30 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 30 de março. Dia 13.

Possuo apenas seis grupos de whatsapp ativos, alguns deles mais particularmente ativos neste momento em que, em condições de isolamento, todos se sentem mais à vontade e com mais tempo para a interação social, ainda que virtual. Cada grupo com suas temáticas, características e peculiaridades, mas em todos o coronavírus é assunto praticamente único. Artigos científicos, análises políticas, dicas de prevenção, suporte para o isolamento, recomendações das autoridades, piadas, brincadeiras, acontece de tudo um pouco nesses grupos e, de alguma forma, eles têm sido para mim um dos suportes para enfrentar o “inimigo”.

Há dois dias, lancei uma provocação nesses grupos, perguntando o que cada um verdadeiramente sentia em relação a tudo que estamos vivendo, para além do que cada grupo representava em termos de informação, conhecimento, humor e solidariedade. Não era nenhum experimento sociológico. Mas, estando eu vivendo de maneira tão intensa todos os tipos de sentimentos – medo, raiva, preocupação, esperança, tristeza, desânimo – eu tinha vontade de saber como cada um estava lidando com a tragédia, naquilo que sente lá no fundo da alma, porque isso normalmente não aparece nos grupos.

O resultado foi interessante. Vários ignoraram a provocação. Alguns responderam de maneira bastante sintética, com uma única palavra para descrever o que sentem. Outros expressaram o que pensam sobre tudo que tem acontecido, mas não exatamente o que sentem. E outros ofereceram um lindo mosaico de sentimentos de todos os tipos, positivos e negativos, otimistas e pessimistas, que não apareciam de forma alguma na interação proporcionada por cada um dos grupos. Havia o medo da própria morte ou sofrimento, o medo da morte e do sofrimento de entes queridos, a preocupação com o impacto econômico tanto sobre familiares quanto sobre a legião de brasileiros miseráveis, a tristeza de não poder estar perto de seres amados, a preocupação com os seus cachorros que eventualmente podem ficar abandonados, até um tocante depoimento de uma amiga que perdeu seu filho de menos de um ano poucos dias antes do isolamento se iniciar, para quem o olhar sobre tudo isso se torna tão relativo diante de sua dor mas que, mesmo assim, consegue ter um enorme sentimento de empatia e conexão com o que os outros vivem e sentem. 

Independentemente da vontade ou da capacidade de traduzir sentimentos em palavras, parece natural que todos sintam muito tudo isso que temos vivido e percebam que os impactos do que acontece agora serão certamente duradouros, ainda que de forma e intensidade incerta (o que causa outros tipos de sentimentos, a incerteza e insegurança sobre o futuro). Obviamente, todos esses grupos pertencem à chamada “minha bolha”, de forma que era esperado encontrar sentimentos comuns entre pessoas que, de alguma maneira, no contexto geral do que está acontecendo, ainda se podem chamar de privilegiados. 

Embora buscando permanentemente conhecer e entrar em contato com meus próprios sentimentos, ainda consigo me surpreender. Ontem meu irmão veio de Alto Paraíso, onde mora, apenas para trazer a filha e voltar no mesmo dia. Na bagagem, trouxe, para o pai e irmãos, valiosos reforços do cerrado para aumento da imunidade e da capacidade de enfrentar o vírus. Quando o porteiro interfonou anunciando sua chegada, eu não queria que ele subisse – por mim e por ele – mas eu queria descer para vê-lo, levar-lhe um café ou chá, alguma comida para enfrentar a estrada de volta e presenteá-lo com um vinho para acompanhá-lo na solitude em sua casa. Por um desses mal-entendidos que uma situação louca como a que vivemos pode causar, ele julgou que eu não queria descer e eu julguei que ele não queria que eu descesse. Ele deixou o pacote na portaria e foi embora. Fiquei com um sentimento muito ruim sobre o episódio, o que compartilhei com ele mais tarde. Foi então que ambos descobrimos que experimentamos as mesmas sensações, que cada um enxergou no outro a rejeição, o repúdio ao encontro, o medo de estar juntos. Eu, que já venho experimentando a tristeza de não visitar meu pai, que mora a cinco minutos de mim, senti novamente a tristeza do distanciamento e do afastamento dos seres amados que pode trazer essa pandemia se não estivermos atentos ao que cada um sente de verdade.

Enquanto eu lido com meus sentimentos bem mundanos, quase envergonhado de tê-los, porque em sua maioria são mesquinhos e egoístas e, naquilo que não são, estão desacompanhados de atitudes e respostas à altura, acompanho as primeiras consequências da política de isolamento nas comunidades mais pobres, antes mesmo que o vírus tenha nelas chegado. As medidas de apoio emergencial do governo não se materializaram, ainda, em uma grande mostra de incompetência e descaso. Assim, o que temos, até agora, é uma legião de desvalidos, à margem da sociedade, que, de uma hora para outra, deixaram de contar com a sua renda: o pedinte, o vendedor de balinhas, de salgadinho, de churrasquinho, o guardador de carro, a diarista, o pedreiro e tantos outros profissionais cuja informalidade de suas ocupações não lhes dá o direito de pararem.

Parece criminoso, assim, que o presidente da república (assim, em minúsculas mesmo), ao invés de tomar as medidas que se espera do poder público em uma situação como essa, empurre o país para um desastre, estimulando essas pessoas para voltarem ao trabalho, à vida normal, ao contrário de tudo que é prescrito pelas autoridades de saúde e de tudo que tem sido feito em outros países. Esse discurso, ao invés de oferecer amparo, encontra cidadãos divididos entre o medo da fome certa e o medo da doença ainda incerta, e minimiza o impacto que o vírus possa – e virá a – ter na vida dessas pessoas. E aí, a despeito de tudo que eu sinta e acredite que deva ser o comportamento da sociedade neste momento, como condenar esses que não querem ficar em casa, na maior parte ignorantes, e para os quais falta dinheiro e comida?

Leio reportagem sobre favelas em São Paulo. Barracos cheios de adultos e crianças, aglomerados. Crianças com fome porque deixaram de receber a sua principal refeição do dia, a merenda escolar. Famílias oneradas com essa despesa extra exatamente quando a renda é reduzida. Isso para não falar da falta de itens de higiene como papel higiênico, fraldas, sabão e detergente. Álcool em gel? Piada de mal gosto. Em muitas casas, a porta de entrada é o único meio de ventilação. Na rua, crianças limpam pés e mãos em poças d’água. Quem sou eu para condenar aqueles que, nessa situação, saem de casa para buscar alimentos, buscar ajuda ou fazer um bico, ainda mais quando encorajados pelo presidente que insiste em se referir ao vírus como “uma gripezinha”?

Casualmente, leio outra matéria, agora sobre as favelas do Rio de Janeiro que são dominadas pelo crime organizado. Ali, o tráfico e as milícias ordenaram toque de recolher por causa do coronavírus. Em uma delas, o recado dado por um carro de som é bem claro: ““A partir das oito horas da noite, eu disse oito horas da noite, quem estiver na rua de sacanagem ou batendo perna vai receber um corretivo”. O comando, que é anterior às medidas restritivas estabelecidas pelos governos estadual e municipal, não se fundamenta em causas exatamente nobres, de saúde pública. Segundo os relatos, os próprios traficantes estão com medo da doença. Primeiro porque a propagação do vírus nas favelas afetaria os seus negócios; segundo, porque eles próprios não poderiam procurar hospitais se fossem contaminados. Seja qual for a motivação, ali o cidadão obedece e o comércio obedece a critérios e horários bastante restritivos de funcionamento. E ninguém sai de casa sem autorização do poder ali constituído.

Mas há mais acontecendo nas favelas e nas comunidades de baixa renda do que a desobediência movida pela fome ou a obediência devida ao medo. Na ausência do estado, e à margem dele, há um grande conjunto de iniciativas de todos os tipos que buscam ajudar economicamente dessas áreas e para evitar que o vírus nelas se propague. Várias dessas iniciativas são tímidas, de pequena escala, bem localizadas. Outras conseguiram engajar personalidades com responsabilidade social, incluindo empresários, artistas e políticos, que conferem a elas maior escala e visibilidade. No geral, parecem descoordenadas entre si. Muitas são resultado de ações de voluntários, de gente que não consegue apenas assistir à tragédia. Trabalham essencialmente em rede, envolvendo lideranças comunitárias, que conhecem, melhor do que o poder público, as necessidades e fragilidades daquelas populações. 

Essas iniciativas fazem o que o Estado não faz. Elas fazem o que não fazem aqueles grandes empresários que reclamam que a economia não pode parar. Elas fazem o que um bando de gente privilegiada como eu não tem feito, além de se compadecer. Elas tentam, simplesmente, amenizar um pouco o sofrimento de algumas vidas que, antes mesmo do corona, já eram muito sofridas. E é com essas histórias que eu quero ficar, que eu quero me inspirar, e que eu quero agir, respondendo: o que, além do pouquinho que eu já tenho feito, posso ainda fazer para amenizar a dor e o sofrimento que já veio e que ainda virá para essa gente?

27 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 27 de março. Dia 10.

Escrever sobre o que sinto e penso é uma forma de me manter saudável, mas não tem sido fácil. Andei travando. No mundo inteiro, o vírus tem sido um elemento de forte e desconhecido impacto em todas as dimensões da vida humana, saúde, economia, relações sociais e familiares, trabalho, estudos. Além do que significa para a coletividade, cada indivíduo tem sido pessoalmente afetado, em maior ou menor escala, e não é difícil perceber o quanto de medo, ansiedade, incerteza e insegurança cada um de nós carrega hoje.

Essa é a realidade do mundo inteiro, mas, no Brasil, a coisa precisava ser um pouquinho mais complicada: o vírus se tornou mais um elemento do idiotizante grau de polarização vivido pelo País nos últimos anos. Aqui, a divisão quanto às estratégias de enfrentamento do problema não é entre grupos de médicos e infectologistas, com a necessária participação de outros atores para discutir medidas para minimizar os impactos sociais e econômicos. A discussão se tornou basicamente entre opositores e apoiadores do presidente, e o país dos técnicos de futebol se transformou no país dos infectologistas, com todo mundo dando palpites, cheios de razão, sobre coisas como isolamento vertical ou isolamento horizontal. 

O principal palpiteiro do momento é o próprio presidente, que, na contramão do que autoridades médicas de todo o mundo dizem e do que líderes de todo os países estão fazendo, diz que o Brasil não pode parar. Defende, assim, que a vida continue, insiste em que o vírus é uma “gripezinha” e afirma com orgulho que a crise no Brasil não será grave porque “o brasileiro não pega nada... ele mergulha no esgoto e não acontece nada”. Aposta na estratégia de combater o isolamento recomendado pelos organismos internacionais e órgãos nacionais da área de saúde. Em oposição a todos os governadores estaduais, lançou a campanha #obrasilnãopodeparar e estimula seus apoiadores a saírem às ruas em defesa dessa ideia. A ver no que dá. Há sempre a chance de que nosso presidente esteja certo e que todo o resto do mundo esteja errado.

Completei uma semana sem sair de casa. Minto... ontem fui ao mercado comprar frutas e verduras, o que representou um angustiante exercício de paranoia. Desci e subi pelas escadas, com máscara e luvas, para evitar elevadores (ainda que subir com as compras seja mais difícil). Da hora em que entrei no carro, até estacionar, ir ao mercado, fazer as compras, trazer de volta, entrar em casa, a sensação que eu tinha o tempo todo era de estar me contaminando a cada movimento. Às vezes eu até conseguia enxergar os coroninhas passando da fruta pra minha mão, do carrinho para a fruta ou para a embalagem, da minha mão para o celular, do balcão do caixa para as embalagens, enquanto eu me atrapalhava em movimentos pouco sincronizados que envolviam o uso constante de gel, de luvas e de uma troca constante de mãos, de bolsos, de chaves. Em casa, cheguei com várias sacolas sem saber o que fazer com elas, com os sapatos, com as roupas, com as chaves, com a carteira. Quer dizer, eu até sabia, mas a cada movimento com um item eu sentia estar contaminando o outro. E como fazer com bananas, brócolis, mamão, passar álcool gel em todos? Desisto. Se você sai de casa, contaminar-se é praticamente certo se você der o azar de passar por onde o vírus passou. A única forma de não me contaminar é não sair de casa... mas será que o vírus já está por aqui?

Uma semana sem sair de casa. No começo tudo era novidade. Não que fosse bom, mas havia muita ironia, humor, criatividade, a descoberta do prazer do ócio, da falta de pressa, a aprendizagem do teletrabalho, as videoconferências com amigos, a redescoberta do prazer de telefonar, as atividades físicas na varanda. Havia desafios, como a constatação e as tentativas de superação da minha incompetência nos afazeres domésticos. Havia tempo livre para fazer aquelas coisas que a gente sempre deixa para depois, a arrumação do armário, ver aquele filme, ler aquele livro, testar aquela receita... tanta coisa que não era feita por falta de tempo. Foi um período de descobertas, aprendizagem, novidades. 

Mas o tempo passou e ficar uma semana inteira em casa, confinado, aos poucos vai se transformando em castigo, punição, trazendo consigo os sentimentos associados: tristeza, depressão, desânimo, impaciência, irritação, tudo junto e misturado, em maior ou menor escala. Tenho me dado conta desse movimento e busco minhas próprias estratégias de sobrevivência, de organização pessoal, mental e emocional. Algumas funcionam, outras nem tanto. Vou aprendendo.

Gostei da ideia do “diário de gratidão” que encontrei há poucos dias: registrar diariamente as pessoas, situações, condições ou coisas às quais sou grato. Fiz um pouco disso nos últimos dois dias. Muitas vezes mentalmente, uma vez numa carta, outra vez num telefonema. E me surpreendi com o bem-estar que isso me propiciou, reconhecer a quantidade de razões para ser grato em um momento difícil como esse. Meu próximo passo vai ser imaginar como ser solidário e ajudar pessoas que estão sofrendo muito mais do que eu e que têm muito menos motivos para agradecer do que eu. Algo que vá além da solidariedade escrita ou da manutenção do apoio financeiro àqueles que me servem no dia-a-dia. É justo, é necessário, é importante.

O confinamento doméstico tem me feito (re)descobrir minha casa. Há tantas coisas que foram sendo deixadas de lado ou simplesmente terceirizadas. Estou (re)conhecendo cantinhos, encontrando coisas perdidas. Na geladeira, no freezer, encontro comidas e sobras de comidas que não me lembrava de terem ali entrado um dia. Observo com mais cuidado o que está limpo e o que não está limpo na casa. E, naturalmente, preciso assumir as tarefas que nunca desempenhei na casa, aquelas que foram terceirizadas e para as quais não há, agora, um terceiro para fazê-las.

Descubro que essas tarefas são mais complexas e demoradas do que eu imaginava, o que me dá um novo padrão de referência para as avaliações que delas eu fazia. Percebo minha displicência na administração e no cuidado do meu espaço mais precioso, minha casa. É tão simples imaginar que alguém poderá fazer o que eu não gosto ou não tenho tempo de fazer, e agora eu descubro que, gostando ou não, eu tenho que fazer. E não sei como fazer. Não sei como manter limpa a casa, como lavar os banheiros, como lavar e passar roupas, como cozinhar. A casa tem um enorme conjunto de aparelhos e de produtos que não sei para que servem ou como se usam. E agora?

Sei que não vou conseguir uma revolução pessoal nessa quarentena. Há que se priorizar. Passar roupas, por exemplo, requer um nível de conhecimento, habilidade e prática que eu jamais terei no pouco tempo que me resta de vida. Não há por que insistir nisso. Aliás, quando estudei na Inglaterra, há 20 anos, eu já havia entendido que esse negócio de passar roupas era um privilégio de sociedades desiguais, onde há quem faça esse serviço. Descobri isso na marra, ao perceber que aquelas camisas de delicioso algodão que eu adorava se transformavam, depois de lavadas, em pedaços de pano amarrotados que jamais viriam a ser como eu as conhecia no Brasil. E comecei então a usar apenas camisetas, camisas e calças que, dispensadas do ferro elétrico, não me fizessem sentir um mendigo ao usá-las. Toalhas, lençóis, passar pra que? Claro, ficam lindos, cheirosos, macios... mas, sejamos honestos, dá pra viver sem isso. E tenho sobrevivido sem passar nada... lavo, seco, dobro e guardo. Apenas não consigo dobrar um lençol de elástico, mas acho que isso ninguém consegue mesmo, né?

Mas a pior parte mesmo tem sido cozinhar. Que pesadelo! Na minha irônica forma de me defender dessa falha de caráter, eu sempre dizia que, por não saber cozinhar, me bastava uma boa agenda de telefones e endereços. Eu sempre brincava dizendo que, ao prestigiar quem sabe fazer o que eu não sei, eu estimulava a economia e distribuía renda. E, assim, jamais consegui, nessa área, ir além de um bom omelete. Nem foi falta de tentar. Matriculei-me em um curso de culinária e, já na primeira aula, tive uma discussão com a professora na instrução “pegue um punhado de arroz”. Ora, punhado não é medida. Medida é peso, número, quantidade. E no curso não existia nada disso, tudo era vago, tempos, porções, quantidades... Um pouco demais para um engenheiro.

Levei a vida assim, me virando bem todas as vezes em que não dispunha de alguém para fazer o que eu não sabia. Quando estudei fora, havia muitas opções de pratos prontos, de boa qualidade, a custos razoáveis. Era minha (boa) opção, quando não comia na rua. Aqui em casa, em dias especiais, um bom prato encomendado era complementado por uma mesa bem arrumada (essa parte eu gosto e faço bem), e o jantar se tornava especial. Mas o vírus mudou tudo isso... não há de quem comprar ou, quando há, eu não quero sair para comprar, ou, quando há entrega, minha paranoia não me permite confiar. Quando essa quarentena se iniciou, fiz uma grande compra de alimentos, produtos não perecíveis, carnes congeladas, que, obviamente, pressupunha a existência de alguém para prepará-los. Quando ficou claro que não haveria esse alguém, mudei a estratégia, e me preparei para a quarentena com alimentos preparados. Como a combinação carne e salada sempre foi perfeita para mim, não precisava de mais do que isso. Mas na medida em que até o que eu mais gosto se torna insuportável quando repetido o tempo todo, comecei a ter ideias para variar, fazer experiências. E foi aí que as coisas começaram a se degringolar completamente. Andei comendo cada coisa horrível...

Decidi que, se passar roupas era uma tarefa impossível de eu dominar até o fim da vida, cozinhar para a sobrevivência de maneira minimamente suportável era uma meta mais factível. Resolvi começar pelas sopas, que sempre foram minha refeição noturna. Comprei quinoa, adoro sopa de quinoa. Dei um google “sopa de quinoa”, vieram centenas de receitas. Pensei, vou escolher a mais simples. Acabei descobrindo que, para fazer uma sopa de quinoa, eram necessários, em todas as receitas, muito mais ingredientes do que a própria quinoa, e ninguém nunca me havia contado isso. Não havia receita com menos de 5 ou 6 ingredientes, o que tornava a minha empreitada assustadoramente complexa e praticamente inviável, porque eu não dispunha de nenhum desses ingredientes em casa, cebola, alho, salsão, salsinha, cebolinha... afinal, para que eu precisaria disso tudo na minha quarentena?

Em crise com minhas constatações, compartilhei meus infortúnios com amigos e fui brindado com generosos apoios, listas de endereços com delivery, sites de receitas para idiotas, oferta de vídeo aula de culinária, palavras de coragem e risos incrédulos.
No lado mais prático, fui brindado com um roteiro para uma sopa básica de quinoa, exatamente o que eu precisava, ainda que o roteiro tenha se esquecido de mencionar a água. Quando fiz o questionamento sobre a falta desse ingrediente, recebi de volta “uai... claro que tem que ter água... você só pode estar brincando”. Eu não estava. Outra valiosa e carinhosa ajuda veio de um casal querido que soube que aqui em casa havia uma couve-flor que provavelmente apodreceria sem uso. Prepararam então uma sopa de couve-flor, e me enviaram um elaborado e detalhado tutorial que incluiu filmagem, áudio e texto, de uma forma que me fez quase acreditar que “essa até eu consigo”.

Em meio a essa loucura em que estamos vivendo, meus problemas são tão banais, tão simples, tão irrelevantes...há perguntas sem respostas: o que vai acontecer quando tudo terminar? vai terminar? como vai terminar? São dúvidas existenciais, angústias, são problemas econômicos, relações abaladas, danos físicos e emocionais... não tenho controle sobre nada e tenho buscado me fortalecer para o que vem pela frente. Aprender a fazer uma sopa é parte disso, mas há coisas muito mais importantes que me fazem querer sair desse processo como um homem melhor.


24 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 23 de março. Dia 6.

Tenho tentado manter uma rotina, mínima que seja, para que eu não enxergue esse período como “férias na praia”, sem hora para comer ou dormir, sem atividades pré-estabelecidas, tempo em que se deixa tudo apenas acontecer. O fato de estar escrevendo agora de madrugada (são 3h30 da manhã) mostra que o sucesso da rotina tem sido relativo. Tenho tentado também não mudar os hábitos alimentares, embora, na medida em que a paranoia aumenta, renovar o estoque de verduras e legumes me parece uma opção mais distante. Até mesmo porque, ainda que eu os comprasse, penso que eu iria destruir seu potencial nutritivo de tanto esfregá-los em álcool, água sanitária, vinagre, soda cáustica e o que mais aparecesse com cara de matar coronas.

As brincadeiras em torno dos resultados da quarentena – obesidade, alcoolismo, depressão, divórcios – podem não ser exatamente uma brincadeira. Em um momento como esse é natural buscar refúgio em comida, bebida, assim como é natural que as defesas emocionais se abalem e as relações se estressem como decorrência do convívio forçado não habitual. Por isso é importante cada um criar suas estratégias de sobrevivência, suas rotinas, seus hábitos, para a quarentena, dentro do que é possível, dentro do que faz bem a cada um. Hoje meu dia foi para pensar nisso.

Por aqui estou montando uma agenda que envolve horários estabelecidos para videoconferências com o pai, duas vezes por dia, para exercícios físicos diários, com alguns horários agendados com o treinador, para evitar sabotagem, bem como horas para alimentação e sono. Tomar banho, trocar de roupa, pentear o cabelo, lavar louças e roupas, tudo isso faz parte da rotina. Tento estabelecer limites para consumo de doces e de vinho. Busco leituras alternativas ao inevitável noticiário diário que, como não poderia deixar de ser, é negativo, pessimista, assustador mesmo. Há que se encontrar um pouco de leveza nisso tudo. Estou retomando um hábito perdido, telefonar para as pessoas. Agora que todos têm mais tempo e que não me sinto mais tão constrangido com a perspectiva de “atrapalhar” alguém, tenho arriscado esse primitivo método de comunicação e a experiência tem sido rica. Da mesma forma que têm sido as reuniões virtuais, em que tenho visto e conversado com pessoas de uma forma que não vinha acontecendo antes do meu recolhimento.

Quando se fala de rotina, algo que se perdeu para mim foi a noção de dia da semana. Domingo ou 3ª feira são absolutamente iguais, tanto para mim quanto para o que resta de comércio aberto. É possível imaginar, remotamente, o que sentem os prisioneiros ao riscarem na parede os dias que passam enclausurados. Ontem, por exemplo, eu havia me esquecido de verificar o novo episódio de Porta dos Fundos, que acompanho com regularidade toda 2ª, 5ª e sábado. Também só me lembrei bem mais tarde de verificar a lista de sugestões da semana do Spotify. Como se alguma dessas coisas tivesse alguma importância agora.

Por falar em Spotify, ontem verifiquei que a ideia de criar a trilha sonora do corona não foi só minha. Há dezenas de listas criadas por usuários de todo o mundo que buscam o apropriado acompanhamento musical para o momento. Dando uma olhada por alto em algumas dessas listas, me detendo apenas nos títulos de cada música, o tom geral é o apocalíptico, que é talvez como a maior parte das pessoas enxerga a distopia que estamos vivendo. Uma lista aleatória que encontrei contém músicas com nomes curiosos como “Los Enfermos”, “Salvame La Vida”, “Ya Si Há Muerto Mi Abuelo”, “Si Te Mueres Mañana” e “Te Hacen Falta Vitaminas”. Há também as listas religiosas, as de meditação, as otimistas. Há uma cuja descrição, em português, é “não deixe que as más vibrações tomem conta de você”, que escuto agora enquanto escrevo.

Na busca de mais positividade para enfrentar esse processo, deparei-me com um vídeo da Diretora Executiva do UNICEF, em que apresenta sugestões da organização para um plano de bem-estar, individual, familiar ou corporativo. O vídeo, que é de uma leveza absoluta em tempos tão pesados, fala de permanecer conectado e verificar como estão indo os seus seres amados, especialmente os que estão isolados; de compartilhar seus sentimentos; de envolver-se em práticas que te façam bem; e, até, de criar uma “janela de preocupação”, o momento do dia em que você se permite entrar em contato com o que te aflige neste momento. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bb0uoJHNcNY.

Uma sugestão do vídeo de que gostei muito foi a de criar uma espécie de “diário da gratidão”, que consiste em registrar diariamente as pessoas ou coisas às quais somos gratos.    Pensei muito nisso durante o dia e me surpreendi com a quantidade de razões para ser grato neste momento difícil. Me fez muito bem e a sensação que tenho é que pode fazer bem a cada um.

Um caminho natural neste momento é usarmos o tempo livre para fazermos coisas de que gostamos, seja ler, costurar, ver filmes, cozinhar. É bom, deve ser feito. Mas li também um artigo sobre como pode ser bom e edificante engajar-se em um projeto, algo que exija foco, atenção, dedicação. Pode ser aquele projeto engavetado de escrever um livro, blog ou diário, fazer um curso (há milhões de opções online), organizar aquelas 17.578 fotos digitais das viagens dos últimos 20 anos, qualquer coisa que exija de você mais do que simplesmente fazer o que gosta, mas não tinha tempo.

Escrever tem sido bom para mim, me permite conectar-me com o que tenho pensado e sentido neste isolamento solitário, entrar em contato com novas formas de ver, sentir e pensar coisas antigas, repensar valores e prioridades, reconectar-me com pessoas amadas, partilhar o que escrevo com gente querida, ler e processar comentários. Foram esses comentários que me chamaram atenção para o excesso de negatividade com que estavam recheadas minhas linhas. E que me deram a motivação para escrever hoje, sem perder a noção e a gravidade do momento, mas com uma leveza que eu não vinha encontrando em mim.

22 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 22 de março. Dia 5.

Hoje, pela primeira vez, os filhos não visitaram o pai. Uma decisão que vinha sendo ensaiada foi hoje colocada em prática, não sem um pouco de tristeza e de culpa. Antes disso, remotamente, consegui fazê-lo instalar o Skype em seu computador para que os três filhos pudessem fazer uma videoconferência com ele. Os resultados foram médios: as imagens não estavam boas, tampouco a qualidade do áudio, todo mundo falava ao mesmo tempo e o pai, que já não ouve bem, ficou meio perdido, mas penso que cumpriu o objetivo de estarmos juntos com ele. Repetimos a dose de tarde. A ideia é fazê-lo entender que a maior prova de amor que podemos lhe dar é estarmos longe dele.

Fiquei com essa gratificante sensação de ter feito o melhor para meu pai até a noite, quando participei de outro encontro virtual com alguns amigos. Ali surgiu uma interessante reflexão sobre como lidar com nossos velhos, nossos pais, e de como é difícil ter empatia suficiente para nos colocarmos no lugar deles, entender suas vontades, desejos, necessidades. A vida, a nossa e a deles, para nós que ali conversávamos, é altamente valorizada, mas para eles tem muito menos valor, a ponto de acharem sem sentido muitas das decisões que tomamos em nome deles sem consultá-los. Não é à toa que a maior parte das coisas sérias e divertidas do isolamento social se refere à forma como muitos idosos têm reagido, de forma rebelde, às obrigações a eles impostas. Fiquei com esse sentimento o resto da noite e me perguntando o que realmente importa para um homem de 90 anos que não esconde a sensação de já ter cumprido sua missão na terra.

Ao longo do dia tive relatos de diversos encontros virtuais, aniversários, celebrações, reuniões de família. Já tem sido possível perceber que, em alguns momentos, a internet dá sinais de exaustão, o que era previsível. Definitivamente, o volume de dados desse serviço não foi dimensionado para uma situação em que a maior parcela da população brasileira se encontra em casa trabalhando à distância, se comunicando por diversos tipos de aplicativos, baixando filmes, músicas e livros, numa intensidade de uso muito maior do que jamais aconteceu. Isso me faz imaginar como será essa quarentena se ficarmos privados de acesso às informações providas pela internet, ao Whatsapp, Netflix, Skype, Spotify ou e-mail, para mencionar apenas uns poucos de meu uso contínuo. A trilha sonora do corona toca “como será o amanhã?”. 

É interessante observar como cada pessoa lida com o isolamento: comida, bebida, leitura, filmes, internet, jogos. São muitas formas de enfrentar o mesmo desafio. Penso que já estamos na segunda fase do processo de isolamento. Na primeira, tudo parecia confuso, as pessoas ainda mantinham boa parte de suas atividades, as que não mantinham começavam a sentir-se como em férias, iniciava-se um processo de planejamento para o isolamento, todos correram às compras, estocaram comida e produtos de limpeza. Naquele momento, havia um misto de preocupação com ironia, piadas, memes. Havia também os incrédulos ou céticos, que se recusavam a acreditar na necessidade de isolamento e que defendiam continuar suas atividades, “afinal não dá pra vida parar”.

Os casos aumentaram, as primeiras mortes aconteceram, a curva seguiu seu esperado padrão exponencial e as recomendações de isolamento cresceram e se tornaram mais imperativas. A brincadeira e o ceticismo estão aos poucos dando lugar à ansiedade e à expectativa, à necessidade de implementação de arranjos profissionais e familiares que nos permitam sobreviver a esse período de... quanto tempo mesmo? Ninguém sabe... pode demorar. Como sobreviver ao vírus? E se o vírus não nos pegar, como sobreviver às nossas próprias emoções e sensações desse período? As piadas e brincadeiras que hoje nos divertem vão perder a graça quando o contágio chegar aos nossos entes queridos, quando começarmos a perdê-los. O confinamento vai cobrar seu preço, tanto para os que moram sozinhos quanto em família.

Eu sempre disse que viajar é o grande desafio das relações humanas, sejam casais, amigos, familiares. Durante uma viagem, relações que sobrevivem com poucas horas diárias de convivência – no dia-a-dia, cada um com suas próprias demandas, trabalho, estudos, vida social, atividade física, cursos – passam por grande nível de tensão, onde a convivência, de maneira geral, dura as 24 horas do dia. No isolamento social que hoje vivemos, essa prolongada convivência que existe nas férias se repete, com o agravante de que, ao invés dos prazeres que normalmente uma viagem oferece, vivemos sob medo e apreensão. Receita perfeita para impactar a qualidade de qualquer relação.

É nessa fase que penso estarmos entrando. O tédio é compensado com atividades criativas, com interação social virtual, com novos arranjos familiares e profissionais. Pais inventam todos os tipos de atividades para entreter crianças. Há poucos que ainda questionam a importância de não sair de casa. Considerando o impacto, em todas as esferas da vida, que tem a obrigação de permanecermos em casa, é claro que o medo começa a predominar. Há – sempre há – os que acreditam que – com os devidos cuidados – podem ainda circular por aí. Não há proibições nesse sentido, mas não duvido que venhamos a tê-las em breve. E para os que ficam em casa, até onde netflix e joguinhos vão manter nossa sanidade e a de nossas crianças?

As impressionantes dimensões do impacto econômico dessa pandemia para um grande número de brasileiros parecem ficar cada vez mais evidentes e têm gerado uma polêmica sobre a intensidade do remédio. Representantes do setor econômico têm defendido doses mais leves do remédio. Os que defendem as medidas restritivas insistem que a escolha, aqui, implica aceitar ou não um número extraordinário de mortes decorrentes da epidemia. Na primeira linha está o Presidente da República que afirmou hoje que "brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus". E completou: “não interfiro no trabalho do nosso ministro da Saúde, mas eu vejo os números que partem de lá, dessas projeções, e tô achando que há um exagero nisso daí". Gostaria de acreditar nele, mas acho que nem mesmo ele acredita, caso contrário já teria demitido o Ministro que faz projeções exageradas numa questão de tamanha gravidade.

Eu comecei o dia hoje otimista e busquei não me contaminar com os números mais recentes. Não sei, no Brasil, quantos mortos tivemos hoje, quantos novos casos foram confirmados, não me atualizei sobre a situação da Espanha, da Itália, do Reino Unido, da França, dos EUA. Mas é difícil ficar alheio às informações, cada hora surge algo novo, uma nova descoberta, uma nova norma, uma nova recomendação, não tem como me desligar totalmente

Consegui evitar os números, mas teria sido mais fácil lidar com eles... os números são preocupantes, são angustiantes, mas são frios. As histórias que os números escondem, contudo, podem ser muito mais dolorosas. Os casos de infecções do coronavírus continuam, em sua grande maioria, no andar de cima. Mas uma reportagem que li ao fim do dia me deixou bastante impactado ao descrever – e prever – como tem sido – e será – a tragédia para os pobres.

A reportagem descreve a situação em uma favela da Rocinha, no Rio, em que um casal começava, de madrugada (quando o movimento nas ruas já não era tão grande), a subir e descer a ladeira entre sua casa e a única fonte de água disponível para eles. Carregavam os baldes com a água que seria usada para a higiene, o banho, a lavagem de roupas, a cozinha. O cuidado deles era redobrado: suas duas crianças, que não lavavam as mãos há três semanas, têm dermatite atópica e, consequentemente, baixa imunidade (penso que era necessária uma medida provisória que proíba pobres de terem esse tipo de doença... onde já se viu, pobres com dermatite atópica!).

A matéria continua descrevendo as condições da favela, com grande aglomeração de pessoas nas ruas e famílias inteiras dividindo um único cômodo. Uma mulher da comunidade gritava da janela, apavorada desde que começou a sentir febre alta, tosse, dores no corpo e dificuldade para respirar. A recomendação do posto de saúde, que naturalmente não dispunha de testes, foi apenas o isolamento. Mas isso não bastava. A empresa onde trabalha exige que ela vá pessoalmente levar o atestado médico, em um local onde dezenas de funcionários trabalham numa sala fechada, sem ventilação nem limpeza adequadas. Muito justo.

Termino a leitura do jornal triste, muito triste, imaginando como ecoam, nessa comunidade sem água, as recomendações das autoridades de lavar as mãos várias vezes ao dia, de manter as condições de higiene, de evitar aglomerações e de ficar a pelo menos dois metros de distância de outras pessoas. Como vai ser, nessa e em outras igualmente miseráveis comunidades Brasil afora, quando o vírus nelas chegar?

Hoje era para ter sido um dia de maior otimismo, acordei com esse propósito. Eu queria ter feito uma reflexão sobre os aspectos positivos de todo esse processo, especialmente daquilo que pode ser construtivo e edificante, no nível individual e coletivo. Mas fui atropelado pelas leituras do dia. Vou tentar novamente. “Amanhã será outro dia”, como escuto na trilha sonora do corona. E não será, ainda, o fim do mundo. No máximo, como diz a mesma trilha, "It's the End of the World as We Know It”


21 de março de 2020

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 21 de março. Dia 4.

Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 21 de março. Dia 4.

Está tudo apenas começando, mas as emoções diárias são fortes. Fico imaginando como era lidar com a gripe espanhola sem internet, sem whatsapp, sem comunicação. Estou confinado, sozinho em casa, e esses canais têm sido instrumentos para minha sustentação emocional, para minhas trocas intelectuais, filosóficas e ideológicas, minhas fontes de risos e de choros. E tem sido muito bom isso. Estou isolado fisicamente, mas não emocionalmente, não afetivamente. E isso faz diferença.

O momento mais impactante do dia de hoje foi um vídeo que recebi com uma palestra de Bill Gates. No vídeo, de cinco anos atrás, ele fala sobre o risco de uma epidemia global e de como a população não estava pronta para evitar a disseminação de um possível vírus mortal. Dizia, ainda, que estávamos investindo mais em armas do que em saúde, mas que, “se alguma coisa pode matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, é mais provável que seja um vírus altamente infeccioso do que uma guerra. Não mísseis, mas micróbios”. O vídeo é absolutamente impressionante pela similaridade com que descreve, cinco anos atrás, o que estamos vivendo hoje (tem até o desenhinho do corona). Imperdível programa para a quarentena. São apenas 8 minutos. Veja em https://www.youtube.com/watch?v=6Af6b_wyiwI&feature=youtu.be (tem legendas em português).

Minha secretária veio pela última vez na 3ª feira, 5 dias atrás. Passada a manutenção básica da casa, chegou a hora de uma limpeza mais profunda. Resolvi começar pelo banheiro, essa icônica parte da casa quando se fala em limpeza, higiene ou assepsia. Eu seria mentiroso se dissesse que nunca lavei um banheiro na vida. Mas foram lavagens básicas, “só até dar tempo de vir a moça para dar uma limpeza mais caprichada”. Ou, quando estudei na Inglaterra, e meu quarto tinha um banheiro de um metro quadrado, onde o chuveiro ficava praticamente sobre o vaso. Nesse espaço, cada banho já era quase uma lavagem completa do banheiro, e bastava fazer uma limpeza mais profunda uma vez por semana, e o banheiro ficava novo de novo.

Assim, quando olhei para o meu banheiro, com um box, uma banheira, uma bancada e mais um bando daqueles nichos pra encher de coisinhas, percebi que, em tempo de corona, precisava de algo mais profissional. Usar os produtos certos para o piso, para a parede, para o vaso, para os vidros e espelho. Não quis vacilar, resolvi estudar o assunto. Achei no Google: “Como limpar o banheiro de forma prática e rápida” (https://www.tuacasa.com.br/como-limpar-banheiro/). Em condições normais, eu diria que ficou bonzinho. Em tempos de corona, eu já não teria tanta certeza. Mas tive algumas conclusões importantes:

- minha secretária não lava bem o banheiro, mas eu lavo muito pior do que ela;
- lavar bem e lavar rápido um banheiro me parece uma contradição: ou você faz bem ou faz rápido... eu consegui fazer mal e demorado;
- hotéis, hospitais, motéis, banheiros públicos, no trabalho... vou lembrar cada vez que estiver em um desses banheiros... a probabilidade de ter sido mal lavado é grande;
- nunca mais irei reclamar de hotéis que impõem um intervalo de tempo muito grande entre o check out do hóspede anterior e o meu check in... tomem o tempo que quiserem para fazer o serviço bem feito.

Resumindo, não ficou ótimo, mas ficou bem cheiroso, com uma mistura de produtos e essências em variedade e quantidade jamais vistas naquele banheiro. E descobri que muitos amigos que acompanharam o evento gostaram do guia de como limpar um banheiro, que foi devidamente utilizado e distribuído, de maneira democrática, por muitos homens, mulheres, adultos e jovens (justiça seja feita, muito mais por homens do que por mulheres).

Mas a pior parte da experiência dessa limpeza, e que tem se refletido nas minhas diversas experiências diárias, é a certeza dos permanentes riscos de contaminação. O tempo todo eu sinto como se estivesse contaminando tudo. Eu limpo aqui, toco ali, vou para ali, volto aqui, pego no frasco do produto de limpeza, coloco o frasco no chão, pego outro produto, aí lembro que coloquei para fora do banheiro a balança, o banco, a lixeira, que a essa altura já infectaram o lado de fora (ou foram infectados do lado de fora). Não tem jeito... na prática, estou todos os dias a todo momento contaminando ou sendo contaminado por espaços na minha casa.

Em um cenário de absoluto confinamento, esse risco deve ser minimizado. Mas até que ponto dá pra falar em confinamento absoluto? No mínimo a comida tem que chegar em casa. Posso sair para comprar a comida – com todas as milhares de possibilidades de contaminação no processo. Ou posso pedir o serviço de entrega, sem qualquer garantia da qualidade do que estou comprando ou do serviço de entrega. Ainda que eu reduza bastante o número de intermediários, não os elimino. Muita gente vai tocar na minha comida até ela chegar na minha casa. E aí chega a comida, faço o que com ela? Passo álcool gel na banana, no abacaxi, na manga, na alface? Ainda que eu higienize cada um dos produtos, até eles chegarem na pia da cozinha já tocaram no chão, na bancada, em mim mesmo... não tem jeito... Hoje eu falava com uma amiga que me contava, desolada, que havia feito compras de frutas e verduras e estava com vários sacos fechados na entrada da casa, sem saber o que fazer com eles. Eu entendo...

A cada dia, surgem decisões para serem tomadas. A próxima decisão é mais delicada. Por tudo que estamos vivendo, o maior ato de amor que posso fazer pelo meu pai, com seus 90 aninhos, é não visitá-lo de forma alguma. Ele consegue entender a necessidade de ficar isolado, tem uma cuidadora com ele, mas ele tem dificuldade para entender que os filhos – mesmo morando perto dele – também devem ficar isolados e não visitá-lo. Hoje não fui, ele estranhou, fez aquela carinha conformada de quem está tentando entender mas no fundo está bem triste. Ele passa o dia em frente à televisão vendo noticiário – hábito arraigado, não tem interesse em mais nada – e, apesar de não entender tudo que vê e escuta, já entendeu que ele é o elo fraco da história. Ele já sabe que, no limite, na hora em que um médico só tiver um respirador para atender entre ele e um outro mais jovem, é ele que vai para o sacrifício. Decisão que faz todo sentido do ponto de vista coletivo mas, individualmente, revela-se para ele um fardo pesado para carregar neste momento.

É bastante interessante como a pandemia está declarada há bastante tempo, mas as medidas, tanto por parte dos governos quanto dos cidadãos, acontecem em ritmo lento: todo dia há novidades, todo dia há uma nova medida, todo dia surge uma nova informação. Parece compreensível que seja assim. Para começar, estamos falando de um inimigo novo e desconhecido. Não sabemos com que armas derrotá-lo. As medidas requeridas dos governantes são necessariamente amargas, impopulares. No caso brasileiro, para piorar, não há coordenação nem uma estratégia clara de condução da crise, o que cria permanentes choques e conflitos, que apenas aumentam o medo, a confusão e a desinformação. Além disso, todas as medidas vão em direção contrária a tudo em que acreditamos, social, econômica ou afetivamente. O que estamos vivendo agora vai contra o que sempre fizemos, pensamos e sentimos. Apesar disso, a realidade vai se tornando cada vez mais clara, especialmente a partir da observação do que aconteceu em outros países. O desastre e o caos parecem inevitáveis e se aproximam. Todos já entenderam e, dentro de suas capacidade, estão se preparando.

Dizem que estou pessimista. Não... apenas vejo com tristeza o país deixar de fazer o que poderia fazer; de outro lado, com conformismo, entendo a parte em que não há o que fazer... E espero. Estamos atrasados, essa é a verdade, e muito do que deveria ter sido feito já passou da hora. Olho para o que está acontecendo na Itália. Na Espanha. No Reino Unido. Nos EUA. As autoridades tentam nos fazer crer que a tragédia italiana é unicamente em face da população envelhecida. É verdade, mas isso não explica o que acontece nos outros países. E, em termos de condições para enfrentar o problema, nós somos piores que eles em tudo. População maior. País maior. Condições de saneamento muito piores. População muito mais pobre, alto índice de desempregados e de empregos informais. Distribuição de renda muito mais perversa. Sistema de saúde precário mesmo na ausência dessa calamidade. Um governo absolutamente despreparado para lidar com a crise. Os estados estão agindo, mas totalmente descoordenados. Uma economia em frangalhos antes da pandemia. E a certeza de que a crise no Brasil está começando, apenas começando... como ser otimista?

O que nos resta a não ser fazer a nossa parte? Parece que definitivamente a ficha caiu para a população. Infelizmente, para grande parcela dos brasileiros, o comando de ficar em casa não faz sentido algum e isso só acontecerá se for mandatório e forças policiais assegurarem o cumprimento da regra. Para quem não tem o privilégio de ficar em casa e receber o contracheque no fim do mês, fica tentador optar pelos riscos estatísticos do corona – onde há maior chance de sobrevivência do que se forem privados da renda informal que os sustenta e às suas famílias. É de sobrevivência que estamos falando e, nesse caso, como condená-los? O instinto de sobrevivência é o juiz supremo.

Isolamento social é o comando da vez. Só se fala nisso e, aparentemente, é mesmo o único, se não o melhor caminho. Para isso, a cidade foi aos poucos sendo asfixiada. Escolas, teatros, cinemas, parques, shows, eventos, restaurantes, bares, comércio... tudo fechado. Veem-se poucos carros e pessoas na rua, mas ainda existem muitos. Supermercados, mercearias, farmácias. Acostumado a fazer compras menores, toda hora me lembro de alguma coisa que ficou faltando, além das grande compras de mercado. Ontem foram os pães. Hoje foram as frutas. Penso que agora estou bem servido. Que venha o inimigo, estou na trincheira.

Andei lendo sobre isolamento social. Fora deste mundo da pandemia, isolamento social é o comportamento onde uma pessoa ou um grupo de pessoas, voluntária ou involuntariamente, se afastam de interações e atividades sociais. Quando não provocado por terceiros, o isolamento social é reconhecido como um distúrbio de comportamento que precisa ser tratado. No caso da pandemia, a causa é outra, mas muitos dos efeitos e consequências do fenômeno são semelhantes e afetam de maneira igualmente perversa uma grande parcela da população. Medo, ansiedade, pânico, insegurança... tudo tem aparecido.

Não é à toa que a maior parte das pessoas tem buscado “driblar” a ideia de isolamento social. E isso tem sido feito graças aos inúmeros recursos tecnológicos que se encontram à disposição de “quase” todos, de forma que o isolamento social se limite ao isolamento físico, para que ninguém se afaste das diversas formas disponíveis de interação social. A bateria de meu celular, que era mais do que suficiente para passar o dia inteiro sendo utilizado para o trabalho, para a família, para leitura e navegação, bem como para o uso dos mais esdrúxulos e impensáveis aplicativos, não tem chegado ao meio da tarde. Tenho conversado, por telefone, mensagem, e-mail, com muito mais frequência do que o habitual, com muitas pessoas que, no dia-a-dia, não consigo manter o contato com a intensidade e a qualidade que eu gostaria.

Além dos muitos contatos individuais, passei hoje por três interessantes e diferentes experiências de interação social que me fizeram bem e que fazem parte da sustentação emocional de que preciso neste momento. Na primeira delas, um grupo de amigos queridos iniciou a construção de uma trilha sonora do corona no Spotify. A lista é colaborativa, online, de forma que cada um pode inserir quaisquer músicas que, na sua percepção, no seu sentimento, reflitam o momento que estamos vivendo. Sem censura, sem moderação. Há músicas que falam de desesperança e há músicas que falam de otimismo. Há músicas nacionais e estrangeiras. Há músicas que refletem os comandos de ficar em casa e de se isolar. Há um pouco de todos os estilos musicais. De celebração do fim do mundo ao otimismo incondicional, há de tudo um pouco. Alguns títulos são autoexplicativos de sua presença na lista (“Hoje eu não saio não”, “O dia em que a Terra parou”, “Sonífera Ilha”, “It’s the end of the world as we know it”, “Don’t stand so close to me”, “O último dia”, “I will survive”, “Last Hope”, “E o mundo não se acabou”, entre outras). Outras músicas entraram e somente quem as escolheu poderia dizer o que motivou a sua inclusão na trilha sonora do corona. O processo foi (tem sido) muito gostoso e o resultado final, bastante heterogêneo, embalou boa parte do meu dia hoje.

Em outra experiência, quis encontrar uma forma de celebrar o aniversário de minha cunhada querida, casada com meu irmão. Ela mora no meu prédio, em outra prumada. Em condições normais, eu adoraria estar celebrando com ela e a família. Pensei em fazer-lhe uma homenagem, colocar umas caixas de som na varanda tocando Parabéns pra Você, mas lembrei-me que hoje havia um outro aniversariante no país, o próprio presidente, que seria objeto mais tarde de uma manifestação contrária a ele. Minha celebração poderia então ser mal interpretada pelos vizinhos. Resolvi então arrumar uma mesa na varanda em homenagem a ela, com comidinhas que imaginei ela fosse gostar, acendi uma vela e abri um vinho. Da minha varanda pude vê-la com meu irmão, brindar à sua vida e, dentro das limitações possíveis, estarmos juntos... era o que tínhamos para o dia, e foi bom poder celebrar dessa maneira.



Uma amiga passou nesta semana por experiência igualmente rica. Seu filho celebrava 18 anos e ela não queria deixar a simbólica data passar em branco. A família jantou e o bolo de aniversário foi acompanhado pelos tradicionais Parabéns pra Você. Eis que, do lado de fora da janela, ela ouviu os vizinhos se juntando à celebração, cantando e batendo palmas dos seus apartamentos para o aniversariante. Emocionada, ela agradeceu em voz alta pela janela e foi presenteada com mais palmas e gritos do bem, de gente do bem. Foi uma tocante forma de celebrar a vida e de dar boas vindas ao seu filho para o mundo adulto. Me emocionei ao ler o seu relato dessa vivência.

Encerrei a noite com um encontro virtual com amigos de adolescência e respectivos parceiros. Cada um em sua casa, taças erguidas, celebrando a amizade, a vida, o encontro, numa conversa leve, gostosa, repleta de acolhimento e da necessária empatia de um pelo outro em um momento que, sabemos, a carga está pesada para todos nós.

Encerrei a noite recolhido, quieto, ouvindo música e, pela primeira vez, tive medo do que estou vivendo. Medo de ficar doente, medo de pessoas queridas ficarem doentes, medo de meu pai morrer. Lembrei, com carinho e boas energias, de minha grande amiga que está infectada. Ao contrário de todas as dificuldades de saúde que eu e minhas pessoas queridas já viveram, agora o dinheiro e o bom plano de saúde não garantem nada. Na hora do caos, não se vai distinguir entre o rico e o pobre, no máximo entre o velho e o jovem. Nenhum país está preparado para uma pandemia, mas alguns estão muito pior preparados. Em um país onde o sistema de saúde é absolutamente insuficiente para as necessidades da população, o medo de como a pandemia vai nos atingir não é pessimismo. É apenas medo mesmo.

O medo vem, mas vai. Termino o dia me lembrando das diversas formas de amar e ser amado que encontrei no tal isolamento social. Ser acolhido, conversar, trocar, me aproximar, ouvir, rir, chorar... partilhar a vida com pessoas que fazem parte do meu mundo sempre foi uma forma de sustentação da vida. Agora, mais do que nunca. E o medo foi...
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Reflexões nos Tempos do Coronavírus. 20 de março. Dia 3.


(meus planos de usar o fim da noite dos dias de quarentena para minhas reflexões foram ontem abruptamente interrompidos por uma garrafa de vinho desgovernada que entrou em meu caminho!)


Quando fiz meu mestrado na Inglaterra, há 20 anos, descobri e conheci muitas coisas importantes além do mundo acadêmico. Uma das mais impressionantes e reveladoras descobertas que fiz à época foi o longo caminho que as roupas percorrem da hora que em que eu as depositava no cesto de roupas sujas até o momento em que chegavam, limpas, passadas e penduradas, no meu armário. Mesmo tendo sido criado em ambiente apelidado de “classe média baixa”, fui privilegiado pelos resquícios escravocratas que me permitiram não precisar lidar com esse tipo de preocupação mundana. A descoberta em Londres foi acompanhada de perto pelo meu desgosto ao ver roupas queridas encolherem na máquina com água quente, roupas com fibras especiais se desmancharem na secadora de roupas nas quais nunca haviam sido usadas e pela constatação do nível de técnica e experiência que requer uma roupa bem passada. Evoluí nesse período, embora não a ponto de aprender a passar roupas. Aprendi a ser feliz usando-as sem passar.

Ontem eu comentava as dificuldades da sobrevivência de quem não sabe cozinhar e celebrava as virtudes das comidas prontas. Eu sempre me orgulhei de fazer a economia girar e fazer a minha parte pela distribuição de renda para justificar que, melhor do que saber cozinhar, é ter uma boa agenda de telefones e endereços. Nem isso basta agora. Restaurantes estão fechados, apenas fazem entregas. Mas o que já vinha lendo e ouvindo sobre a realidade desse exército de entregadores que tomou conta do Brasil me faz ter sérias dúvidas sobre a capacidade de eles obedecerem aos mínimos comandos tecnocratas de higiene, assepsia, isolamento social, afastamento. Essa não é mais uma opção tão simples como era no passado.

Tenho recebido dezenas, centenas, de telefones e endereços de pequenos produtores que entregam em casa todos os tipos de produtos de que eu possa precisar durante a quarentena. Eles chegam de forma sintética, nome, contato e produto, de forma que, se eu não os conhecer previamente, não saberei sua procedência, qualidade do produto ou confiabilidade do serviço de entrega. Em particular nas condições atuais. É uma iniciativa saudável para viabilizar a sobrevivência desses pequenos comerciantes nesse período de crise, mas ainda estou pensando que é mais seguro esgotar, antes, o meu estoque de comidas prontas.

Mas como fazer com as saladas e frutas? Comprá-las no mercado ou na mercearia é, essencialmente, um ato de fé. Não há nenhuma forma segura de fazer essas compras sem passar por enormes riscos de contágio. Nesse caso, talvez comprar diretamente dos pequenos produtores seja uma boa opção. No mínimo, reduz-se o número de mãos que tocaram em cada produto até a chegada a minha casa.

No meio da mediocridade e do egoísmo que afloram em momentos como este, afloram também algumas iniciativas bacanas, pelo menos na minha “bolha”. Uma rede de solidariedade tem se formado para proteger pequenos comerciantes e aqueles prestadores de serviços que usamos regularmente, que já estavam contabilizados nas nossas despesas, como o barbeiro, a manicure, a faxineira, a massagista, entre tantos outros que estarão agora trancados em casa, sem renda, por não serem serviços sem os quais não conseguimos viver.

Ontem descobri ainda que comer é apenas uma das dificuldades domésticas com que terei que lidar na quarentena. Há as roupas, pessoais, cama e banho. Cuidar delas não é mais apenas uma questão de higiene básica, mas de sobrevivência, de redução de riscos. E há a higiene da casa. Sim, porque agora não há que se falar em limpeza da casa, algo que sempre poderia ser relativizado até a chegada do dia da empregada ou da faxineira. Agora, não apenas ela não virá tão cedo como não funciona a opção “dá pra deixar assim até 2ª feira”. E foi assim, nesse processo exploratório, que tenho começado a fazer descobertas dentro da minha própria casa. Descobri quase 30 potinhos de comidinhas congeladas que jamais imaginei existirem no meu freezer, restinhos de comida que foram se acumulando com o tempo pela minha zelosa (ou não) secretária parte dessa legião de seres importante a quem nos acostumamos a delegar crescentes poderes sobre nossas vidas. Descobri ainda diversos produtos de limpeza, também sem manuais de instruções, para usos tão distintos como piso da casa, piso do banheiro, vaso sanitário, piso da cozinha, bancadas, vidros, móveis, metais... muitos já existiam anteriormente mas receberam o reforço de uma grande quantidade de produtos que fizeram parte do meu último surto de compras no mercado. Eu já os descobri, falta agora começar a usá-los. Vai ser divertido.

Por já estar vivendo há cerca de um ano em regime de “semi rômi ófici”, em que aperfeiçoei a disciplina e a rotina necessárias para essa opção ser boa para mim e não se transformar em um pesadelo de prazos de tarefas não cumpridos, imaginei que lidaria bem com os requisitos de uma quarentena. Não é tão simples assim. Como a própria demanda do serviço reduziu-se abruptamente, começo e termino o dia com uma grande quantidade de tempo que ainda não aprendi a usar adequadamente. Não à toa, surgem as brincadeiras de que a quarentena pode minimizar o risco do vírus, mas aumenta muito o risco de ideias e iniciativas que beiram o auge da criatividade idiota, obesidade, alcoolismo e divórcios. Há que se ter uma rotina, uma disciplina. Não são férias, não se sabe por quanto tempo vai durar, e há que se cuidar para não enlouquecer. Para mim, funciona escrever, ouvir música (já estou montando The Corona Soundtrack), ler, fazer exercícios na varanda... mas tenho feito pouco disso tudo e não saberia responder exatamente o que tenho feito nas 16 horas que passo acordado dentro de casa.

Uma parte importante do meu tempo tem sido me informando sobre o inimigo. Há muitas fontes de informação, nem todas confiáveis. Descobri, ontem, sem surpresa, que o presidente da maior potência mundial não é nada confiável, ao anunciar, sem evidências científicas suficientes, que a cloroquina, medicamento usado para combater a malária e de uso habitual para combater doenças como lúpus, pode ser um eficiente agente contra o coronavírus. Pode até ser, estudos estão sendo feitos, há indícios, mas há ainda muitas incertezas, suficientes para usar cautela. Mas o impulsivo anúncio do presidente americano – tão hábil na crise quanto seu amigo, outro presidente ao sul do equador – foi o suficiente para que, ontem mesmo, todos os estoques do medicamento no Brasil se esgotassem e que, só depois disso, o governo brasileiro declarasse a exigência de prescrição médica para comprá-lo. Tarde demais, aqueles que precisam do medicamento já não o têm. E o medicamento estocado provavelmente será apenas mais um mico, além dos 120 rolos de papel higiênico, na mão dos que o compraram (confissão envergonhada: cheguei consultar a disponibilidade e o preço do medicamento na internet, mas ainda estou mentalmente saudável e não fui adiante na empreitada).

Outra importante descoberta foi que, às vésperas de completar 60 anos, eu já sou considerado grupo de risco para o vírus. Tenho lidado bem com a idade, sinto-me disposto e saudável, íntegro física e mentalmente, e me preparo para aposentadoria em breve com a consciência de que ainda tenho capacidade produtiva. Tenho, é claro, sentido o famoso “peso da idade”, mas ver os quadros que indicam um aumento de quase 200 % na letalidade do vírus a partir dos 60 anos foi um bem-vindo choque de realidade. E lidar com a realidade é uma qualidade essencial para enfrentar o inimigo. 

O enfrentamento do inimigo tem sido um capítulo à parte nesse processo. O inimigo é desconhecido, não se sabe como ele ataca, por onde ataca, suas estratégias, suas defesas, e o mundo inteiro mostra-se desconcertado sem saber por onde ir. Mesmo assim, o desafio do coronavírus tem mostrado a diferença entre líderes e governantes de plantão. Observar a forma como o presidente do meu país sistematicamente tem negado a gravidade do problema (ontem o chamou de “gripezinha que não vai me me derrubar”) tem sido uma das mais deprimentes partes do processo. Por absoluta falta de coordenação e iniciativa do presidente, governadores de todos os estados têm buscado se articular no sentido de adotarem estratégias comuns, enquanto o governo federal os fustiga com acusações de adoção de iniciativas muito rigorosas e cria conflitos diplomáticos absolutamente desnecessários neste momento. Nunca tive alguma dúvida sobre a absoluta incapacidade do presidente para o cargo que ocupa, mas neste momento de crise, em que algumas pessoas conseguem se elevar, ele tem conseguido se diminuir dia após dia. Felizmente, há alguns adultos na sala tomando as providências que precisam ser tomadas enquanto o menino fica brincando de ser adulto.

Encerrei o dia com pensamentos hipotéticos: e se meu celular ou a máquina de lavar roupa ou o freezer ou a geladeira pararem? e se a internet de casa der pane? e se o encanamento entupir, se o chuveiro queimar, se eu precisar ir ao médico ou hospital por qualquer coisa diferente do vírus? São pensamentos que seriam simples há duas semanas, mas que agora se revestem de inimaginável gravidade. O isolamento social, com o qual lido bem emocionalmente, tem um elevado custo por nos apartar do mundo, do exército de visíveis e invisíveis que fazem a nossa vida funcionar mesmo quando não nos damos conta disso.

PS. No momento em que encerrava o texto, recebo uma mensagem de uma amiga que, diante de uma geladeira quebrada de um parente, comentava o contato que fez com o técnico que há anos conserta para ela e família fogões, geladeiras e máquinas de lavar. Ela pergunta se ele está trabalhando ou está em quarentena. Ele apenas responde: “e tem jeito de não estar trabalhando?”.