois minutos até que se abra novamente são intermináveis.
A grande vantagem do frio é que eu fico bonito... muito bonito. Quando coloco o meu cachecol, o meu pulôver, o meu sobretudo, me olho no espelho e pergunto “espelho, espelho meu, existe alguém mais gostoso, bonito e elegante do que eu?”... o espelho fica embasbacado, sem resposta, sem palavras... mas isso é porque o espelho não consegue ver que, por baixo disso tudo, ainda vai uma ceroula, um camisetão e uma meia bem grossa, tudo sem charme algum. O espelho também não vê quando, já na rua, coloco a luva e a touquinha que me fazem parecer um marginal decadente de 3a categoria...
Mas a inevitável pergunta é: como um povo vive num país em que essa temperatura não é exceção, é quase regra? Naturalmente, eles se adaptam. Montreal tem uma extensa rede de galerias subterrâneas, verdadeiros shopping centers por baixo da terra, por onde as pessoas circulam. Não é à toa que não se vê quase ninguém nas ruas, tá todo mundo enterrado. Além disso, os hotéis, centros de conferência, restaurantes, bares, tudo que é fechado, tem sistemas de aquecimento altamente eficientes. O resultado prático disso é que quando você sai da rua e entra num desses lugares, começa um verdadeiro strip tease... tira a touca, tira as luvas, tira o cachecol, tira o pulôver, e assim vai tirando... numa dessas situações, o restaurante estava tão quente que tive que ir ao banheiro tirar o ceroulão que já tava me assando.
O mais interessante é olhar o sol brilhando pela janela. É quase com ingenuidade que eu olho prá fora e fico com vontade de sair andando pelas ruas... impossível entender como um sol lindo daquele convive com uma temperatura de 12 graus negativos. Peguei pouca neve até agora. Neve é aquela coisa que a gente acha linda quando vê cair pela janela, mas que na hora que você tá andando na rua, com um sapato brasileiro não preparado para ela, escorregando no chão e congelando seu pé, ela perde toda a beleza romântica dos filmes de Natal americanos, e se torna um suplício. Nada de guerrinha de bola de neve ou de bonecos de neve.
Como costuma acontecer nessas viagens a trabalho, sobre a cidade de Montreal, além dos 12 graus negativos, do hotel e do centro de conferências, pouco posso dizer. Sei que há bons restaurantes, bares de jazz, casas de show, shoppings, mas, como costuma acontecer nessas viagens, não só não há tempo para essas explorações, como o frio terrível que faz à noite, ao fim de todas as tarefas, não encoraja grandes aventuras exploratórias.
Mas isso aqui não é lugar para trabalhar. É lugar para comer bem, tomar um bom vinho, beijar na boca, comer chocolate, ler perto da lareira, dormir numa cama gostosa, tomar um banho de banheira... ou tudo isso junto, não necessariamente nessa ordem...
20 de dezembro de 2005
30 de novembro de 2005
Nairobi, Quenia - A África Errada - Novembro 2005
Agora, estou em Nairobi, no Quenia. O pior dessa viagem, alem de nao encontrar chocolate e internet, tem sido explicar para quem eu encontro por que eh que o Brasil aprovou o comercio de armas, uma coisa que soh boa para bandidos e para a elite. Mas essa eh outra discussao. A viagem tá sendo boa mesmo eh prá eu contar prá quem acha que minha vida de viajante é uma maravilha. Na minha recente fase Polyanna, eu até estava achando tudo lindo e maravilhoso, naquela de que, se tem que ser assim, que seja. E que eu tire o melhor disso. E foi mais ou menos o que aconteceu na China, que foi uma super cansativa – acho que estou cansado daquela viagem até hoje, sem nem me recuperar dos fusos horários – mas foi uma viagem interessante, com bastante trabalho mas também com a chance de conhecer algumas coisas interessantes do país.
Mas essa aqui, não há Polyanna que resista. Eu até vim animadinho, porque, apesar do longuíssimo vôo, em três trechos, o trecho mais longo (de quase 10 horas) foi o mais confortável vôo que já peguei em todas essas viagens. Poltronas ótimas, grande espaço entre assentos, boa comida, tudo tava indo bem. Até a hora em que cheguei ao hotel. Dizem que o hotel é um tal de hotel-escola da cidade, mas se for eles ainda têm muito que aprender até começar a ensinar.
Já começou no check in. Depois de tantas viagens, já percebi que vc sabe mais ou menos o que esperar de um hotel pelo que vc encontra no check in. Aqui foi um processo lento, burocrático, confuso, até que eu recebesse a chave do quarto. O quarto correspondeu às expectativas que eu comecei a ter já no check in... horrível. Um carpete fedorento, lençóis velhos, móveis antigos e em mal estado, paredes precisando de uma boa pintura, cortinas empoeiradas. Num lugar de extremos de calor, surpreende não ter um ar condicionado nem um ventilador. Frigobar com água gelada, nem pensar. E o tolinho aqui ainda perguntou na recepção se havia internet no quarto. Finalmente, no teto, um romântico mosquiteiro pendia sobre a cama, o que prometia uma noite cheia de mosquitos dados os furinhos na tela do mosquiteiro.
A vista que me tinham descrevido como a principal atraçao do hotel era desoladora. De fato, uma bela piscina numa área verde extensa e até simpática. À volta da piscina, um cenário típico desses filmes africanos, tipo Out of África, onde um bando de empregados negros, vestidos imaculadamente de brancos, deslizam entre as mesas servindo abonados cidadãos deitados sobre as espreguiçadeiras. O detalhe é que muitos dos cidadãos eram também negros, e depois vim a descobrir que o hotel era uma espécie de clube local, onde a elite abonada pode pagar mensalmente para usar as instalações. E logo na divisa do hotel, ao fundo da minha privilegiada vista, uma enorme favela, provavelmente residência de muitos dos empregados do hotel.
O banheiro, a começar pela iluminação, extremamente pobre, que só pode ser intencional para que não se perceba o tom escurecido dos azulejos. Mas isso não foi nada até o momento em que descobri, tarde demais, que a água quente só existia até 11 horas da noite. Enfim, um daqueles hotéis em que vc chega e decide que no dia seguinte vai embora. Mas no dia seguinte, na correria do trabalho, cheio de compromissos e correndo muito, vc começa a pensar que não vale a pena esse esforço todo por apenas 3 noites. Mas que acabam por serem três noites longe de serem as noites mais interessantes da minha vida.
No trabalho, o velho esquema. Passar o dia inteiro em reunioes no centro de convencoes. Até aí, nada de diferente, muito trabalho, a velha dificuldade de ficar mudando de língua o tempo todo e, confesso, até muito mais trabalho do que eu previa para essa viagem. Mas isso nem me incomoda, faz parte. O que me incomoda mesmo é encarar o absolutamente almoço buffet no único restaurante disponível. O que se tornou ainda pior considerado o igualmente intragável café da manhã no hotel, onde, imagino, os pães servidos deveriam até ter sido gostosos há uns 10 dias atrás, quando devem ter sido feitos.
Entao, essa viagem está longe de ser qualquer coisa que eu possa recomendar a alguém de quem eu goste, embora a África, em si, seja um continente fascinante em termos de vida selvagem, música, cultura, comida, artes... é apenas que, dessa vez, eu vim prá África errada.
Mas essa aqui, não há Polyanna que resista. Eu até vim animadinho, porque, apesar do longuíssimo vôo, em três trechos, o trecho mais longo (de quase 10 horas) foi o mais confortável vôo que já peguei em todas essas viagens. Poltronas ótimas, grande espaço entre assentos, boa comida, tudo tava indo bem. Até a hora em que cheguei ao hotel. Dizem que o hotel é um tal de hotel-escola da cidade, mas se for eles ainda têm muito que aprender até começar a ensinar.
Já começou no check in. Depois de tantas viagens, já percebi que vc sabe mais ou menos o que esperar de um hotel pelo que vc encontra no check in. Aqui foi um processo lento, burocrático, confuso, até que eu recebesse a chave do quarto. O quarto correspondeu às expectativas que eu comecei a ter já no check in... horrível. Um carpete fedorento, lençóis velhos, móveis antigos e em mal estado, paredes precisando de uma boa pintura, cortinas empoeiradas. Num lugar de extremos de calor, surpreende não ter um ar condicionado nem um ventilador. Frigobar com água gelada, nem pensar. E o tolinho aqui ainda perguntou na recepção se havia internet no quarto. Finalmente, no teto, um romântico mosquiteiro pendia sobre a cama, o que prometia uma noite cheia de mosquitos dados os furinhos na tela do mosquiteiro.
A vista que me tinham descrevido como a principal atraçao do hotel era desoladora. De fato, uma bela piscina numa área verde extensa e até simpática. À volta da piscina, um cenário típico desses filmes africanos, tipo Out of África, onde um bando de empregados negros, vestidos imaculadamente de brancos, deslizam entre as mesas servindo abonados cidadãos deitados sobre as espreguiçadeiras. O detalhe é que muitos dos cidadãos eram também negros, e depois vim a descobrir que o hotel era uma espécie de clube local, onde a elite abonada pode pagar mensalmente para usar as instalações. E logo na divisa do hotel, ao fundo da minha privilegiada vista, uma enorme favela, provavelmente residência de muitos dos empregados do hotel.
O banheiro, a começar pela iluminação, extremamente pobre, que só pode ser intencional para que não se perceba o tom escurecido dos azulejos. Mas isso não foi nada até o momento em que descobri, tarde demais, que a água quente só existia até 11 horas da noite. Enfim, um daqueles hotéis em que vc chega e decide que no dia seguinte vai embora. Mas no dia seguinte, na correria do trabalho, cheio de compromissos e correndo muito, vc começa a pensar que não vale a pena esse esforço todo por apenas 3 noites. Mas que acabam por serem três noites longe de serem as noites mais interessantes da minha vida.
No trabalho, o velho esquema. Passar o dia inteiro em reunioes no centro de convencoes. Até aí, nada de diferente, muito trabalho, a velha dificuldade de ficar mudando de língua o tempo todo e, confesso, até muito mais trabalho do que eu previa para essa viagem. Mas isso nem me incomoda, faz parte. O que me incomoda mesmo é encarar o absolutamente almoço buffet no único restaurante disponível. O que se tornou ainda pior considerado o igualmente intragável café da manhã no hotel, onde, imagino, os pães servidos deveriam até ter sido gostosos há uns 10 dias atrás, quando devem ter sido feitos.
Entao, essa viagem está longe de ser qualquer coisa que eu possa recomendar a alguém de quem eu goste, embora a África, em si, seja um continente fascinante em termos de vida selvagem, música, cultura, comida, artes... é apenas que, dessa vez, eu vim prá África errada.
30 de outubro de 2005
China, Outubro de 2005
China, Um Relatório não Oficial!
Em minhas andanças pelo mundo, a China sempre esteve entre as prioridades dos lugares a visitar. Por diversas razões, essa viagem nunca aconteceu até o dia em que precisei ir à China, a trabalho. Apesar de nem todo mundo acreditar que essas viagens a trabalho raramente contêm componentes de prazer, frustrei-me antecipadamente por saber que a viagem não seria exatamente como eu havia imaginado um dia estar na China - um mochileiro solto pelo país, com minhas indefectíveis botas, bermudas e camiseta, andando a pé, de ônibus, trem, navio, bicicleta e tuc-tuc, e me hospedando em simpáticas pousadas pelo interior do país. Durante os preparativos para a viagem, eu conseguia antever os meus sentimentos ao visitar um país tão diverso, mas no qual eu estaria preso a formalidades institucionais, com seus devidos rituais, hospedado em hotéis ocidentalizados, alimentando-me exclusivamente em refeições de trabalho, vestido de terno e gravadade.
A diferença entre uma viagem de trabalho e uma de lazer já se inicia na fase do planejamento. Ao contrário de uma viagem de férias, em que me preocupo mais com o conteúdo do que com a forma (interessa-me mais saber o que vou ver e encontrar do que como vou fazer ou onde vou me hospedar), tive que me preocupar, na preparação dessa viagem, com aspectos e detalhes logísticos inerentes a uma viagem de trabalho e, no caso particular, com aqueles que expressam as diferenças culturais entre Brasil e China. Isso se traduziu, especialmente, no contato diário com a Embaixada da China no Brasil, em que as noções de 'timing' dos dois povos se mostraram bem aparentes. Os chineses, organizados e previdentes, queriam, com bastante antecedência, informações e detalhes de nossa visita que, simplesmente, não éramos capazes de fornecer com tamanha antecipação (horários de vôos, medidas das roupas que a Ministra usaria na cerimônia especial, minuta do acordo de cooperação, cópia do discurso que seria pronunciado pela Ministra, etc. Os chineses certamente se desesperaram com nossa falta de respostas tanto quanto nós nos desesperamos por, diariamente, não ter as respostas que nos eram solicitadas.
Em minhas andanças pelo mundo, a China sempre esteve entre as prioridades dos lugares a visitar. Por diversas razões, essa viagem nunca aconteceu até o dia em que precisei ir à China, a trabalho. Apesar de nem todo mundo acreditar que essas viagens a trabalho raramente contêm componentes de prazer, frustrei-me antecipadamente por saber que a viagem não seria exatamente como eu havia imaginado um dia estar na China - um mochileiro solto pelo país, com minhas indefectíveis botas, bermudas e camiseta, andando a pé, de ônibus, trem, navio, bicicleta e tuc-tuc, e me hospedando em simpáticas pousadas pelo interior do país. Durante os preparativos para a viagem, eu conseguia antever os meus sentimentos ao visitar um país tão diverso, mas no qual eu estaria preso a formalidades institucionais, com seus devidos rituais, hospedado em hotéis ocidentalizados, alimentando-me exclusivamente em refeições de trabalho, vestido de terno e gravadade.
A diferença entre uma viagem de trabalho e uma de lazer já se inicia na fase do planejamento. Ao contrário de uma viagem de férias, em que me preocupo mais com o conteúdo do que com a forma (interessa-me mais saber o que vou ver e encontrar do que como vou fazer ou onde vou me hospedar), tive que me preocupar, na preparação dessa viagem, com aspectos e detalhes logísticos inerentes a uma viagem de trabalho e, no caso particular, com aqueles que expressam as diferenças culturais entre Brasil e China. Isso se traduziu, especialmente, no contato diário com a Embaixada da China no Brasil, em que as noções de 'timing' dos dois povos se mostraram bem aparentes. Os chineses, organizados e previdentes, queriam, com bastante antecedência, informações e detalhes de nossa visita que, simplesmente, não éramos capazes de fornecer com tamanha antecipação (horários de vôos, medidas das roupas que a Ministra usaria na cerimônia especial, minuta do acordo de cooperação, cópia do discurso que seria pronunciado pela Ministra, etc. Os chineses certamente se desesperaram com nossa falta de respostas tanto quanto nós nos desesperamos por, diariamente, não ter as respostas que nos eram solicitadas.
Da parte dos chineses, pelo menos um mês antes da viagem, já tínhamos detalhes completos da agenda que a Ministra cumpriria, com níveis de detalhe que nos pareciam exagerados, repetidos em diversos momentos para assegurar que havia plena compreensão de tudo que aconteceria por lá. Já sabíamos onde nos hospedaríamos, quem encontraríamos em cada hora de cada dia, que autoridades participariam de cada evento, o que e onde comeríamos, quem nos acompanharia, quem seria o intérprete, tudo já estava definido com antecedência.
De nossa parte, porém, o exemplo mais evidente dessa diferença cultural foi o discurso da Ministra. Eles precisavam, com antecedência, para tradução no dia da cerimônia, do discurso escrito da Ministra. De uma Ministra que, frequentemente, fala de improviso de acordo com o 'clima' do evento e que, quando faz um discurso lido, ele é finalizado no avião ou no hotel, quando não na manhã do dia do evento. Isso era incompreensível para os chineses, que ficavam perplexos e, às vezes, irritados com a falta de materialização do discurso. Essa cobrança por parte deles foi se tornando um elemento de tensão nos preparativos para a viagem e somente no dia da dita cuja, um pouco antes de irmos para o aeroporto, conseguimos apresentar-lhes uma minuta do discurso, o qual poderia ser traduzido nos dois longos dias que duraria a nossa viagem (tempo, aliás, que certamente seria utilizado para fazer modificações no discurso, o que geraria uma nova onda de desespero quando desembarcássemos com a nova versão).
Entre os preparativos incomuns para a viagem, tive que lidar com uma cerimônia de ‘troca de presentes’ entre os Ministros. A primeira limitação, aqui, era como contornar o obstáculo do hipócrito impedimento legal que tem um Ministro de Estado no Brasil para adquirir um presente para um seu contraparte numa situação como essa. Depois, há que se imaginar o que presentear, dadas as diferenças tão gritantes de valores estéticos e culturais entre os dois povos. Finalmente, é essencial que se tenha a noção de diferenças culturais importantes como não oferecer um presente com embrulho branco, cor que simboliza a morte, nem abrir o presente recebido na frente de quem o ofereceu.
Passada a fase dos preparativos, vem a viagem propriamente dita. Do embarque em Brasília até o desembarque em Beijing (mais conhecida na minha geração como Pequim), são mais de 30 horas, entre horas de aeroporto e horas de avião. E são também onze horas de diferença em relação ao Brasil, de forma que chegamos a Beijing praticamente dois dias depois de ter saído de Brasília. Um trajeto tão longo quanto esse é particularmente nocivo quando a duração da viagem é curta - seriam dois dias viajando, dois dias na China e dois dias viajando de volta. Não é preciso dize que, durante os dias na China, dormia fora de hora e acordava na hora de dormir (o que valeu comentários irônicos da Ministra sobre a dificuldade de encontrar os meus olhos abertos durante um jantar de trabalho em que necessitava de uma informação, num dia em que quase caí sobre a mesa de tanto sono). E quando eu já estava me acostumando ao horário, estava na hora de voltar. Por isso, bom mesmo é o sofisticado sistema de compensação contra o jet lag da Ministra: quando tá escuro ela dorme, quando tá claro ela acorda. E funciona!
Chegamos a Beijing por volta do horário do almoço e nossa agenda oficial se iniciava no dia seguinte. Tínhamos a opção de descansar da longa viagem, o que pareceria natural, mas não resistimos à opção que nos foi oferecida de aproveitar aquela tarde para visitar a Grande Muralha. A Grande Muralha habita minha imaginação desde minhas primeiras aulas de história. Naquela época, acreditava-se ainda no mito, hoje desmentido, de que, da lua, se podia ver a Muralha (mas a informação ainda está nos livros escolares chineses). Não havia como perder aquela oportunidade, mesmo não sendo um dia perfeito: tava nublado, o que nos impediu de ver aquela imagem clássica da Muralha serpenteando nas montanhas a perder de vista. Gostaria, também, de saber como são feitas as fotos, imagens e documentários que sempre me mostraram a Grande Muralha deserta e silenciosa: no dia em que fomos havia uma multidão de chineses que falavam e tiravam fotos ao mesmo tempo, praticamente nos impedindo de qualquer registro fotográfico em que não estivéssemos cercados de chineses por todos os lados. Mesmo assim foi emocionante ver uma pequena parte dos quase 6700 km de uma muralha que varre a China de leste a oeste, cobrindo desertos, montanhas, pastos e planaltos, com mais de 2000 anos de fascinantes histórias. No auge de seu papel de proteger a China de invasões estrangeiras, a muralha contou com mais de um milhão de soldados espalhados ao longo de sua extensão.
As outras atrações turísticas que tivemos a chance de visitar – a Cidade Proibida e o Palácio de Verão – igualmente impressionam pela imponência, mas igualmente irritam pelas multidões de visitantes. Nesse aspecto, a China não é especialmente diferente de outros lugares no mundo de grande atração turística, mas o problema se agravava em função de estarmos num país com uma população de mais de 1.300.000.000 habitantes que, finalmente, começam a descobrir os prazeres do consumo (incluindo viajar).
Na Grande Muralha, tivemos o primeiro de vários episódios engraçadíssimos relacionados à tradução, o que não é de surpreender consideradas as diferenças entre uma língua de origem latina e uma outra cuja estrutura é totalmente diferente, incluindo o fato de que, na sua versão escrita, é feita por mais de 40.000 caracteres diferentes (ainda que apenas 10.000 deles sejam comumente utilizados). Assim, mais do que traduzir palavras ou frases, a missão de nosso intérprete era traduzir idéias. Com o seu português aprendido em uma temporada em Moçambique, nosso intérprete, um educado e atencioso jovem, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, nem sempre conseguiu traduzir com perfeição as idéias.
Durante a visita à Grande Muralha, a Ministra, querendo estabelecer diálogo com o funcionário do Ministério de Florestas que nos acompanhava, tratava de diversos temas da área ambiental. Em certo momento, a Ministra perguntou se a China tinha problemas com espécies exóticas invasoras, um termo que qualquer pessoa da área ambiental conhece bem. O intérprete, que não era da área ambiental, traduziu a pergunta e a inesperada e cômica resposta foi uma detalhada reconstituição das diversas invasões sofridas pelos chineses e as razões que levaram à construção da Grande Muralha.
Em outro momento divertido, o intérprete traduziu as restrições alimentares da Ministra como 'tabus'. A dieta da Ministra é sempre um motivo de preocupação, mas, no caso dos chineses, com hábitos alimentares bem diferentes dos nossos, nossos cuidados se redobraram. Mesmo assim, não foi possível relaxar em relação a esse aspecto da viagem porque cada refeição era um banquete com mais de 10 pratos diferente servidos em sequência e, em virtude das dificuldades de tradução de termos bem específicos, nem sempre conseguíamos ter a noção exata dos componentes de cada prato, forçando a Ministra a recusar os pratos com os quais não se sentia segura. Da minha parte, diverti-me experimentando a interessante culinária chinesa, tão diferente dos restaurantes chineses a que me habituei no mundo ocidental, mas tive que encarar o insuportável conceito de "frutas frescas" como sobremesa. Tá bom, não precisava ser um profiteroles, um petit gateau ou um brownie, mas podia ser ao menos uma banana ou maçã caramelizada, como a gente se acostumou a ver nos restaurantes chineses no Brasil.
Obviamente, numa viagem de caráter oficial como essa, não se tem a oportunidade de conhecer detalhes da vida do país. A famosa questão dos direitos humanos na China passa, assim, ao largo da nossa capacidade de observação. Mesmo assim, tivemos um episódio fantástico com nosso intérprete, quando passávamos em frente à Praça Tianamen. Para quem não se lembra, foi nessa praça que, em 1989, houve um histórico massacre de estudantes que se reuniam em protesto. O número de mortos, na ocasião, varia de 300 a 6000, conforme a fonte. Minha vontade era conhecer a versão oficial do governo chinês e, por isso, perguntei ao nosso intérprete se poderia me falar um pouco sobre a revolta dos estudantes na praça. O diálogo que se seguiu foi surreal. Na maior cara de pau, ele me perguntou ‘revolta de quem?’. Eu respondi ‘dos estudantes’. E ele continuou, ‘quando?’. Eu disse ‘em 1989’. Ele não perdeu a pose: ‘onde?’. Diante da minha insistência, e das evidências de que o fato era inegável, ele me respondeu, torturado, com um jeitinho vaselina e filosófico: ‘isso é uma coisa muito complexa; mil palavras não poderiam explicar; melhor perguntar à sua Embaixada para receber uma explicação’.
Vim a saber, depois, que esse tópico desapareceu completamente de qualquer meio de comunicação na China (incluindo livros, revistas, jornais, internet). É um tópico proibido pelo Governo Chinês. É comum que jovens chineses sejam completamente ignorantes sobre o episódio. Dessa forma, não surpreende a reação do jovem diplomata chinês: para ele, o massacre de Tianamem não existiu!
A viagem se encerrou com uma breve passagem por um shopping center que, segundo nosso amigo intérprete, era o maior shopping center da Ásia. Um ícone do capitalismo no maior país comunista do mundo. Não demorou muito, no entanto, para descobrirmos que nenhuma loja do maior shopping center da Ásia no maior país comunista do mundo aceitava cartões de crédito internacionais. Esse não foi o único, mas foi o mais expressivo exemplo das contradições que o gigante comunista ainda enfrenta em sua lenta e gradual transição à economia de mercado.
A China impressiona por qualquer aspecto que se possa examiná-la. Seja a enorme população, seja a cultura milenar, sejam as imponentes construções, sejam as contradições entre o comunismo e o livre mercado, entre a suposta liberdade e o autoritarismo do regime, seja a asfixiante burocracia estatal. Não dá, contudo, para ser indiferente. Não dá para passar por aqui sem ser tocado por algum aspecto de um país que provavelmente será, em poucos anos, a maior economia do planeta. A dúvida que me fica é como eles vão fazer para continuar manobrando e controlando com autoritarismo mais de um bilhão de chineses, num mundo ao qual a China tão rapidamente se expõe. Mas isso fica pra outra viagem... de preferência, não oficial!
A viagem se encerrou com uma breve passagem por um shopping center que, segundo nosso amigo intérprete, era o maior shopping center da Ásia. Um ícone do capitalismo no maior país comunista do mundo. Não demorou muito, no entanto, para descobrirmos que nenhuma loja do maior shopping center da Ásia no maior país comunista do mundo aceitava cartões de crédito internacionais. Esse não foi o único, mas foi o mais expressivo exemplo das contradições que o gigante comunista ainda enfrenta em sua lenta e gradual transição à economia de mercado.
A China impressiona por qualquer aspecto que se possa examiná-la. Seja a enorme população, seja a cultura milenar, sejam as imponentes construções, sejam as contradições entre o comunismo e o livre mercado, entre a suposta liberdade e o autoritarismo do regime, seja a asfixiante burocracia estatal. Não dá, contudo, para ser indiferente. Não dá para passar por aqui sem ser tocado por algum aspecto de um país que provavelmente será, em poucos anos, a maior economia do planeta. A dúvida que me fica é como eles vão fazer para continuar manobrando e controlando com autoritarismo mais de um bilhão de chineses, num mundo ao qual a China tão rapidamente se expõe. Mas isso fica pra outra viagem... de preferência, não oficial!
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Bem depois de minha viagem, li sobre os sofisticados mecanismos que o governo chinês utiliza para censurar a internet. Essa censura se faz por meio de uma ampla variedade de leis e regulamentos administrativos, vigorasamente implementados por organizações, empresas e provedores estatais de internet. Estima-se que a força tarefa da polícia da internet na China seja composta de mais de 30.000 pessoas, que atuam como censores e monitores. Comentários críticos em sítios da internet, foruns de discussão, blogs, etc, são usualmente apagados em segundos. Além da força tarefa especialmente designada para essa censura, e-mails, sites, blogs são censurados por pelos provedores de internet, que pertencem todos ao governo. O método é baseado na mesma tecnologia que bloqueia spams, por meio de palavras-chaves. A seguinte lista de palavras-chaves acionará o sistema de filtragem, bloqueando o acesso a qualquer conteúdo que as contenha: revolução, igualdade, liberdade, justiça, taiwan, tibet, falun gong, dissidente, dst (doenças sexualmente transmissíveis), democracia, direitos humanos.
18 de agosto de 2005
Montevidéu, Uruguai, 18 de agosto de 2005 – Encontros e Desencontros
18 de agosto, acabo de chegar de um delicioso jantar pós dia de trabalho, em que saboreei um belo vinho na companhia de alguns colegas de trabalho. Não era o motivo, eu até preferia que ninguém soubesse, mas o jantar terminou sendo também uma celebração de meu aniversário. Vários dos presentes não comporiam uma lista pequena de convidados para uma celebração, de forma que vi o jantar mais como uma refeição qualquer num dia de trabalho qualquer numa viagem a serviço qualquer, do que como celebração propriamente dita.
Mais uma viagem e não é porque é meu aniversário que ela me incomoda. É apenas mais uma no meio de tantas que já aconteceram neste ano e das muitas que ainda vão acontecer. Serão ainda muitas horas de vôo, de aeroporto, de arrumação de mala, de hotel. Enquanto olhava o mar pela janela, neste fim de noite, a sensação de impessoalidade de que se revestem essas viagens me fez lembrar do ótimo filme Encontros e Desencontros, que fala dessa sensação de estranhamento num outro país (Japão). Me senti como aquele personagem do Bill Murray, e me lembrei daquela antológica cena onde ele se senta na cama do hotel, olhar perdido, tentando encontrar-se em algum ponto perdido no horizonte. A foto dessa cena, anexa, poderia ter sido tirada de mim agora.
A sensação de que participo de uma reunião que, a rigor, poderia realizar-se em qualquer lugar, sem que isso fizesse diferença, é muito estranha. Os hotéis são todos parecidos, as camas, os banheiros, o café da manhã. As reuniões se realizam em lugares semelhantes, as refeições são cada vez mais “globalizadas”. As viagens se assemelham em tudo que têm de ruim, o mesmo atendimento ruim em todas as companhias, as filas para o check in, para o raio x, para a migração, para entrar no avião, para sair do avião, para a migração novamente,para pegar as malas (se elas chegarem!), para a alfândega, para o táxi, para o check in no hotel.
O nível de individuação das pessoas com que encontro é cada vez menor, é um ambiente onde todos falam as mesmas línguas, conversam os mesmos assuntos, discutem sobre os mesmos temas, usam as mesmas roupas. Será tão medíocre assim o resultado da globalização? Busco não perder, nunca, meu olhar para as diferenças. As diferenças de povos, línguas, culturas, comidas, música, trajes, artesanato, tudo isso é - ainda - diferente de um lugar para o outro e, sempre que possível, me deleito em ver essas diferenças. Mas descobri que isso é infinitamente mais fácil numa viagem de prazer do que numa viagem de trabalho.
Nessas viagens a trabalho, as diferenças são cada vez menores. Principalmente porque não sobra tempo para ver as diferenças que efetivamente fazem a diferença. Aqui em Montevidéu por exemplo. Três dias de reunião e não conversei ainda, de verdade, com um só uruguaio, a não ser em salas de trabalho. Não vi nada que possa dizer ser tipicamente uruguaio, sua vida, seus costumes, sua música, sua comida. Nada que me diga, de maneira categoria e inconfundível, que estou em Montevidéu e não em Buenos Aires ou Assunção. O hotel, o local das reuniões, as pessoas que delas participam, as refeições, tudo acontece aqui, mas podia ser em Brasília, sem que ninguém notasse a diferença.
A noite é sempre a minha grande esperança. De sair, ver algo novo, conhecer um bairro típico, uma comida tradicional, ver gente local. Mas nem isso é sempre possível. Uma vez é a preguiça e o cansaço, outra vez é um jantar de trabalho, outra vez é a conciliação com os colegas de trabalho, e com freqüência me vejo simplesmente jantando, num lugar qualquer, igual a outro qualquer.
Tá bom, acho que exagerei. Deve ser mesmo o tal do aniversário que, por menos importância que lhe dê, acaba trazendo essa aura de reflexão existencialista todos os anos. E eu que sempre achei viajar o grande prazer da vida, me vejo assim reclamando. É tudo isso que falei, sim, mas há ganhos também. Tenho aprendido muito, conhecido gente, crescido profissionalmente. Em alguns casos (poucos) dá até prá pensar que eu faço alguma diferença por estar ou não estar num determinado lugar. Nesses poucos casos, o prazer é maior.
Hora de dormir... o importante é nunca me perder de mim mesmo... o importante é promover um processo de individuação permanente em mim mesmo... tudo pode ser igual, mas enquanto eu for eu mesmo, ainda há esperança. Como diria o Leminski, “Essa mania de a gente ser exatamente como a gente é ainda vai nos levar mais além”.
Mais uma viagem e não é porque é meu aniversário que ela me incomoda. É apenas mais uma no meio de tantas que já aconteceram neste ano e das muitas que ainda vão acontecer. Serão ainda muitas horas de vôo, de aeroporto, de arrumação de mala, de hotel. Enquanto olhava o mar pela janela, neste fim de noite, a sensação de impessoalidade de que se revestem essas viagens me fez lembrar do ótimo filme Encontros e Desencontros, que fala dessa sensação de estranhamento num outro país (Japão). Me senti como aquele personagem do Bill Murray, e me lembrei daquela antológica cena onde ele se senta na cama do hotel, olhar perdido, tentando encontrar-se em algum ponto perdido no horizonte. A foto dessa cena, anexa, poderia ter sido tirada de mim agora.
A sensação de que participo de uma reunião que, a rigor, poderia realizar-se em qualquer lugar, sem que isso fizesse diferença, é muito estranha. Os hotéis são todos parecidos, as camas, os banheiros, o café da manhã. As reuniões se realizam em lugares semelhantes, as refeições são cada vez mais “globalizadas”. As viagens se assemelham em tudo que têm de ruim, o mesmo atendimento ruim em todas as companhias, as filas para o check in, para o raio x, para a migração, para entrar no avião, para sair do avião, para a migração novamente,para pegar as malas (se elas chegarem!), para a alfândega, para o táxi, para o check in no hotel.
O nível de individuação das pessoas com que encontro é cada vez menor, é um ambiente onde todos falam as mesmas línguas, conversam os mesmos assuntos, discutem sobre os mesmos temas, usam as mesmas roupas. Será tão medíocre assim o resultado da globalização? Busco não perder, nunca, meu olhar para as diferenças. As diferenças de povos, línguas, culturas, comidas, música, trajes, artesanato, tudo isso é - ainda - diferente de um lugar para o outro e, sempre que possível, me deleito em ver essas diferenças. Mas descobri que isso é infinitamente mais fácil numa viagem de prazer do que numa viagem de trabalho.
Nessas viagens a trabalho, as diferenças são cada vez menores. Principalmente porque não sobra tempo para ver as diferenças que efetivamente fazem a diferença. Aqui em Montevidéu por exemplo. Três dias de reunião e não conversei ainda, de verdade, com um só uruguaio, a não ser em salas de trabalho. Não vi nada que possa dizer ser tipicamente uruguaio, sua vida, seus costumes, sua música, sua comida. Nada que me diga, de maneira categoria e inconfundível, que estou em Montevidéu e não em Buenos Aires ou Assunção. O hotel, o local das reuniões, as pessoas que delas participam, as refeições, tudo acontece aqui, mas podia ser em Brasília, sem que ninguém notasse a diferença.
A noite é sempre a minha grande esperança. De sair, ver algo novo, conhecer um bairro típico, uma comida tradicional, ver gente local. Mas nem isso é sempre possível. Uma vez é a preguiça e o cansaço, outra vez é um jantar de trabalho, outra vez é a conciliação com os colegas de trabalho, e com freqüência me vejo simplesmente jantando, num lugar qualquer, igual a outro qualquer.
Tá bom, acho que exagerei. Deve ser mesmo o tal do aniversário que, por menos importância que lhe dê, acaba trazendo essa aura de reflexão existencialista todos os anos. E eu que sempre achei viajar o grande prazer da vida, me vejo assim reclamando. É tudo isso que falei, sim, mas há ganhos também. Tenho aprendido muito, conhecido gente, crescido profissionalmente. Em alguns casos (poucos) dá até prá pensar que eu faço alguma diferença por estar ou não estar num determinado lugar. Nesses poucos casos, o prazer é maior.
Hora de dormir... o importante é nunca me perder de mim mesmo... o importante é promover um processo de individuação permanente em mim mesmo... tudo pode ser igual, mas enquanto eu for eu mesmo, ainda há esperança. Como diria o Leminski, “Essa mania de a gente ser exatamente como a gente é ainda vai nos levar mais além”.
31 de março de 2005
Marrocos, março de 2005
Casablanca, Marrakesh. A gente cresce ouvindo coisas do tipo "prá lá de Marrakesh" sem saber exatamente o que quer dizer nem onde fica a tal da Marrakesh. Cresce vendo - ou ouvindo falar - de Casablanca, o filme, com Humphrey Bogart, ouvindo "As Time Goes By" e fazendo brincadeirinhas de "Play it Again Sam". Mas na hora que chega aqui nada disso parece fazer sentido. Primeiro porque Casablanca não tem nada que, ainda que remotamente, lembre o filme (descobri aqui que o filme Casablanca foi inteiramente rodado na Califórnia, que decepção!). Segundo porque "prá lá de Marrakesh" só faz sentido quando você tá muito longe e, agora, estando aqui do lado, o que é mesmo que quer dizer isso?
Mas a chegada em Casablanca traz todos os tipos de emoções que essas viagens exóticas trazem consigo: expectativa, curiosidade, ansiedade e, claro, também certa insegurança. Tem que aprender os códigos locais, saber como se vai de um lugar pro outro, saber o que pedir pra comer, aprender a sobreviver com outra língua, outra cultura, tudo outro.
Tenho, naturalmente, que me despir dos preconceitos contra os franceses e contra a língua francesa. Isso não é exatamente fácil neste exato momento, em que me engalfinho com um irritante teclado francês (por que é que os franceses têm que ser diferentes até nisso?). Já no embarque, num vôo da Air France, começou a irritação ao ver que uma menina carregava no colo uma jaulinha de cachorro, que latia sem parar. Não acreditei que ela ia viajar todo o vôo com aquele cachorro e pensei "só podia ser coisa de francês, num vôo da Air France". Paguei a língua. Os comissários, em bloco, impuseram que a menina deixasse a gaiolinha no porão do avião, mas ela não aceitou. Depois de muita negociação, minha surpresa: a menina preferiu sair do avião, e assim saiu cheia de dignidade, carregando sua jaulinha. E a maior surpresa: era uma brasileira. Ou seja, essa babaquice francesa com os cães se acha no Brasil também.
Bom, gostando ou não de francês, é com as poucas palavras que conheço que vou ter que me virar aqui (o que é mais fácil do que me virar com árabe ;-). Não tem muita gente falando inglês por aqui, o que é perdoável; afinal eles não têm culpa de terem sido colonizados pelos franceses. Com meu parco francês, já consegui até tomar um chá de menta, o que me lembrou do delicioso e açucarado chá de menta que eu tomava num boteco libanês quando eu morava em Londres. Com toda essa falta de habilidade lingüística, até agora não me perdi, não morri de fome, nem deixei de perguntar a ninguém 'onde é', 'quanto custa' e coisas do gênero. Com meu francês de primeiro grau e com a boa vontade dos marroquinos, eu vou chegando lá.
O melhor num começo de viagem é se perder. Chegar ao hotel, tomar banho, andar pela rua, tomar um chá de menta num café a beira da calçada. Esse primeiro dia, então, é apenas pra relaxar da longa jornada, sentir os primeiros sons, cheiros, cores, sabores do lugar. Amanhã começa a exploração pra valer.
= = = = =
É bom não perder a capacidade de me deslumbrar, de me fascinar. Lembro-me de quando comecei uma longa viagem, que duraria seis meses, logo após o meu mestrado, e Sereen me disse que, depois de viajar um pouco, perde-se a capacidade de se deslumbrar, de se fascinar com as coisas, os lugares começam a ficar todos iguais. Fiquei com aquilo encucado, pensando se seria assim mesmo, até que, semanas depois, me encontrei mergulhando no Mar Vermelho e, ao ver aqueles recifes de corais, com vegetação e fauna multicolorida, uma visão deslumbrante, chorei no fundo do mar, emocionado com aquela beleza única, e percebi, fascinado e deslumbrado, que não tinha perdido a capacidade de me fascinar e de me deslumbrar.
E agora, no Marrocos, bom ver isso de novo. Depois de passar por alguns países árabes, outros muçulmanos, outros africanos, vejo que o Marrocos é tão árabe, tão muçulmano ou tão africano quanto os outros, mas é também tão único que me deslumbra em cada curva de estrada, em cada ruela de suas cidadezinhas imperiais (as medinas), e até mesmo em suas ruínas romanas (esses caras estão em todas, né?). É bom também descobrir que a novela brasileira que tornou o Marrocos tão próximo do imaginário coletivo brasileiro quanto Cancun e Aruba não é tão real assim. O Marrocos verdadeiro é bem diferente.
Dos franceses, os marroquinos herdaram muita coisa, entre o que há de melhor, destaca-se o prazer de comer, incluindo os charmosos cafés nas calçadas das ruas e os pães, deliciosos comparados com o que se encontra nessas viagens. Como nem tudo é perfeito, os marroquinos herdaram, também, dos franceses, aqueles insuportáveis chuveiros, compostos de uma mangueirinha pendurada na banheira, onde você tem que tomar banho, se ensaboar, se equilibrar e segurar a ducha com apenas duas mãos.
A comida, seja numa birosquinha bem simples ou num restaurante mais sofisticado, é sempre ótima. Bom, sou suspeito para falar isso, porque o carro-chefe aqui é o carneiro, e carneiro é comigo mesmo. Então, é tagine de carneiro, couscous de carneiro, kafta de carneiro... Para beber, arrisquei, com resultados abaixo da crítica, o vinho marroquino. A cerveja local não é, também, nada de excepcional. Acabo, então, ficando mesmo no delicioso chá de menta, refrescante mesmo quente.
Os cafés nas calçadas constituem uma verdadeira instituição nacional. Como na França, curto o delicioso prazer de simplesmente sentar-me, olhar o povo passar e tomar chá de menta. Peço um bule, abro um livro, meu caderno de anotações, e duas horas se passam sem que eu sequer perceba. Não há mulheres nesses cafés, apenas homens, ou, no máximo, alguma turista, mas sempre acompanhada por um homem. As mesas têm as cadeiras todas voltadas para frente, de forma que ninguém se senta de costas para a rua. Há dezenas desses cafés, e todos servem apenas chá e café, nada de comida; não consigo acreditar que sobrevivam apenas vendendo chá e café.
A recomendação aqui é não expor os joelhos e os ombros - ou seja, nada de bermudas ou de camiseta regata. Sofro mais pelas bermudas, mas nada que me incomode muito. Na verdade, estamos saindo do inverno aqui, está calor, mas um calor absolutamente suportável, em torno de 24 graus. O povo usa muita roupa aqui, os homens estão sempre vestindo uma camisa, um sweater e um casaco, faça a temperatura que fizer. Coisa de doido.
No grupo com que estou viajando, o destaque fica para uma babá inglesa e um marceneiro australiano, ambos bem jovens.. Fiquei imaginando quando que uma babá ou um marceneiro no Brasil poderiam fazer uma viagem dessas. São pessoas cultas, não ricas, moram decentemente no subúrbio, mas ganham dignamente para economizar e fazer uma viagem dessas. Fantástico.
Impressionante, quando viajo, minha capacidade de me desligar do mundo. Ao contrário do normal, tenho sonhado muito aqui. Quer dizer, sonhar eu sonho sempre, mas aqui tenho me lembrado muito dos meus sonhos. E são sempre sonhos legais, de gente querida, de coisas boas, algumas nostalgias, nada ruim. Bom dormir assim, dá prá relaxar pelo menos até as 5 horas da manhã, quando as mesquitas da cidade, com seus potentes alto-falantes, começam a chamar para as primeiras orações do dia. É assim cinco vezes por dia, como em qualquer país muçulmano. A prece das 5 da manhã é mais marcante por me tirar de um delicioso sono ao qual nem sempre consigo retornar.
Hoje passei o dia explorando a medina (cidade velha) de Fes, um lugar labiríntico, onde você parece voltar à idade média, um comércio onde o sujeito faz os produtos e vende ao mesmo tempo, onde a barganha é o segredo das compras. Ali, as ruelas têm apenas um metro de largura e freqüentemente você tem que se espremer na parede para deixar passar os jumentos que são o principal meio de carga. Há muitos turistas mas, mais do que eles, há um fluxo infernal de gente local que vai ali comprar de tudo. Uma experiência fascinante, com especial destaque para os tanques de tingimento de couros, onde se preparam as pecas de couro que são vendidas para os artesãos locais. Como se vê na foto anexa, do alto de um terraço vizinho, dá pra ver as dezenas de tanques de todas as cores, em que as peles de animais são mergulhadas para serem tingidas e depois transformadas nas belíssimas peças de couro que são vendidas nos mercados.
Por falar em mercados, o Marrocos é uma tentação para quem gosta de coisas diferentes. O problema é que tudo de que gosto é pesado e volumoso. E viajando por várias cidades, de trem ou de ônibus, com uma mochila nas costas, não dá para pensar em comprar nada. Meu prazer, então, é olhar (se é que alguém consegue ter muito prazer ao olhar alguma coisa num mercado sem ser imediatamente assediado pelos comerciantes). E passeio pelas ruas dos mercados, resistindo heroicamente à tentação de comprar um tampo de mesa em mosaico, uma luminária de ferro ou uma peça de porcelana.
Saio dessa onda de consumo e parto para alguma coisa menos urbana, um trekking de dois dias no deserto do Alto Delta. O lado mais legal dessa experiência foi simplesmente ter dado conta dela. Com a vida sedentária que ando levando, esse era o meu maior receio. Por isso, ter encerrado os três dias de caminhada sem fazer feio foi motivo de grande celebração. A caminhada era menor do que outras que já fiz, mas muito mais do que qualquer tipo de exercício que ando fazendo recentemente (cerca de três a cinco horas por dia de caminhada, subindo e descendo). Os visuais eram absolutamente fascinantes para que eu sequer pensasse em fraquejar.
Passei por vilarejos bem pequenos, desses onde não passa turista, e as pessoas te olham com um ar meio esquisito, como se você fosse um ET por conta das roupas, botas, sandálias, chapéu, seja lá o que você estiver usando. E a gente ainda acha que estranhos são eles com aquelas roupas compridas, algumas cobrindo até a cabeça, naquela calor de rachar. Nesses lugares, andei ficando em acomodações bastante precárias, algumas camas e colchões não exatamente confortáveis, alguns lençóis já sem condições de uso e, provavelmente, sem serem lavados já há alguns meses. Em outros lugares, a falta de conforto continuava, mas eram lugares simpáticos, limpos, charmosos, as vezes velhas construções reformadas.
No meio do caminho, parávamos em casas de nômades, de berbers (uma das raças locais), e sempre rolava aquele ritual de sentar num tapete empoeirado e ser servido de um chá de menta onde a cor da água só era disfarçada pela cor da própria menta. Quando dava para entornar disfarçadamente, tudo bem, mas de vez em quando tinha que engolir e rezar para o organismo digerir seja lá o que fosse que entrasse. O mesmo valia para o pão que distribuíam, que passava de mão em mão, e era depois pousado sobre o tapete empoeirado.
Com toda minha birra da língua francesa, senti falta dela para interagir mais com as pessoas que encontrei pelo caminho. As vezes me via em diálogos surreais com pessoas que não me entendiam e a quem eu não entendia. De alguma forma, nos fazíamos compreender. Isso valia para essas paradas esporádicas - embora nesses casos nem francês adiantasse muito -, para as compras, para pedir informações, para escolher a comida no restaurante ou simplesmente para bater papo com algum curioso - em geral crianças.
Por alguma razão que ainda não consegui plenamente compreender, o deserto realmente exerce um fascínio grande sobre mim (deve ser efeito das inúmeras releituras do Pequeno Príncipe na infância ;-). No deserto, tenho a deliciosa sensação de não ver nada, não ouvir nada, apenas ver e sentir o vazio. Um lugar que me faz sentir pleno, consciente da minha pequenez, em que me conecto comigo mesmo ou com uma entidade superior, e me desconecto do mundo, da vida, das pessoas, do resto. Tive várias dessas oportunidades durante a viagem, e cada uma era uma boa chance desse encontro.
Foram dias gostosos no deserto, caminhadas, trens, jumentos, passeando por desertos que foram surpreendentemente diferentes de outros desertos por onde já passei. São desertos montanhosos, repletos de vales férteis, picos cobertos de neve (não esperava ver neve no Marrocos), além de vilarejos pendurados nas montanhas, como se favelas do Rio fossem.
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De volta do deserto, um inglês comentou “de volta à civilização!”. Eu, que estava adorando estar no deserto, não gostei do comentário, mas adorei me encontrar em um lugar “civilizado”, onde eu tivesse acesso à internet. De qualquer maneira, foi bom, depois, ter uma conversa descontraída com o inglês sobre o que é ou não ser civilizado, especialmente quando se visita um pais tão rico em cultura, em arte, em conhecimentos tradicionais, e fazemos as inevitáveis comparações com os nossos próprios padrões culturais e de desenvolvimento.
Embora eu e o inglês comentássemos sobre as diferenças culturais entre o nosso ocidente e o Marrocos, não eram menores as diferenças entre mim e ele. Senti isso quando falei que tinha uma empregada em casa. Foi interessante observar a sua exaltada reação, que parecia tentar entender se eu era um rico oficial do governo, provavelmente vivendo à custa da corrupção típica dos países em desenvolvimento, se eu tinha trabalho escravo em casa ou se, afinal, o Brasil era um símbolo de civilização, com excelente qualidade de vida. Depois de muita conversa, ele começa a entender que ter uma empregada não é necessariamente um sinal de civilização; pelo contrário, é apenas um sinal de riqueza perversamente distribuída e que não é necessário ser rico para ter uma. Depois, conversando sobre o mesmo assunto num jantar com mais pessoas, confesso que não pude esconder um risinho de satisfação ao ver aqueles ingleses todos morrendo de inveja de mim, dos meu almoços em casa, do meu café da manha pronto quando acordo, da roupa lavada e passada, enquanto eles tem que encarar um terceiro expediente para ter tudo isso, sem a mesma qualidade.
O Marrocos surpreende na diversidade à medida que se anda de uma cidade para outra, e andei por muitas. Mudam as cores e o estilo das roupas, mudam as músicas, mudam os dialetos, mudam as cores das casas, mudam os cheiros. Um verdadeiro espetáculo para os sentidos. Não dá para ficar indiferente, não dá para não ficar virando os olhos de um lado para o outro à procura da próxima pessoa, do próximo traje, da próxima cor, do próximo cheiro, da próxima porta ou janela, da próxima ruela.
Só não mudou muito a comida que, apesar de saborosa, no fim se mostra absurdamente repetitiva: todos os cardápios, de norte a sul, são variações em torno dos mesmos temas: tagine, couscous, omelete. Sobremesa, que é bom, nem pensar. Ou melhor, existe, mas é igualmente repetitiva e composta de frutas da estação (quem foi que algum dia inventou que frutas da estação podem ser classificadas como sobremesa?) ou iogurte (Danone, sempre! E iogurte, é sobremesa?). Nos lugares mais sofisticados, a fruta da estação é substituída por uma salada de laranja fatiada polvilhada com canela, uma combinação interessante, ou por iogurte caseiro, em geral bem gostoso, mas que caberia melhor numa mesa de café da manhã.
O país é bastante explorado turisticamente, o que quer dizer que, mesmo em lugares remotos, acabo cruzando com um ou outro gringo, em geral franceses.. Há também espanhóis que cruzam, de carro, o Estreito de Gibraltar, e vêm passear por aqui. Não vi um brasileiro até agora, mas é interessante ver as reações dos marroquinos às minhas camisetas com cores ou bandeiras do Brasil. São reações simpáticas, naturalmente com referências a Ronaldo, Ronaldinho, Romário. Uma reação divertida foi a de um motorista de táxi que, passando em frente ao melhor hotel de Casablanca, e já sabendo que eu era brasileiro, apontou e disse "isso é para americanos e europeus". Só faltou dizer "isso não é pro seu bico!". Recebi aquele comentário como quem diz "você, brasileiro, é um dos nossos"... mais um gesto de carinho do que a minha automática exclusão do rol dos seres dignos de se hospedarem naquele hotel.
= = = = =
Depois de muito andar pelo deserto, foi interessante chegar ao mar, em Essaouira, uma cidadezinha de origens portuguesas que não tem nada a haver com o resto do país que visitei. À beira mar, casas todas pintadas de branco, ruelas estreitas mas organizadas, sem circulação de carros, ótimos restaurantes - com inclusão, agora, de peixes nos cardápios - visuais interessantíssimos, povo ainda mais acolhedor. Hoje, fui ver o pôr do sol nas muralhas da cidade, um cenário lindíssimo que, embora distantes das minhas imagens do Marrocos, não posso deixar de registrar como uma das mais emocionantes surpresas da viagem. Por isso, ali fiquei, primeiro olhando, depois tirando fotos e mais fotos, depois só olhando de novo. Não eram exatamente fotos típicas do Marrocos, mas sem dúvida foi muito bom e gostoso estar ali.
Pensei, enquanto via o sol desaparecendo, em comprar uma garrafa de vinho e me sentar nas muralhas da cidade para acompanhar o fim do dia. Mas aqui, além de vinho não ser um produto particularmente agradável, são raríssimos os lugares que vendem álcool ou os restaurantes e bares que o servem. Nesse aspecto, o pais é extremamente conservador. Aliás, também nas roupas. As recomendações que li foram todas no sentido de não usar shorts ou bermudas e assim me comportei durante todos esses dias, foi só calça comprida o tempo todo. Para as mulheres, vale a mesma recomendação e a orientação de, no máximo, usar camisetas, mas preferencialmente usar mangas compridas. Desrespeitar essas orientações equivale a estar totalmente inadaptado à realidade local e, conseqüentemente, ser objeto de todos os tipos de olhares. No caso das mulheres, em particular, vestir-se de maneira diferente as expunha a olhares gulosos e palavras e atitudes que beiravam a agressividade, embora sem violência.
As compras constituem um capitulo à parte no Marrocos. Nisso, países árabes se parecem todos. São tantas horas e habilidades necessárias para a negociação e a barganha que eu desisto antes de entrar. O conceito de preço fixo, com uma etiquetinha pendurada, simplesmente não existe. Então, pra começar a conversa, você tem que ter, no mínimo, uma noção rudimentar de quanto vale o produto. Às vezes, você consegue isso por meio de conversas com outros viajantes, moradores locais ou em leituras. Mesmo assim, trata-se de produtos nos quais você não sabe a diferença entre um muito bom e um mal feito. Então, prá começar a conversa, você tem que pensar simplesmente se gosta ou não daquilo e quanto está disposto a pagar, no máximo. Se comprar, esqueça o preço:você só se sentirá enganado se comprar algo que não queria.
Como a minha mochila não comporta nada além do que já veio com ela, o consumismo tem passado longe de mim. Além disso, como sou mesmo muito ruim na arte da barganha, desisto de empreitadas que, antecipadamente, correm o risco de ser mal sucedidas. Mesmo assim, vez por outra dava uma esticada de olhos nos belos tapetes marroquinos. Como sei que esses são os piores artigos para comprar, sem que fossem necessárias algumas boas horas de negociação, eu desistia até de olhar pra dentro das lojas. Mas isso foi até o dia em que não resisti ao bater os olhos num tapete e, quando vi, já estava sentado no chão, tomando chá de menta, ouvindo do simpático dono da loja a estória de cada tapete, como é feito, de que região vem, as técnicas, etc. Pronto, fui fisgado. Sair dali de mãos vazias me parecia impossível. Como não sei pechinchar, e me sinto mal oferecendo preços que podem parecer insultantes ao vendedor (embora, na maioria das vezes, não seja), faço o jogo do indeciso, fico olhando, olhando, sem falar nada, e o cara vai baixando o preço. Quando senti que tava perto de algo razoável, inventei uma esposa que não ia gostar de me ver gastando tanto dinheiro num tapete e que, provavelmente, não ia gostar do tapete. Simulei uma saída para pensar e consultar a esposa, para depois voltar, mas esse golpe não pareceu convencer o vendedor que veio com uma oferta final, que me pareceu razoável e lá saí eu com um tapete em baixo do braço. O processo todo, quando feito com um cara gente boa como o que encontrei, é muito legal, e não quis saber se fui ou não enganado. Você sempre encontrará alguém com estórias do que comprou, do preço que conseguiu, depois de horas de barganha numa outra lojinha, embora os produtos nem sempre sejam comparáveis, então o melhor é curtir sua compra e esquecer-se do preço.
Em Essaouira, ao menos, há algumas lojas no centro com os preços afixados nos produtos, e não há barganha, o que já é um avanço considerável para quem está acostumado ao padrão ‘shopping center’. Infelizmente, não dá para carregar tudo que eu gostaria. Em Fes, me apaixonei pelas lindas mesas de mosaico de cerâmica, que vi sendo fabricadas, uma a uma, peça por peça, os pedacinhos de cerâmicas cortados a mão. Mas cada mesa custava uma fortuna e, naturalmente, não acreditei o suficiente no vendedor que prometia entregar a mesa na minha casa, sem que eu precisasse me preocupar com frete, alfândega ou qualquer outro aborrecimento burocrático.
Essaouira mereceria mais do que os dois dias em que fiquei. Além do surpreendente por do sol, a cidade tem muito charme, sem hordas de turistas, tranqüila, gostosa, boa comida, boa música, e o mar, sempre o mar. Ficaria aqui, facilmente, uns 3 ou 4 dias, relaxando, comendo bem, ouvindo boa musica africana, andando pelas ruas e sentando nos cafés na praça para tomar chá de menta. Mas a vida continua e há mais o que conhecer.
Finalmente, Marrakesh, a ultima parada da viagem. Por tudo que se lê, vê e ouve falar, é inevitável chegar a Marrakesh com altas expectativas, o que é sempre uma chance de desapontamento. Ao contrário de Casablanca, que cumpriu todas minhas expectativas – eu não tinha nenhuma - Marrakesh pode ser o contrário. Mas com o espírito aberto como estou, Marrakesh é tão síntese de tudo que o Marrocos pode oferecer que não creio que eu saia daqui desapontado, agora, já em direção ao Brasil, para retomar a minha vida normal, não exatamente civilizada.
Fotos em http://janelaseportas.shutterfly.com/action/pictures?a=67b0de21b3400509e451
Mas a chegada em Casablanca traz todos os tipos de emoções que essas viagens exóticas trazem consigo: expectativa, curiosidade, ansiedade e, claro, também certa insegurança. Tem que aprender os códigos locais, saber como se vai de um lugar pro outro, saber o que pedir pra comer, aprender a sobreviver com outra língua, outra cultura, tudo outro.
Tenho, naturalmente, que me despir dos preconceitos contra os franceses e contra a língua francesa. Isso não é exatamente fácil neste exato momento, em que me engalfinho com um irritante teclado francês (por que é que os franceses têm que ser diferentes até nisso?). Já no embarque, num vôo da Air France, começou a irritação ao ver que uma menina carregava no colo uma jaulinha de cachorro, que latia sem parar. Não acreditei que ela ia viajar todo o vôo com aquele cachorro e pensei "só podia ser coisa de francês, num vôo da Air France". Paguei a língua. Os comissários, em bloco, impuseram que a menina deixasse a gaiolinha no porão do avião, mas ela não aceitou. Depois de muita negociação, minha surpresa: a menina preferiu sair do avião, e assim saiu cheia de dignidade, carregando sua jaulinha. E a maior surpresa: era uma brasileira. Ou seja, essa babaquice francesa com os cães se acha no Brasil também.
Bom, gostando ou não de francês, é com as poucas palavras que conheço que vou ter que me virar aqui (o que é mais fácil do que me virar com árabe ;-). Não tem muita gente falando inglês por aqui, o que é perdoável; afinal eles não têm culpa de terem sido colonizados pelos franceses. Com meu parco francês, já consegui até tomar um chá de menta, o que me lembrou do delicioso e açucarado chá de menta que eu tomava num boteco libanês quando eu morava em Londres. Com toda essa falta de habilidade lingüística, até agora não me perdi, não morri de fome, nem deixei de perguntar a ninguém 'onde é', 'quanto custa' e coisas do gênero. Com meu francês de primeiro grau e com a boa vontade dos marroquinos, eu vou chegando lá.
O melhor num começo de viagem é se perder. Chegar ao hotel, tomar banho, andar pela rua, tomar um chá de menta num café a beira da calçada. Esse primeiro dia, então, é apenas pra relaxar da longa jornada, sentir os primeiros sons, cheiros, cores, sabores do lugar. Amanhã começa a exploração pra valer.
= = = = =
É bom não perder a capacidade de me deslumbrar, de me fascinar. Lembro-me de quando comecei uma longa viagem, que duraria seis meses, logo após o meu mestrado, e Sereen me disse que, depois de viajar um pouco, perde-se a capacidade de se deslumbrar, de se fascinar com as coisas, os lugares começam a ficar todos iguais. Fiquei com aquilo encucado, pensando se seria assim mesmo, até que, semanas depois, me encontrei mergulhando no Mar Vermelho e, ao ver aqueles recifes de corais, com vegetação e fauna multicolorida, uma visão deslumbrante, chorei no fundo do mar, emocionado com aquela beleza única, e percebi, fascinado e deslumbrado, que não tinha perdido a capacidade de me fascinar e de me deslumbrar.
E agora, no Marrocos, bom ver isso de novo. Depois de passar por alguns países árabes, outros muçulmanos, outros africanos, vejo que o Marrocos é tão árabe, tão muçulmano ou tão africano quanto os outros, mas é também tão único que me deslumbra em cada curva de estrada, em cada ruela de suas cidadezinhas imperiais (as medinas), e até mesmo em suas ruínas romanas (esses caras estão em todas, né?). É bom também descobrir que a novela brasileira que tornou o Marrocos tão próximo do imaginário coletivo brasileiro quanto Cancun e Aruba não é tão real assim. O Marrocos verdadeiro é bem diferente.
Dos franceses, os marroquinos herdaram muita coisa, entre o que há de melhor, destaca-se o prazer de comer, incluindo os charmosos cafés nas calçadas das ruas e os pães, deliciosos comparados com o que se encontra nessas viagens. Como nem tudo é perfeito, os marroquinos herdaram, também, dos franceses, aqueles insuportáveis chuveiros, compostos de uma mangueirinha pendurada na banheira, onde você tem que tomar banho, se ensaboar, se equilibrar e segurar a ducha com apenas duas mãos.
A comida, seja numa birosquinha bem simples ou num restaurante mais sofisticado, é sempre ótima. Bom, sou suspeito para falar isso, porque o carro-chefe aqui é o carneiro, e carneiro é comigo mesmo. Então, é tagine de carneiro, couscous de carneiro, kafta de carneiro... Para beber, arrisquei, com resultados abaixo da crítica, o vinho marroquino. A cerveja local não é, também, nada de excepcional. Acabo, então, ficando mesmo no delicioso chá de menta, refrescante mesmo quente.
Os cafés nas calçadas constituem uma verdadeira instituição nacional. Como na França, curto o delicioso prazer de simplesmente sentar-me, olhar o povo passar e tomar chá de menta. Peço um bule, abro um livro, meu caderno de anotações, e duas horas se passam sem que eu sequer perceba. Não há mulheres nesses cafés, apenas homens, ou, no máximo, alguma turista, mas sempre acompanhada por um homem. As mesas têm as cadeiras todas voltadas para frente, de forma que ninguém se senta de costas para a rua. Há dezenas desses cafés, e todos servem apenas chá e café, nada de comida; não consigo acreditar que sobrevivam apenas vendendo chá e café.
A recomendação aqui é não expor os joelhos e os ombros - ou seja, nada de bermudas ou de camiseta regata. Sofro mais pelas bermudas, mas nada que me incomode muito. Na verdade, estamos saindo do inverno aqui, está calor, mas um calor absolutamente suportável, em torno de 24 graus. O povo usa muita roupa aqui, os homens estão sempre vestindo uma camisa, um sweater e um casaco, faça a temperatura que fizer. Coisa de doido.
No grupo com que estou viajando, o destaque fica para uma babá inglesa e um marceneiro australiano, ambos bem jovens.. Fiquei imaginando quando que uma babá ou um marceneiro no Brasil poderiam fazer uma viagem dessas. São pessoas cultas, não ricas, moram decentemente no subúrbio, mas ganham dignamente para economizar e fazer uma viagem dessas. Fantástico.
Impressionante, quando viajo, minha capacidade de me desligar do mundo. Ao contrário do normal, tenho sonhado muito aqui. Quer dizer, sonhar eu sonho sempre, mas aqui tenho me lembrado muito dos meus sonhos. E são sempre sonhos legais, de gente querida, de coisas boas, algumas nostalgias, nada ruim. Bom dormir assim, dá prá relaxar pelo menos até as 5 horas da manhã, quando as mesquitas da cidade, com seus potentes alto-falantes, começam a chamar para as primeiras orações do dia. É assim cinco vezes por dia, como em qualquer país muçulmano. A prece das 5 da manhã é mais marcante por me tirar de um delicioso sono ao qual nem sempre consigo retornar.
Hoje passei o dia explorando a medina (cidade velha) de Fes, um lugar labiríntico, onde você parece voltar à idade média, um comércio onde o sujeito faz os produtos e vende ao mesmo tempo, onde a barganha é o segredo das compras. Ali, as ruelas têm apenas um metro de largura e freqüentemente você tem que se espremer na parede para deixar passar os jumentos que são o principal meio de carga. Há muitos turistas mas, mais do que eles, há um fluxo infernal de gente local que vai ali comprar de tudo. Uma experiência fascinante, com especial destaque para os tanques de tingimento de couros, onde se preparam as pecas de couro que são vendidas para os artesãos locais. Como se vê na foto anexa, do alto de um terraço vizinho, dá pra ver as dezenas de tanques de todas as cores, em que as peles de animais são mergulhadas para serem tingidas e depois transformadas nas belíssimas peças de couro que são vendidas nos mercados.
Por falar em mercados, o Marrocos é uma tentação para quem gosta de coisas diferentes. O problema é que tudo de que gosto é pesado e volumoso. E viajando por várias cidades, de trem ou de ônibus, com uma mochila nas costas, não dá para pensar em comprar nada. Meu prazer, então, é olhar (se é que alguém consegue ter muito prazer ao olhar alguma coisa num mercado sem ser imediatamente assediado pelos comerciantes). E passeio pelas ruas dos mercados, resistindo heroicamente à tentação de comprar um tampo de mesa em mosaico, uma luminária de ferro ou uma peça de porcelana.
Saio dessa onda de consumo e parto para alguma coisa menos urbana, um trekking de dois dias no deserto do Alto Delta. O lado mais legal dessa experiência foi simplesmente ter dado conta dela. Com a vida sedentária que ando levando, esse era o meu maior receio. Por isso, ter encerrado os três dias de caminhada sem fazer feio foi motivo de grande celebração. A caminhada era menor do que outras que já fiz, mas muito mais do que qualquer tipo de exercício que ando fazendo recentemente (cerca de três a cinco horas por dia de caminhada, subindo e descendo). Os visuais eram absolutamente fascinantes para que eu sequer pensasse em fraquejar.
Passei por vilarejos bem pequenos, desses onde não passa turista, e as pessoas te olham com um ar meio esquisito, como se você fosse um ET por conta das roupas, botas, sandálias, chapéu, seja lá o que você estiver usando. E a gente ainda acha que estranhos são eles com aquelas roupas compridas, algumas cobrindo até a cabeça, naquela calor de rachar. Nesses lugares, andei ficando em acomodações bastante precárias, algumas camas e colchões não exatamente confortáveis, alguns lençóis já sem condições de uso e, provavelmente, sem serem lavados já há alguns meses. Em outros lugares, a falta de conforto continuava, mas eram lugares simpáticos, limpos, charmosos, as vezes velhas construções reformadas.
No meio do caminho, parávamos em casas de nômades, de berbers (uma das raças locais), e sempre rolava aquele ritual de sentar num tapete empoeirado e ser servido de um chá de menta onde a cor da água só era disfarçada pela cor da própria menta. Quando dava para entornar disfarçadamente, tudo bem, mas de vez em quando tinha que engolir e rezar para o organismo digerir seja lá o que fosse que entrasse. O mesmo valia para o pão que distribuíam, que passava de mão em mão, e era depois pousado sobre o tapete empoeirado.
Com toda minha birra da língua francesa, senti falta dela para interagir mais com as pessoas que encontrei pelo caminho. As vezes me via em diálogos surreais com pessoas que não me entendiam e a quem eu não entendia. De alguma forma, nos fazíamos compreender. Isso valia para essas paradas esporádicas - embora nesses casos nem francês adiantasse muito -, para as compras, para pedir informações, para escolher a comida no restaurante ou simplesmente para bater papo com algum curioso - em geral crianças.
Por alguma razão que ainda não consegui plenamente compreender, o deserto realmente exerce um fascínio grande sobre mim (deve ser efeito das inúmeras releituras do Pequeno Príncipe na infância ;-). No deserto, tenho a deliciosa sensação de não ver nada, não ouvir nada, apenas ver e sentir o vazio. Um lugar que me faz sentir pleno, consciente da minha pequenez, em que me conecto comigo mesmo ou com uma entidade superior, e me desconecto do mundo, da vida, das pessoas, do resto. Tive várias dessas oportunidades durante a viagem, e cada uma era uma boa chance desse encontro.
Foram dias gostosos no deserto, caminhadas, trens, jumentos, passeando por desertos que foram surpreendentemente diferentes de outros desertos por onde já passei. São desertos montanhosos, repletos de vales férteis, picos cobertos de neve (não esperava ver neve no Marrocos), além de vilarejos pendurados nas montanhas, como se favelas do Rio fossem.
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De volta do deserto, um inglês comentou “de volta à civilização!”. Eu, que estava adorando estar no deserto, não gostei do comentário, mas adorei me encontrar em um lugar “civilizado”, onde eu tivesse acesso à internet. De qualquer maneira, foi bom, depois, ter uma conversa descontraída com o inglês sobre o que é ou não ser civilizado, especialmente quando se visita um pais tão rico em cultura, em arte, em conhecimentos tradicionais, e fazemos as inevitáveis comparações com os nossos próprios padrões culturais e de desenvolvimento.
Embora eu e o inglês comentássemos sobre as diferenças culturais entre o nosso ocidente e o Marrocos, não eram menores as diferenças entre mim e ele. Senti isso quando falei que tinha uma empregada em casa. Foi interessante observar a sua exaltada reação, que parecia tentar entender se eu era um rico oficial do governo, provavelmente vivendo à custa da corrupção típica dos países em desenvolvimento, se eu tinha trabalho escravo em casa ou se, afinal, o Brasil era um símbolo de civilização, com excelente qualidade de vida. Depois de muita conversa, ele começa a entender que ter uma empregada não é necessariamente um sinal de civilização; pelo contrário, é apenas um sinal de riqueza perversamente distribuída e que não é necessário ser rico para ter uma. Depois, conversando sobre o mesmo assunto num jantar com mais pessoas, confesso que não pude esconder um risinho de satisfação ao ver aqueles ingleses todos morrendo de inveja de mim, dos meu almoços em casa, do meu café da manha pronto quando acordo, da roupa lavada e passada, enquanto eles tem que encarar um terceiro expediente para ter tudo isso, sem a mesma qualidade.
O Marrocos surpreende na diversidade à medida que se anda de uma cidade para outra, e andei por muitas. Mudam as cores e o estilo das roupas, mudam as músicas, mudam os dialetos, mudam as cores das casas, mudam os cheiros. Um verdadeiro espetáculo para os sentidos. Não dá para ficar indiferente, não dá para não ficar virando os olhos de um lado para o outro à procura da próxima pessoa, do próximo traje, da próxima cor, do próximo cheiro, da próxima porta ou janela, da próxima ruela.
Só não mudou muito a comida que, apesar de saborosa, no fim se mostra absurdamente repetitiva: todos os cardápios, de norte a sul, são variações em torno dos mesmos temas: tagine, couscous, omelete. Sobremesa, que é bom, nem pensar. Ou melhor, existe, mas é igualmente repetitiva e composta de frutas da estação (quem foi que algum dia inventou que frutas da estação podem ser classificadas como sobremesa?) ou iogurte (Danone, sempre! E iogurte, é sobremesa?). Nos lugares mais sofisticados, a fruta da estação é substituída por uma salada de laranja fatiada polvilhada com canela, uma combinação interessante, ou por iogurte caseiro, em geral bem gostoso, mas que caberia melhor numa mesa de café da manhã.
O país é bastante explorado turisticamente, o que quer dizer que, mesmo em lugares remotos, acabo cruzando com um ou outro gringo, em geral franceses.. Há também espanhóis que cruzam, de carro, o Estreito de Gibraltar, e vêm passear por aqui. Não vi um brasileiro até agora, mas é interessante ver as reações dos marroquinos às minhas camisetas com cores ou bandeiras do Brasil. São reações simpáticas, naturalmente com referências a Ronaldo, Ronaldinho, Romário. Uma reação divertida foi a de um motorista de táxi que, passando em frente ao melhor hotel de Casablanca, e já sabendo que eu era brasileiro, apontou e disse "isso é para americanos e europeus". Só faltou dizer "isso não é pro seu bico!". Recebi aquele comentário como quem diz "você, brasileiro, é um dos nossos"... mais um gesto de carinho do que a minha automática exclusão do rol dos seres dignos de se hospedarem naquele hotel.
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Depois de muito andar pelo deserto, foi interessante chegar ao mar, em Essaouira, uma cidadezinha de origens portuguesas que não tem nada a haver com o resto do país que visitei. À beira mar, casas todas pintadas de branco, ruelas estreitas mas organizadas, sem circulação de carros, ótimos restaurantes - com inclusão, agora, de peixes nos cardápios - visuais interessantíssimos, povo ainda mais acolhedor. Hoje, fui ver o pôr do sol nas muralhas da cidade, um cenário lindíssimo que, embora distantes das minhas imagens do Marrocos, não posso deixar de registrar como uma das mais emocionantes surpresas da viagem. Por isso, ali fiquei, primeiro olhando, depois tirando fotos e mais fotos, depois só olhando de novo. Não eram exatamente fotos típicas do Marrocos, mas sem dúvida foi muito bom e gostoso estar ali.
Pensei, enquanto via o sol desaparecendo, em comprar uma garrafa de vinho e me sentar nas muralhas da cidade para acompanhar o fim do dia. Mas aqui, além de vinho não ser um produto particularmente agradável, são raríssimos os lugares que vendem álcool ou os restaurantes e bares que o servem. Nesse aspecto, o pais é extremamente conservador. Aliás, também nas roupas. As recomendações que li foram todas no sentido de não usar shorts ou bermudas e assim me comportei durante todos esses dias, foi só calça comprida o tempo todo. Para as mulheres, vale a mesma recomendação e a orientação de, no máximo, usar camisetas, mas preferencialmente usar mangas compridas. Desrespeitar essas orientações equivale a estar totalmente inadaptado à realidade local e, conseqüentemente, ser objeto de todos os tipos de olhares. No caso das mulheres, em particular, vestir-se de maneira diferente as expunha a olhares gulosos e palavras e atitudes que beiravam a agressividade, embora sem violência.
As compras constituem um capitulo à parte no Marrocos. Nisso, países árabes se parecem todos. São tantas horas e habilidades necessárias para a negociação e a barganha que eu desisto antes de entrar. O conceito de preço fixo, com uma etiquetinha pendurada, simplesmente não existe. Então, pra começar a conversa, você tem que ter, no mínimo, uma noção rudimentar de quanto vale o produto. Às vezes, você consegue isso por meio de conversas com outros viajantes, moradores locais ou em leituras. Mesmo assim, trata-se de produtos nos quais você não sabe a diferença entre um muito bom e um mal feito. Então, prá começar a conversa, você tem que pensar simplesmente se gosta ou não daquilo e quanto está disposto a pagar, no máximo. Se comprar, esqueça o preço:você só se sentirá enganado se comprar algo que não queria.
Como a minha mochila não comporta nada além do que já veio com ela, o consumismo tem passado longe de mim. Além disso, como sou mesmo muito ruim na arte da barganha, desisto de empreitadas que, antecipadamente, correm o risco de ser mal sucedidas. Mesmo assim, vez por outra dava uma esticada de olhos nos belos tapetes marroquinos. Como sei que esses são os piores artigos para comprar, sem que fossem necessárias algumas boas horas de negociação, eu desistia até de olhar pra dentro das lojas. Mas isso foi até o dia em que não resisti ao bater os olhos num tapete e, quando vi, já estava sentado no chão, tomando chá de menta, ouvindo do simpático dono da loja a estória de cada tapete, como é feito, de que região vem, as técnicas, etc. Pronto, fui fisgado. Sair dali de mãos vazias me parecia impossível. Como não sei pechinchar, e me sinto mal oferecendo preços que podem parecer insultantes ao vendedor (embora, na maioria das vezes, não seja), faço o jogo do indeciso, fico olhando, olhando, sem falar nada, e o cara vai baixando o preço. Quando senti que tava perto de algo razoável, inventei uma esposa que não ia gostar de me ver gastando tanto dinheiro num tapete e que, provavelmente, não ia gostar do tapete. Simulei uma saída para pensar e consultar a esposa, para depois voltar, mas esse golpe não pareceu convencer o vendedor que veio com uma oferta final, que me pareceu razoável e lá saí eu com um tapete em baixo do braço. O processo todo, quando feito com um cara gente boa como o que encontrei, é muito legal, e não quis saber se fui ou não enganado. Você sempre encontrará alguém com estórias do que comprou, do preço que conseguiu, depois de horas de barganha numa outra lojinha, embora os produtos nem sempre sejam comparáveis, então o melhor é curtir sua compra e esquecer-se do preço.
Em Essaouira, ao menos, há algumas lojas no centro com os preços afixados nos produtos, e não há barganha, o que já é um avanço considerável para quem está acostumado ao padrão ‘shopping center’. Infelizmente, não dá para carregar tudo que eu gostaria. Em Fes, me apaixonei pelas lindas mesas de mosaico de cerâmica, que vi sendo fabricadas, uma a uma, peça por peça, os pedacinhos de cerâmicas cortados a mão. Mas cada mesa custava uma fortuna e, naturalmente, não acreditei o suficiente no vendedor que prometia entregar a mesa na minha casa, sem que eu precisasse me preocupar com frete, alfândega ou qualquer outro aborrecimento burocrático.
Essaouira mereceria mais do que os dois dias em que fiquei. Além do surpreendente por do sol, a cidade tem muito charme, sem hordas de turistas, tranqüila, gostosa, boa comida, boa música, e o mar, sempre o mar. Ficaria aqui, facilmente, uns 3 ou 4 dias, relaxando, comendo bem, ouvindo boa musica africana, andando pelas ruas e sentando nos cafés na praça para tomar chá de menta. Mas a vida continua e há mais o que conhecer.
Finalmente, Marrakesh, a ultima parada da viagem. Por tudo que se lê, vê e ouve falar, é inevitável chegar a Marrakesh com altas expectativas, o que é sempre uma chance de desapontamento. Ao contrário de Casablanca, que cumpriu todas minhas expectativas – eu não tinha nenhuma - Marrakesh pode ser o contrário. Mas com o espírito aberto como estou, Marrakesh é tão síntese de tudo que o Marrocos pode oferecer que não creio que eu saia daqui desapontado, agora, já em direção ao Brasil, para retomar a minha vida normal, não exatamente civilizada.
Fotos em http://janelaseportas.shutterfly.com/action/pictures?a=67b0de21b3400509e451
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